Carta de um anarquista ibérico no norte da Síria: O que podemos aprender com a revolução de Rojava?

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O que acontece em Rojava hoje é uma revolução. Não é perfeita, não é a utopia que podemos sonhar enquanto lemos Bonano em nossos sofás reciclados, não é revolta espontânea contra toda autoridade que nos conta um comitê invisível, não é a revolução épica que nós imaginamos quando falamos sobre a guerra de 36. Mas é aqui e agora, e é o mais próximo de uma revolução que podemos experimentar hoje. Depende de nós entrarmos na história como tal.

O que acontece no norte da Síria é um movimento popular, organizado e armado; que luta para existir e administrar um território contra as forças que procuram ocupá-lo. Baseado na ação coletiva, um grande processo revolucionário está sendo defendido, onde as pessoas são organizadas sob os princípios da democracia, do pluralismo e da libertação das mulheres.

Em Rojava se vive em uma guerra sangrenta que é travada em muitos níveis, onde você não só luta na frente contra o Daesh (Estado Islâmico) ou contra o exército turco. É combatida nas cidades e no campo, buscando construir um sistema econômico que detenha o capitalismo que destrói a sociedade e a terra que a sustenta. Ela se esforça em famílias e comunidades, procurando acabar com o sistema patriarcal que oprime as mulheres, desafiando a gerontocracia que nega o potencial da juventude, e construir uma comunidade auto-organizada e comunal. Também se combate nas instituições, buscando construir um sistema democrático onde as pessoas podem decidir sobre suas vidas e as terras que habitam, consolidando os conselhos comunitários onde as pessoas podem resolver problemas coletivamente. Uma guerra ideológica também é travada nas mentes, combatendo a mentalidade individualista, liberal, capitalista e patriarcal em que as potências hegemônicas sustentam seu poder. Acima de tudo, se luta nas mentes. E a maneira de lutar é a educação, convivência, formação coletiva e popular, onde se aprende a discernir o que realmente precisamos para viver do que o sistema nos diz que precisamos para sobreviver.

Em Rojava podemos aprender o caminho que tem o poder de se perpetuar é nos manter isolados, jogando uns contra os outros, para aparecer mais tarde, como o salvador que – usando sistemas de monopólio e centralização chamado Estados – logra incidir na sociedade a influência, fingindo solucionar problemas. Podemos aprender que as estatísticas que apresentam quando dizem que saímos da crise são nada além de números e gráficos que sustentam sua história, a história do poder. É assim que eles fingem que, graças a suas intervenções, a nação está segura e que conseguiram evitar o desastre que eles mesmo causaram. E podemos aprender que eles não apenas conseguiram perpetuar seu sistema de exploração e pilhagem, mas conseguiram reforçá-lo e protegê-lo ainda mais. Você pode não precisar ir para Rojava para aprender essas coisas, mas aqui é mais claro do que nunca que a solução para os nossos problemas não virá da sua mão, ou de seus parlamentos, ou mesmo de suas prefeituras que agora anunciam a mudança. A solução tem que vir das pessoas, porque só as pessoas salvam a cidade.

Com isso, não quero dizer que todo o esforço investido em penetrar em suas instituições é em vão. As próprias instituições são ferramentas que devem ser usadas de maneira adequada, mas não apenas as instituições do Estado. A PAH (Plataforma de Afetados pela Hipoteca), por exemplo, conseguiu resolver mais problemas do que o Ministério da Habitação. A maneira correta de entender e usar as instituições é quando elas servem para libertar os oprimidos de seus opressores. E sobre isso também podemos aprender em Rojava. Alcançar as instituições do Estado pode valer a pena quando atrás das pessoas que ocupam essas instituições, há uma organização revolucionária popular, disposta a exigir que as instituições façam o que é certo e para resolver os problemas que causaram. Caso contrário, só se tornam ferramentas de desmobilização, traindo as esperanças das pessoas que depositaram sua esperança em discursos que se revelam vazios, lançando assim a discórdia e desconfiança.

Estado, colonialismo e revolução

O que acontece hoje em Rojava é o resultado de mais de 4 décadas de experiência e organização revolucionária. O modelo social que se constrói se deve a dezenas de milhares de pessoas, homens e mulheres, armados e treinados para defender-se, e que foram capazes de lidar com as forças opressivas que lutam para invadir suas casas. A expulsão do Estado Islâmico de suas terras fez baixar as máscaras, e o exército turco decidiu continuar a sua guerra sangrenta em Afrin, desta vez com seus próprios soldados. O Estado turco, como todos os Estados, precisa da guerra para sobreviver. A guerra é a sua razão de ser e seu princípio de prevalecer. Quando o conflito militar não é rentável, o Estado vai usar todos os tipos de ferramentas e estratégias para esmagar o inimigo (a sociedade democrática), a partir da guerra econômica, midiática ou ambiental. Mas quando com essas armas não atingem seus objetivos, o último recurso sempre será o uso da força bruta, a ofensiva militar. E isso é algo que devemos aprender de Rojava.

Os Estados ocidentais não são muito diferentes dos Estados do Oriente Médio, com a diferença de que aqueles que são classificados como seus ‘cidadãos’ têm muitos confortos e privilégios. Estes privilégios de colchão servem para retardar a resistência e evitar um movimento revolucionário que venha a questionar sua hegemonia. E é importante lembrar que essas facilidades e privilégios, são provenientes em sua maior medida da exploração e pilhagem do que nós classificamos como terceiro mundo.

O Estado espanhol é um velho conhecedor da exploração colonial. Os ataques brutais e conquistas na América Latina que começaram faz cinco séculos pilhando e destruindo a população indígena, trouxe grande riqueza e lucros para o reino. Se consolidaram monopólios que mantiveram certa hegemonia frente ao industrialismo capitalista, que nasceu na Inglaterra naquela época. Este sistema de imperialismo colonial, de que o Estado espanhol e português foram os pioneiros, se estendeu às mãos de outros Estados europeus na África, Ásia e Oriente Médio. E é precisamente esse modelo que agora se combate em Rojava, com a experiência de mais de quatro décadas de movimento de libertação revolucionária do Curdistão, e o legado de séculos de movimentos anticoloniais no mundo inteiro.

Uma luta internacionalista

Desde o início da revolução em 2012, Rojava se proclamou como uma revolução internacionalista. Centenas de pessoas – em sua maioria ocidentais, também há de se dizer, vieram ao chamado para defender a revolução, e dezenas deles caíram mártires lutando contra quem tentava destruí-los. No Curdistão sírio podemos aprender a apreciar o enorme sacrifício daqueles que deram suas vidas para defender a revolução, não só de Rojava, mas de todos os movimentos revolucionários que lutaram por um mundo mais justo e humano.

A revolução que ocorreu na Espanha em 1936 é, ainda hoje um importante marco para o internacionalismo revolucionário. Dezenas de milhares de militantes socialistas de mais de 50 países deixaram suas casas, fazendo frente comum contra o fascismo e pegaram em armas, sabendo que se ele não fosse detido na Espanha também se estenderia aos seus países. Mais de um terço dessas brigadas internacionais caíram mártires em combate, e devemos honrar a sua memória e sua luta com os militantes locais, desde as várias organizações revolucionárias, unidos em uma frente popular para enfrentar a barbárie do fascismo, depois vestido então de nacional-catolicismo.

Em Rojava, o fascismo é disfarçado de califado islâmico, canalizando assim o ódio acumulado e frustração depois de anos de interferência imperialista. A invasão brutal do Iraque em 2003, conduzida pelos Estados Unidos, e com a total cumplicidade do Estado espanhol, tem sido uma das principais causas de terror e ódio, o que permitiu a barbárie do Estado Islâmico consolidar-se fugazmente. Mas ao contrário de 36, em Rojava o movimento revolucionário tem sido capaz de esmagar o inimigo.

O fim da guerra, em 39, foi o gatilho para o que foi a Segunda Guerra Mundial, quando Hitler foi capaz de ganhar o controle do Estado alemão para espalhar o terror em toda a Europa. Hoje Erdogan seguindo seus passos, e as brutais tensões geoestratégicas acumuladas na Síria nestes mais de 7 anos de guerra, pode desencadear uma guerra de igual ou maior magnitude.

Se não você, quem? Se não agora, quando?

O fascismo avança se não se combate, e a invasão de Afrin tem sido um terrível lembrete de que a paz alcançada no Curdistão sírio após derrotar do Daesh não significa nada enquanto Erdogan seguir a frente do Estado turco.

O levante fascista que a Espanha viveu em 1936 foi respondido por um levante revolucionário disposto a acabar com ele. Diante dessa situação extrema, dezenas de organizações socialistas – coordenadas pelos esforços dos congressos internacionais dos trabalhadores – fizeram um apelo global para pôr fim ao fascismo na Espanha. Mas o fascismo também é capaz de se internacionalizar quando necessário, e como Itália e Alemanha vieram em auxílio do general Franco, milhares de jihadistas foram para a chamada do califa Al Baghdadi.

Agora o fascismo islâmico em Rojava tem uma nova bandeira, e Erdogan renovou o pacto com as milícias herdeiras da Al Qaeda para ocupar Afrin. Hoje eles ameaçam Manbij, e eles não vão parar se não os confrontarmos. As internacionais socialistas não são mais do que cinzas, das quais devemos ressurgir qual fênix para enfrentar os bárbaros. Também as lutas anticoloniais e as resistências anti-imperialistas devem responder fortemente a esta brutal agressão contra o território sírio pela Turquia, exército chave da sangrenta aliança militar que é a OTAN.

Rojava está pronta para receber todo o apoio que internacionalistas de todo o mundo podem oferecer. Essa revolução poderia ser a retaguarda de que precisamos, uma retaguarda para movimentos revolucionários em todo o mundo, como era a Palestina. Para enfrentar o capitalismo global, precisamos desenvolver um movimento revolucionário global, capaz de confrontar o inimigo onde quer que ele esteja. Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para defender esta revolução, não permitimos que a solidariedade permaneça apenas em palavras. Se não nós, quem? Se não aqui, onde? Se não agora, quando?

Viva a solidariedade internacional!

Ernesto Durruti

Academia Internacionalista şehîd Hêlîn Quereçox

Rojava, junho de 2018

Fonte: https://www.regeneracionlibertaria.org/carta-de-una-anarquista-iberico-en-el-norte-de-siria-que-podemos-aprender-de-la-revolucion-de-rojava

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

Papagaio no ar:
um braço feliz de criança
a brincar nas nuvens.

Ronaldo Bomfim

2 responses to “Carta de um anarquista ibérico no norte da Síria: O que podemos aprender com a revolução de Rojava?”

  1. Guilherme Fernandes Garcia

    Saudações Libertárias! Como fazer pra conseguir se juntar ou ajudar de alguma forma, in loco, as organizações envolvidas? Tenho experiência em cozinha, anos de anarquismo político, prático e filosófico; trabalhei com cozinha e como voluntário pela América Latina, África e Europa; falo 4 idiomas(Inglês, Francês, Castellano), incluindo o português e tenho um desejo enorme de conhecer, e ajudar, nessa revolução! Alguma sugestão prática? Grato.

  2. moésio R.

    manda um e-mail pra cá: a_n_a@riseup.net