por Quino Petit | 14/10/2018
Ele é um dos líderes intelectuais do pensamento radical contemporâneo. Anarquista indie, filho de um membro das Brigadas Internacionais, fez parte do movimento Occupy Wall Street e hoje dá aulas de antropologia na London School of Economics. Mordaz e implacável com o papel dos economistas antes e durante a Grande Recessão, escreveu uma obra provocadora que desmantela a idealização que as sociedades ocidentais fazem do emprego
David Graeber, nova-iorquino de 57 anos, é um anarquista que dá aulas na London School of Economics. Um antropólogo outsider que compartilha conhecimentos no templo de estudos do capitalismo global. Um professor exilado à força em Londres, desde que mais de 20 universidades de seu país rejeitaram seu currículo após uma partida abrupta de Yale, depois de sair em defesa de um aluno que tentava organizar um sindicato de estudantes. Um acadêmico provocador que tem escrito em seus momentos livres obras tão peculiares como Dívida – Os Primeiros 5.000 Anos e The Utopia of Rules (“a utopia das normas”). Um homem, em suma, que define a si mesmo como um workaholic e agora tem um dos livros mais estimulantes da temporada, Bullshit Jobs: A Theory (“trabalhos de merda: uma teoria“), lançado em espanhol pela editora Ariel com o título de Trabajos de Mierda.
A gênese do novo livro de Graeber parte de um artigo que ele publicou em uma revista alternativa em 2013. O artigo viralizou rapidamente nas redes sociais, foi traduzido para 13 línguas em duas semanas e catapultou sua popularidade entre as elites do pensamento radical. Aquela aproximação ao fenômeno dos trabalhos de merda − que povoam, segundo sua versão, distintas latitudes do planeta − acabou se transformando em um divertido livro de mais de 400 páginas onde seu autor afirma, entre outras provocações, que cerca de metade dos empregos atuais poderiam ser eliminados sem que ninguém notasse. O motivo? São absolutamente desnecessários por sua tendência à burocratização e managerização das organizações: “Depois de perguntar a pessoas de diversas áreas o que fazem realmente em sua jornada de trabalho, você percebe a grande quantidade de tempo que perdem em tarefas que não servem para nada. Keynes tinha razão: a jornada de 15 horas semanais é e já deveria ser viável − e, é claro, sustentável. Todos teríamos uma vida melhor”.
Filiado a correntes anticapitalistas de militância como Occupy Wall Street, da qual foi um dos líderes intelectuais, não é de estranhar que Graeber tenha vindo recentemente a Liverpool, no norte de Reino Unido, para participar dos debates em torno do futuro da esquerda organizados pelo Momentum, um movimento decisivo no impulso do líder trabalhista britânico Jeremy Corbyn. Esses encontros, nos quais Graeber deixou sua marca anarquista com estética de roqueiro indie, coincidiram no espaço e no tempo com o congresso anual do Partido Trabalhista, onde foi notícia a insistência de Corbyn em relação à possibilidade de realização de um segundo referendo sobre o Brexit e seu pedido de eleições antecipadas se o plano da primeira-ministra britânica, Theresa May, fracassar nas tensas negociações com a União Europeia (UE).
Indo além da especulação em torno de se o Brexit se materializará finalmente em sua forma dura ou branda, David Graeber manifesta dúvidas sobre se, de fato, a saída britânica da UE chegará a ocorrer: “Eleições poderiam pôr Jeremy Corbyn à mesa de conversações com a Europa. E ele poderia dizer: eu represento o contrário do que vocês não gostavam dos trabalhistas nesta negociação. Comecemos de novo”. Interpretando à perfeição o papel de professor distraído que acabou de se levantar no meio da manhã e ainda não tomou café, elegantemente despenteado, usando blazer escuro, colete verde, camisa branca com vários botões desabotoados, calça marrom e sapatos combinando, tudo de segunda mão e com um acentuado toque britânico − “moro de aluguel muito perto de Portobello Road e compro toda minha roupa lá” −, Graeber se senta no movimentado lobby do hotel de Liverpool onde passou a noite antes de participar das conversas sobre o futuro da esquerda.
Pergunta. Quer dizer que 50% dos trabalhos que temos são uma merda?
Resposta. Não sei de maneira exata, mas o que sugiro com essa cifra é a quantidade de empregados que pensam que o que fazem não serve para nada. Para escrever sobre esse assunto, falei com diversos tipos de trabalhadores. Apenas 15% ou 20% diziam ser felizes com seu trabalho. E 37% afirmavam que o que faziam não contribui para absolutamente a nada. É algo que acontece em muitas organizações do mundo. Se uma enfermeira passa a maior parte de seu tempo preenchendo formulários em vez de atender os pacientes, sua essência está se desnaturalizando. E quando essa pessoa tem consciência da situação é que eu aplico a definição de trabalho de merda.
P. Você classifica os empregos como “não muito”, “altamente” e “totalmente” de merda. Ninguém está a salvo.
R. Exato. Eu também sofro disso. Há dezenas de obrigações e papelada que tenho de fazer e que há cinco anos ninguém precisava. Quanto mais pessoal administrativo há em uma universidade e mais postos de supervisão são criados em diferentes níveis, maior é a quantidade de burocracia exigida entre departamentos e menor é o tempo para pesquisar, dar aulas e ensinar.
P. Quanta merda você tem de aguentar em seu cargo?
R. É difícil medir. No meu caso, acho que meu trabalho não é ruim. Mas sou um workaholic. Trabalho o tempo todo. E em meus momentos livres escrevo livros.
P. Tem família?
R. Não. Meus pais e meu irmão, minha família nos Estados Unidos, morreram. Eu gostaria de formar uma algum dia.
P. E o que faz um anarquista na London School of Economics?
R. É preciso trabalhar. Depois que não renovaram meu contrato em Yale, enviei meu currículo a mais de 20 universidades dos Estados Unidos. Mas não me quiseram. Por isso, vim para o Reino Unido. A London School of Economics é uma instituição peculiar. Há departamentos que não têm nada a ver entre si.
P. Havia alguém relacionado ao pensamento anarquista em sua família?
R. Meu pai foi membro das Brigadas Internacionais. Lutou na Espanha durante a Guerra Civil e viveu em Barcelona. Aos 16 anos, deu-me de presente um exemplar de Homenagem à Catalunha, de Orwell. A maioria das pessoas não considera o anarquismo uma má ideia, e sim uma loucura. Mas uma das coisas que aprendi com ele foi que estas ideias não são um disparate, e que as pessoas podem conduzir a si mesmas.
P. Agora que vive no Reino Unido, quantos trabalhos de merda acredita que o Brexit vai deixar?
R. Não sei, mas para os advogados será a melhor coisa que já aconteceu. Será necessário reescrever tudo, conceber novas leis aqui e na União Europeia para um novo cenário. Embora eu não saiba se o Brexit chegará a se materializar. Não acredito que os trabalhistas tivessem uma ideia clara do que estavam fazendo quando o propuseram, embora tenham levado isso adiante. Há muitos precedentes deste tipo de catástrofe na história. Vejamos de novo a Primeira Guerra Mundial: nenhum dos atores tinha intenção de fazer o que anunciava, mas eles seguiram em frente e aconteceu o que aconteceu.
P. O Brexit lhe parece comparável à Primeira Guerra Mundial?
R. É a melhor analogia possível. Um cenário que também está cheio de tratados que ninguém entende, no qual ninguém esperava que acontecesse o que está acontecendo. Não acredito que as pessoas cheguem a lutar como na Primeira Guerra, mas os resultados serão catastróficos. Surgirão novas obrigações, legislações complexas… Por isso, se houver um coletivo que sairá ganhando com o Brexit, serão os advogados.
P. Como avalia o papel que instituições importantes como a London School of Economics desempenharam antes do referendo do Brexit?
R. É um problema: é chato que apontem para nós quando a maioria dos estudantes desta universidade é de fora do Reino Unido. É uma instituição internacional. E uma das coisas que me assustaram com o anúncio do Brexit é que há uma parte de financiamento europeu. Talvez pudesse haver alguma complacência antes do referendo, mas ninguém acreditava que Donald Trump ganharia as eleições nos Estados Unidos. A partir de um movimento como o Occupy Wall Street, contra a corrupção do sistema político, tentamos alertar que as pessoas já não aguentavam mais.
P. Talvez movimentos como o Occupy Wall Street tenham ajudado a impulsionar a raiva necessária para acabar elegendo Trump?
R. Não acredito que tenhamos esse poder. A ira daqueles eleitores já estava lá. Nós dizíamos o que nenhum meio de comunicação nem membros da classe política diriam, embora todos pensassem assim. Todo mundo está de acordo quanto ao fato de que os sistemas políticos são corruptos. Se não foram apresentadas soluções construtivas, as pessoas apostarão em medidas destrutivas. Daí o avanço de Governos populistas eleitos democraticamente. E o aumento de suicídios, assassinatos e mortes por overdose em países como os Estados Unidos.
P. Até que ponto os economistas poderiam ter ajudado a entender o que estava ocorrendo antes da quebra do Lehman Brothers, há 10 anos, e da eclosão da Grande Recessão?
R. Às vezes as pessoas gostam de falar mal dos economistas com base na estupidez. Não acredito que o problema seja a estupidez, e sim a corrupção. Praticamente todos os economistas que não faziam parte da estrutura institucional sabiam o que iria acontecer. Era óbvio. Mas o papel dos economistas era negar, porque para isso eles eram pagos.
P. E o mercado financeiro é, para você, o paradigma de criação de trabalhos de merda.
R. Sim, é aí que tudo começa. Se você se dedica a extrair riqueza e a redistribuí-la, não há nenhuma motivação para ser eficiente; quanto mais ineficiente você é, mais você pode reter.
P. Por que você acha que parece impossível cumprir a profecia de Keynes sobre a jornada de 15 horas semanais?
R. Há várias razões. Por exemplo, politicamente sempre se disse que ter mais empregos é algo bom. Ninguém diz que temos muitos em nossa sociedade. Sempre se elogia o valor das famílias que trabalham duro. E o que acontece com as famílias que fazem isso com intensidade moderada? Não merecem nada? Sempre existiu uma pressão política para a criação de empregos. Isso é prosperidade? Depende do que cada um entende o que significa esse conceito, principalmente se valoriza o tempo livre.
P. Mas você precisamente se declara viciado em trabalho.
R. Dedico meu tempo livre a ler e escrever livros, mas aí não estou trabalhando para ninguém a não ser eu. Também gosto do meu ofício. Há algo perverso nisso, na verdade. Embora eu também acredite que meu trabalho crie um valor social. Recebi muitos telefonemas de estudantes anos depois de terem sido meus alunos para me agradecer pelo que aprenderam comigo. Não sei se com os banqueiros isso ocorre muito.
P. Entre os componentes de um trabalho de merda você identifica as reuniões desnecessárias, as interrupções absurdas, o tempo dedicado ao correio eletrônico…
R. Talvez o foco devesse ser colocado então na nefasta organização interna nas empresas. Sim. Muitas companhias são especialistas em criar merda interna. Qualquer organização faz isso. E diante da pressão de criar mais empregos, todas tendem a aumentar sua equipe com postos que não são tão necessários e criam mais níveis intermediários.
P. Você concentra o fogo nos advogados comerciais, mas muitos deles não acham que exercem um trabalho de merda. E, é claro, adoram o que ganham.
R. Principalmente os que estão no topo do ranking.
P. Você acredita que a ganância é a única motivação dos trabalhos de merda?
R. No caso dos advogados comerciais, sim. E depois está a máfia, que emprega diretamente o diabo. Mas temos de ser justos. Também não podemos criticar quem diz que não poderia desempenhar uma função que gere benefícios sociais e ao mesmo tempo pagar o aluguel.
P. Fomos enganados na escola quando nos disseram que seríamos melhores se trabalhássemos duro?
R. Com certeza. Predomina essa ideia de que você não é uma boa pessoa a menos que trabalhe mais do que realmente quer. Há estudos sociológicos que concentram a maioria dos valores ocidentais no emprego, mas ao mesmo tempo a maioria das pessoas odeia o que faz.
P. Lacaios. Capangas. Capatazes. Essas são algumas das categorias que você usa para afirmar que nos países ocidentais, mais que no capitalismo, predomina uma espécie de feudalismo medieval com incontáveis hierarquias entre proprietários e servidores. Mas talvez estejamos em uma situação um pouco melhor do que na Idade Média.
R. Há vantagens e desvantagens. Entre estas últimas se destacam os altos níveis de vigilância e supervisão: elogiam-se aqueles cargos que tomam decisões por outros. Sempre se pensou que só as pessoas que fabricam copos deveriam orientar quem fabrica copos: isso gerava certa autonomia. Mas hoje se tende a acreditar no contrário: só os formados nas escolas de negócios podem dirigir qualquer um. Quanto às vantagens do nosso tempo, há alguns elementos de democracia, avanços científicos…
P. Para você, uma receita para mudar o que não funciona seria a renda básica universal, garantida vitaliciamente a todo mundo, de modo que quem quisesse poderia se dedicar à poesia ou a ser cantor de rock. Independentemente da viabilidade da proposta e de que todo mundo tivesse talento para ser poeta, talvez nem assim muita gente chegasse a ser feliz.
R. O que está claro é que uma alta porcentagem dos empregados consideram que o que fazem diariamente não serve para nada. Outra coisa são os trabalhos perigosos ou desagradáveis, mas necessários, que deveriam ser mais bem pagos. Na grande maioria, aqueles que consideram seu trabalho desnecessário são infelizes. Não só no Ocidente. Recebi testemunhos parecidos de muitos lugares do planeta. Talvez devêssemos ajudar a repensar o significado do dinheiro.
P. E há aqueles que adoram o que fazem, mesmo que considerem seu trabalho uma porcaria.
R. Apenas 6%, segundo os estudos que tenho, estão satisfeitos com seu posto, apesar de não encontrarem nenhum propósito naquilo que fazem.
P. Acredita que são manipulados pelo mercado? Ou pelo 1% que monopoliza a maior parte da riqueza?
R. Não, provavelmente odeiam suas famílias. Ou algo parecido. Falando sério: o capitalismo descarrilará mais cedo do que tarde. Acontecerá em 30, 40 ou 50 anos. E isso não quer dizer que virá algo melhor. Pode ser algo até mesmo pior.
P. Você acha que a vida é uma merda?
R. A vida é o contrário. Por isso é tão absurdo vivê-la fingindo estar ocupado. O funcionário de uma loja que fica a maior parte do tempo reorganizando prateleiras até que entre um cliente, simplesmente para que seu chefe acredite que ele está ocupado, está transformando seu trabalho em uma merda. É um exemplo que vale para qualquer outro âmbito. Estamos presos em um círculo vicioso. Passamos tanto tempo trabalhando duro, ou fingindo que batalhamos duro, que não sabemos o que aconteceria se parássemos de fazer isso. Do ponto de vista liberal, sempre se disse que isso geraria mais crime e mais drogados, que as pessoas não saberiam administrar tanto tempo livre. Muito bem, coloquemos as pessoas na prisão durante oito horas por dia. Afinal, é o mesmo efeito causado pelos empregos desnecessários. Esse é um dos motivos do aumento dos casos de depressão: é contra nossa natureza conviver com a moral que exige que passemos oito horas trabalhando continuamente, independentemente de haver ou não algo a fazer.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/10/actualidad/1539173321_857486.html
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!