Bielorrússia e autoritarismo soviético

Yavor Tarinski entrevista o anarquista e ex-prisioneiro Ihar Alinevich

Ihar Alinevich é um anarquista da Bielorrússia (um país que ainda vive na era soviética) que pagou caro por suas idéias, passando pelo inferno do sistema penal bielorrusso. Tivemos a rara oportunidade de encontrá-lo e fazer uma entrevista para a revista antiautoritária grega Babilônia sobre a situação em seu país e o movimento libertário de lá. O que está sendo descrito a seguir acontece na vida real e no século XXI, em um país que hoje está sendo considerado como “Estado europeu civilizado”.

Ihar Alinevich é uma das vítimas da onda de repressões de 2010 na Bielorrússia contra os antiautoritários. Como um anarquista e participante ativo em manifestações, Ihar teve que deixar o país para evitar a perseguição, fugindo para Moscou. Em 28 de novembro de 2010, porém, ele foi sequestrado por agentes bielorrussos da KGB e levado de volta à Bielorrússia, onde foi submetido a julgamento por farsa e considerado culpado de ataques incendiários contra o Belarusbank e o cassino “Shangri La”, assim como por jogar um sinalizador na Sede geral das forças armadas bielorrussas durante uma manifestação antimilitarista em Minsk. Ele foi condenado a 8 anos em uma colônia de trabalho corretiva com regime reforçado. Manifestações em solidariedade a ele e a outros prisioneiros políticos bielorrussos foram organizadas em cidades de todo o mundo.

Após sua libertação, Ihar foi forçado pelas autoridades a deixar a Bielorrússia permanentemente. Ele escreveu um livro chamado “No Caminho para Magadan: Diário do Prisioneiro” (2014), no qual ele descreve o regime da Bielorrússia, sua experiência torturante na prisão, bem como elabora suas idéias libertárias.

Algumas notas sobre a atual realidade política da Bielorrússia

Após a independência da Bielorrússia da União Soviética em 1991, o social-democrata Stanislav Shushkevich tornou-se chefe de Estado até 1994, quando perdeu do comunista Alexander Lukashenko. Lukashenko permanece no poder até hoje – vencendo, consequentemente, 5 eleições presidenciais, com cerca de 80% dos votos de cada vez. Pertencente ao quadro de confiança do regime comunista, ele era um diretor de um kolkhoz, serviu nas tropas de fronteira soviéticas e foi um oficial político adjunto no exército soviético. Lukashenko foi o único deputado a votar contra a independência da Bielorrússia da União Soviética em 1991. O Partido Comunista da Bielorrússia está apoiando totalmente a presidência de Lukashenko.

Hoje em dia, a Bielorrússia continua a funcionar de maneira soviética: de maneira fortemente autoritária. A maior parte da economia ainda está sob controle estatal. É o único país onde a KGB continua a funcionar após a dissolução da União Soviética. Em nível simbólico, o brasão nacional mantém sua estética soviética com espigas de trigo e uma estrela vermelha, com apenas o martelo e a foice, que costumavam estar no meio do símbolo, para serem substituídos por um mapa vermelho da Bielorrússia. É também o último país que celebra oficialmente o Dia da Revolução de Outubro: O único outro país onde este feriado foi observado até os últimos anos foi o Quirguistão, onde desde 2017 foi substituído pelos “Dias de História e Memória Ancestral”.

A moderna Bielorrússia foi rotulada como a “última ditadura da Europa”. Como Ihar escreve em seu livro: “não há possibilidade de expressão política pública. Absolutamente todas as iniciativas políticas pacíficas na Bielorrússia são duramente reprimidas: é impossível realizar um piquete legal ou uma manifestação, uma discussão aberta ou reunião – as pessoas são detidas mesmo em concertos punk”. Dezenas de milhares de pessoas estão detidas em prisões e em colônias trabalhistas. Mas seu sistema autoritário extremo não impede que os EUA e os países da UE façam negócios com ele.

A posição geográfica da Bielorrússia faz dela um importante local para o transporte de enormes quantidades de gás natural, petróleo e outras matérias-primas da Rússia para a Europa Ocidental. Em 2016, a UE chegou a suspender a maioria das sanções impostas ao regime, devido aos crescentes interesses econômicos de Bruxelas no país, o que levou a intensos protestos de organização de direitos humanos.

A entrevista com Ihar Alinevich

Quanto tempo você ficou na prisão e quando eles deixaram você ir? Como foi a experiência de uma prisão comunista do século 21?

Ihar Alinevich: Passei quase 5 anos na prisão. Durante esse tempo, mudei duas prisões de prisão preventiva e duas colônias penais. A prisão e a permanência no centro de detenção da KGB estão descritas no livro “Going to Magadan”. As condições estavam constantemente piorando, não apenas para prisioneiros políticos, mas em geral para todos os prisioneiros. Passei 126 dias nas celas de castigo e 80 deles – durante o último ano de detenção, quando a autoridade me mandou para uma “colônia vermelha” especial, que era supervisionada pela KGB.

Apesar do fato de que o número de prisioneiros na Bielorrússia é um dos mais altos, as pessoas sabem muito pouco sobre as prisões, embora a cultura de massa esteja profundamente infiltrada com jargões e conceitos da prisão. Aparentemente, esta é uma reação defensiva psicológica das pessoas que passaram pela repressão em massa do comunismo.

O que eu vi foi um choque para mim. Eu esperava algo bem diferente: a habitual atitude rude e violenta dos guardas, assim como ameaças de criminosos, como nos filmes. Na realidade, a principal ameaça era o sistema científico de supressão das massas, introduzido pelos comunistas e levado à perfeição em 90 anos.

As prisões modernas diferem do GULAG por 4 características: não há mais mortes pela fome (mas há uma existência meio-carente), a temperatura no quartel foi melhorada (mas você ainda precisa dormir em roupas e cobrir-se com uma jaqueta acolchoada), não há trabalho exaustivo (mas o prisioneiro ainda é trazido para zonas industriais para trabalhar e não recebe dinheiro) e a prática de matar prisioneiros sem nenhuma razão real foi encerrada (embora às vezes exceções sejam possíveis).

No entanto, basicamente, este é um campo de concentração real, destinado a destruir uma pessoa moralmente, espiritualmente e tornando-a imprópria para a sociedade. Portanto, a maioria dos libertados (56%) volta ao acampamento de novo e de novo.

Poucos dias antes da minha libertação, fui acusado de violações criminais da ordem da prisão. Isso significou até 2 anos além do meu tempo de prisão. Para alguns prisioneiros, incluindo políticos, tal medida foi de fato aplicada. Mas, durante os anos que passei lá dentro, acostumei-me à ideia de passar na prisão tanto quanto as autoridades decidem. Eu fui repetidamente oferecido para assinar uma petição por clemência e liberação, mas é claro que tal ato seria absolutamente inaceitável para a entidade anarquista e para a dignidade pessoal.

No entanto, antes das eleições presidenciais em 2015, Lukashenko libertou 6 presos políticos, em uma tentativa de mostrar uma face mais humana. A KGB me colocou numa vigilância externa e exigiu que eu deixasse o país, caso contrário, eles me acusariam de preparar um ataque terrorista contra o presidente. Decidi não verificar a credibilidade da ameaça deles e deixei a Bielorrússia. A polícia ainda foi na casa dos meus pais para verificação formal.

Conte-nos algumas palavras sobre o autoritarismo e a vigilância na moderna Bielorrússia. A KGB ainda existe?

IA: A KGB não poderia estar ausente, porque o sistema bielorrusso é o fragmento mais bem preservado da União Soviética. Mais do que a Rússia e a Ucrânia. As mesmas pessoas que estavam no poder antes do colapso da URSS permaneceram no comando do país. Burocratas e “diretores vermelhos” só mudavam a bandeira e o retrato do governador nas paredes de seus escritórios. Quase tudo está concentrado nas mãos da elite dominante. Os competidores políticos foram mortos nos anos 90. Em vez de muitos oligarcas, temos um super-oligarco. Além de Lukashenko, não há outros políticos, não há debates, ninguém se atreve a contradizê-lo. Até mesmo a oposição liberal é reduzida à decoração, de modo que o regime pode falar por trás de uma fachada democrática. Qualquer ministro ou general pode facilmente ficar atrás das grades. Isso claramente lembra o estilo de administração de Stalin. Ideologia – o patriotismo da Segunda Guerra Mundial, enquanto a enorme estátua de Lenin fica bem na praça central de Minsk.

O que fez você e seus companheiros se tornarem antiautoritários? Qual foi a influência das revoltas de dezembro de 2008 na Grécia entre os radicais bielorrussos?

IA: A base da minha geração de anarquistas era a subcultura punk. Foi um protesto niilista contra a sociedade e o anarquismo foi percebido como uma continuação. Junto com isso, fomos formados no momento da ascensão do movimento de libertação nacional, quando as ruas estavam agitadas por manifestações com dezenas de milhares de pessoas e confrontos com a polícia. Muitos anarquistas em seus 13-16 anos apareceram nesse ambiente, inclusive eu.

Nos anos 2000, duas alas foram designadas no movimento libertário bielorrusso. O primeiro, vamos chamá-lo de “Eurolie”, queria repetir a experiência ocidental: subcultura, ocupações, antifa, ecologia, feminismo, LGBT, gênero. O outro, “social revolucionário”, baseava-se mais no anarquismo clássico. Afinal, poderíamos obter os livros antigos de Bakunin e Kropotkin e aprender sobre a história do movimento revolucionário nos tempos dos czaristas. Além disso, desde os anos 80, vários teóricos anarquistas permaneceram na Rússia; eles publicaram artigos e livros sobre a guerra civil espanhola, as revoluções russas, a Internacional etc. Foi nossa fonte de exemplos. Ao mesmo tempo, quase não havia livros sobre o anarquismo do pós-guerra, nós não experimentamos os anos 60-80. Tudo o que sabíamos eram alguns artigos simples sobre a cena autônoma alemã e o alterglobalismo. Foi muito… diferente de Makhnovshchina.

Muitos de nós queriam romper com o gueto subcultural, queríamos um movimento trabalhista em massa. Agora eu não posso nem acreditar, mas eu me considero um anarcossindicalista ortodoxo que honrou a CNT como um ideal. Naquela época, eu não sabia que os anarquistas também estão criando sua própria mitologia. De qualquer forma, os trabalhadores eram passivos, não havia sindicatos nem moderados, um completo nada. Houve um silêncio político e esse silêncio era insuportável.

Eventos na Grécia em 2008 se tornaram a estrela-guia. Foi um sinal para muitos, muitos grupos localizados sobre o vasto espaço da ex-URSS. Temos a esperança de romper o muro da indiferença e nos aplicar em uma tentativa real.

Por que os anarquistas são considerados pelo regime da Bielorrússia como o principal inimigo? Quais outros grupos estão sendo reprimidos?

IA: A ironia é que os anarquistas não representam uma ameaça real. A polícia é muito bem versada no movimento, suprimindo instantaneamente todas as novas abordagens e realizando repressões pontuais. A questão é diferente: os anarquistas foram nomeados pelo governo para o papel de bodes expiatórios.

O autoritarismo não pode existir sem a imagem do inimigo. Anteriormente, a propaganda do governo baseava-se na retórica anti-ocidental, o principal inimigo era a oposição como uma “quinta coluna”. Hoje, a oposição tem uma existência miserável, é difícil ser apresentada como uma ameaça real. Além disso, após o início dos conflitos com o Kremlin, o regime flerta com o Ocidente. Portanto, a autoridade mudou a imagem do inimigo de externo para interno.

Não apenas anarquistas foram declarados inimigos, mas hooligans de futebol e fascistas também. Agora os representantes desses movimentos na prisão têm que usar crachás amarelos especiais, que significam “propensos ao extremismo”. O governo estava assustado com a Maidan ucraniana, por isso estava determinado a neutralizar todos os movimentos informais da juventude. Os anarquistas receberam simplesmente o papel do homem de frente.

No entanto, o principal grupo social que enfrenta a repressão em massa real são os viciados. Em 2015, a mídia incitou a histeria antidrogas e Lukashenko exigiu a criação de campos de prisioneiros especiais para os viciados e “um regime que os obrigue a pedir a pena de morte”. Eu pessoalmente vi essas mudanças nas colônias penais quando todos os viciados foram transferidos para uma barraca superpovoada.

Quantos são os presos políticos na Bielorrússia hoje? Existem prisões separadas para prisioneiros políticos e não-políticos?

IA: A autoridade não reconhece a existência de presos políticos, então eles estão detendo-os junto com outros prisioneiros. Mas a pressão sobre a administração da prisão vinda de cima é um indicador claro de quem você é. As condições para os presos políticos são sempre piores do que para os presos comuns (exceto para detentos anti-regime) e geralmente pioram com o tempo. Por exemplo, a administração pode proibir que os prisioneiros conversem com um preso político. Ou constantemente jogando o prisioneiro político na solitária por nenhuma razão real. Tal abordagem é ainda mais evidente do que a opinião pública, porque a sociedade questiona incessantemente quem considerar prisioneiro político, e quem não.

A questão dos presos políticos na Bielorrússia é muito semelhante à situação durante o GULAG. Dos muitos milhões de pessoas, condenadas sob artigos políticos, apenas uma quantidade muito pequena tinha relações com grupos políticos. As pessoas eram simplesmente designadas ao papel de atores políticos para justificar a existência de repressões de massa. O objetivo era criar uma atmosfera sobrecarregada para eliminar os concorrentes na luta pelo poder, bem como criar um enorme exército de trabalhadores para a industrialização.

Agora não há necessidade de industrialização, mas a retenção de poder ainda é relevante. Além disso, um número tão grande de prisioneiros é um negócio lucrativo. A Bielorrússia ocupa uma posição de liderança no mundo no número de policiais. O que eles farão sem uma enorme massa de pessoas condenadas anualmente?

Conte-nos algumas palavras sobre o movimento libertário bielorrusso: quais são suas raízes, quando os primeiros anarquistas bielorrussos apareceram e existiram durante a era soviética?

IA:As raízes do movimento anarquista remontam aos dias do império czarista. Em geral, o movimento revolucionário era muito mais forte nos arredores da periferia: Letônia, Polônia, Bielorrússia, Ucrânia e Cáucaso. Na primeira Revolução Russa de 1905, anarquistas na Bielorrússia tornaram-se uma força muito formidável. O movimento era originalmente de natureza internacional: muitos judeus viviam em cidades bielorrussas (muitas vezes mais da metade da população), bem como poloneses. O principal impulso foi dado pela Federação “Pão e Vontade”, formada na Suíça e conectada com Kropotkin.

No decorrer da radicalização, surgiu a Federação “Bandeira Negra”, cuja estratégia combinava a luta trabalhista, as expropriações e o terror. Devido ao fato de que o terror era dirigido principalmente aos representantes do governo e da burguesia, a “Bandeira Negra” rapidamente ganhou muito apoio dos trabalhadores. A juventude dos partidos socialistas (judeus, polacos e bielorrussos) começou a juntar-se maciçamente aos anarquistas. As autoridades reagiram com execuções imediatas, porque os anarquistas muitas vezes escapavam das prisões ou atacavam comboios. A idade média dos anarquistas foi de 16 anos, cerca de 70% morreram ou foram presos.

Aqueles que sobreviveram ao trabalho árduo e à emigração retornaram mais tarde e desempenharam um papel significativo na Revolução de 1917. Em geral, o anarquismo bielorrusso foi distinguido por seu caráter internacional e radicalismo.

Após a revolução, a Bielorrússia foi dividida entre a URSS e a Polônia. O NKVD rapidamente neutralizou os anarquistas, porque os bolcheviques os conheciam bem pela resistência armada subterrânea durante a ocupação alemã da Primeira Guerra Mundial. O renascimento do movimento do zero absoluto começou apenas nos anos 80.

Há muita controvérsia em relação ao imposto sobre “parasitismo social” na Bielorrússia, que obriga os desempregados a pagar por serem “inúteis” para a sociedade. O que aconteceu com essa lei?

IA:A verdadeira razão para a introdução do imposto é que um grande número de bielorrussos (0,5 a 1 milhão) trabalha no exterior e não paga impostos. Parece-me que o próprio governo não esperava tal reação, não esperava que atingisse verdadeiramente os desempregados. Pela primeira vez em 20 anos, o país viu um protesto verdadeiramente social. E, a princípio, as autoridades não sabiam o que fazer com isso, porque usar a polícia significaria destruição completa da imagem do “governo do povo”. Antes, a polícia era usada para esmagar a oposição ou os estudantes, mas nunca os trabalhadores comuns.

Agora as autoridades estão aplicando uma nova abordagem: uma pessoa que trabalha no exterior recebe uma notificação de que ele é um “parasita” e, para provar o contrário, você deve fornecer seus dados pessoais, em particular, um contrato de trabalho. Eu chamaria isso de um novo instrumento de totalitarismo: método de controle dos cidadãos não apenas dentro do país, mas também fora dele.

Fonte: https://www.babylonia.gr/2019/02/04/leukorwsia-kai-sovietikos-apolytarxismos/

Tradução > Revanche dos Oprimidos!

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