O maldito poeta anarquista

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Lawrence Ferlinghetti narra conflitos sociais e políticos,como Maio de 68

por Marcus Vinícius Beck | 28/09/2018

“Tudo muda e nada muda”. Com licença, meus caros, pois esta é a poesia de Lawrence Ferlinghetti, 99. Lançado em 1958, na livraria City Lights, em São Francisco, a obra Um Parque de Diversões, a qual esses versos fazem parte, é tida como um de seus livros mais cultuados do expoente da geração beat. Na poesia ferlinghettiana é comum abordagens de temas com cunho políticos e sociais. Durante a década de 1980, publicou o romance Amor e revolução, que narra a história de um banqueiro revolucionário que vivia em conformidade com o espírito burguês.

Apesar de começar esta matéria citando um poema que faz parte de Um Parque de Diversões, não quero propriamente discorrer sobre isso. Após mergulhar de cabeça na bibliografia dos beats Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac, inclusive provando algumas experiências tal como os mestres fizeram outrora, umas publicáveis, outras nem tanto, consigo parar um momento e refletir: a literatura beat é sim coisa de primeira. E o livro Amor nos Tempos de Fúria, lançado no Brasil em 2012, segue nessa mesma toada e, com isso, fisga o leitor da primeira à última linha.

Paris, 1968. Os estudantes da universidade parisiense Sorbonne tomaram as ruas para protestar, discursar e pichar palavras de ordem contra o general Charles De Gaulle, reacionário que combatera na Segunda Guerra. A eles uniram-se trabalhadores, artistas e músicos, sendo o estopim para uma das maiores revoltas da história. Com esse pano de fundo, Ferlinghetti idealiza o encontro entre Annie, pintora estadunidense, passional e idealista, e Julien, um cético banqueiro português que se diz anarquista de coração, assim como no famigerado livro Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, publicado em 1922.

O escritor demonstra todo seu talento para a prosa ao narrar a complicada história entre Annie e Julien. Entrelaçando um enredo íntimo de seus personagens com conflitos sociais que aconteceram naquele período, Ferlinghetti faz também uma espécie de síntese das questões políticas, sociais e artísticas que marcaram toda uma geração. Em Montparnasse, no La Couple, em Paris, no fim da noite, o leitor logo nas primeiras páginas é apresentado à protagonista. Narrado em terceira pessoa, em fluxo de consciência, o beat coloca-nos no centro do caos que estava instaurado na cidade da luz.

TÔNICA

Críticas aos sistemas totalitários, como ao fascismo do ex-socialista Benito Mussolini, que vigorara na Itália durante a década de 1930, e ao nazismo do artista plástico frustrado Adolf Hitler, que provocara a Segunda Guerra Mundial, são a tônica de vários textos que Ferlinghetti escreveu ao longo das últimas seis décadas. Lê-lo é indispensável nesses tempos em que o autoritarismo vem ganhando força na sociedade brasileira com candidaturas caricatas que semeiam discursos de ódio e fazem uma ode de extremo mau gosto à Ditadura Militar.

Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, no dia 7 de setembro de 2016, Ferlinghetti disse que o anarquismo – ideologia política que teve Mikhail Bakunin como principal expoente – sempre foi um ideal, e não uma ideologia. “Ele nasceu no século XIX, e nessa época o mundo não tinha um terço das pessoas que tem hoje. O anarquismo era possível quando não havia populações grandes”, explicou, na ocasião. “Mas hoje, a não ser que você tenha alguma forma de governo, as pessoas vão acabar matando umas às outras. De qualquer forma, é isso que começa a acontecer”, disse.

Sobre a autobiografia One Stream of Consciousness que está escrevendo, aos 99 anos, Ferlinghetti contou que o ideal seria chamar a obra de “romance-memória”. “A parte autobiográfica é desde quando sou menino e segue até tudo o que tenho a dizer como adulto. No fim das contas, sou uma criança que ficou velha e está quase cega. Esse é o fim. Não é ficção, é vida real. Não gosto do termo ficção, você diria que Cem anos de Solidão é uma ficção?”, completa. O poeta disse ainda que “o poeta por definição é um inimigo do Estado”.

Na entrevista, Ferlinghetti falou que o escritor William Burroughs, autor do clássico Almoço Nu, de 1959, “era como tanto outros doidões” na época em que os beats frequentavam a livraria City Lights. “Achei que expressava uma mentalidade de doidão, cheia de morte e ódio. Burroughs era “el hombre invisible”, veio à livraria mais de uma vez para fazer leituras, mas você via que ele não estava lá. Era como tanto outros velhos doidões, que estão presentes fisicamente, mas não estão presentes de fato. Eu nunca entrei na mesma onda que ele”, comentou à Folha.

VIDA

Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers, no Estado de Nova Iorque, em 1919. Filho de italianos, seu pai morreu antes dele nascer, e sua mãe foi internada em função de problemas nervosos quando o poeta ainda era pequeno. Foi criado por uma tia materna e passou cinco anos de sua infância na França. Ao retornar para os Estados Unidos, ingressou em várias escolas até entrar na University of North Carolina, onde estudara Jornalismo. Publicou suas primeiras histórias na revista cultural Carolina Magazine.

Durante o verão de 1941, Ferlinghetti morou com amigos em uma pequena ilha no Maine. A experiência o aproximou do mar, que se tornou um dos temas recorrentes em sua obra. Em seguida, entrou para a marinha norte-americana. Serviu na Segunda Guerra Mundial, participando da invasão da Normandia, na França. Depois trabalhara por um breve período na revista Time, antes de voltar para a Columbia University, de Nova Iorque. Nela, conseguiu a titulação de mestre em literatura inglesa. Doutorou-se pela Sorbonne, em 1950, com menção honrosa.

Retornou para o EUA, em 1951, onde instalou-se em São Francisco. Passou a dar aulas de francês, traduzir, pintar e fazer crítica de arte em jornais. As primeiras traduções que fez foram publicadas na revista cultural City Lights, por Peter D. Martin, que se tornaria sua sócia na mítica livraria de mesmo nome. Um ano depois da saída de Martin, fundou a editora City Lights e lançou sua primeiro livro, Pictures of the Gone World, primeiro volume da Pocket Poets Series.

POEMA

Tudo muda e nada muda.

Séculos findam

e tudo continua

como se nada findasse.

Como nuvens estáticas a meio-vôo

Como dirigíveis presos contra o vento.

E a urbana febre das feras do cotidiano

ainda domina as ruas. Mas ouço cantarem

ainda agora as vozes dos poetas

mescladas ao grito das prostitutas

na velha Mannahatta

ou na Paris de Baudelaire,

chamados de pássaros ecoam

nas ruelas da história

renomeados.

Fonte: https://www.dm.com.br/entretenimento/2018/09/o-maldito-poeta-anarquista.html

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