Um jornal de grande circulação recentemente veiculou matéria sobre os 15 anos da Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (MINUSTAH), missão de paz criada pelo Conselho de Segurança da ONU para “restaurar a ordem” depois da deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide.
A partir da divulgação de um documento sigiloso, o jornal expôs o óbvio ululante, isto é, o programa militar do exército brasileiro, sobretudo, nas favelas da capital Porto Príncipe. O documento descreve a operação, em 2005, de execução de Emmanuel Walmer, conhecido como ‘dread’, jovem identificado como um dos principais alvos da operação após a ação armada, levada adiante por ele, que terminou com a libertação de mais de 400 presos da Penitenciária Nacional. Para a “captura” do “perigoso” Walmer na favela de Cite Soleil foram utilizados mais de 20 mil projéteis, resultando em dezenas de mortos e feridos, incluindo crianças.
A matéria salientou a participação militar maciça do Brasil no Haiti, ainda nos primeiros anos do governo Lula, composta em boa parte por oficiais que hoje compõem os quadros do atual governo Bolsonaro (8 ministros). A presença militar, após mais de duas décadas de ditadura, e em plena democracia, seja em governos à direita ou ao centro e até mesmo à esquerda, explicita, mais uma vez, a diferença e singularidade dos combates anarquistas.
O anarquista Jaime Cubero, certa vez, escreveu: “o grande problema do militarismo, a mais séria questão a ser encarada e que só o movimento anarquista coloca, está além da organização militar”. Antes de citar os variados congressos operários que assumiram a recusa ao militarismo, Cubero argumentou: “os anarquistas têm a convicção de que numa sociedade capitalista, seja de livre mercado, seja de capitalismo de Estado, o militarismo jamais será eliminado. (…) É tradição do movimento anarquista combater o militarismo. A luta contra a instituição militar, face às suas características atuais, não pode ser isolada da grande luta pela transformação da sociedade”.
Para além dos documentos resultantes de congressos como o de Bruxelas (1886), passando pela Internacional Antimilitarista de Amsterdam (1904), a formação do Bureau Internacional Antimilitarista (1921), em Haia, que depois da Segunda Guerra Mundial transformou-se em Internacional dos Resistentes à Guerra, e também de lutas estampadas no periódico Jiyû Rengô no Japão (1931); os escritos de Maria Lacerda de Moura na primeira metade do século XX; e os congressos do Grupo Anarquista de Hiroshima (1985) e ativos até hoje, o que jamais faltou entre os libertários foram vidas intensamente antimilitares.
a arte contra o Estado
30 dias de prisão foi a sentença dirigida ao anarquista Julian Beck após ser detido pela polícia, em 12 de julho de 1957, Nova York, em protesto contra a imposição dos chamados testes antiaéreos conduzidos pelo governo dos Estados Unidos. Durante o mandato do republicano Eisenhower (1953-1961), sob a justificativa de garantir a segurança da população frente ao “inimigo vermelho” (a guerra contra a Coreia havia sido iniciada no primeiro ano de seu mandato, e no último ano de seu governo os EUA triplicariam as tropas em solo vietnamita), os testes iniciavam-se com o som de um alarme. A partir do alerta, a população das grandes cidades do país era treinada a esconder-se em refúgios contra bombardeios inimigos.
Beck, detido com Judith Malina e Dorothy Day, foi enviado à prisão de Hart Island, onde recebeu o uniforme cinza e cumpriu metade da pena dividindo a cela com outros cem homens. A outra metade cumpriu em Tombs, prisão de segurança máxima, em um espaço exíguo sem janelas e acesso ao pátio. A prisão, porém, não foi obstáculo às ações diretas do artista anarquista, um dos inventores do The Living Theatre (TLT). Nos anos seguintes, ainda ao lado de Malina e Day, o artista empolgou os protestos que, em 1961, culminaram na abolição definitiva dos testes militares. E mais adiante, em 1962 e 1963, articulou a “Greve Geral pela Paz”. Com a presença de inúmeros militantes e artistas (como o então desconhecido Bob Dylan), ao longo das greves, no meio da rua, conferências antimilitares, passeatas, shows, formaram o que alguns pesquisadores identificaram como as primeiras ações de rua do TLT.
Quase um século antes de Beck, por conta de uma renhida resistência antimilitar, o pintor anarquista Gustave Courbet, também foi condenado: 6 meses na prisão de Saint Pelágie e multa de 500 francos, foi a pena imposta por autoridades francesas, em junho de 1871, ao artista amigo de Pierre-Joseph Proudhon e Baudelaire. Desde 1848, Courbet era alvo do Estado por atitudes radicais, entre elas, suas afirmações antimilitares. Em 1870, a convite de Victor Considerant, editor do combativo periódico La Phalange, em meio ao conflito entre França e Prússia, declarou aos soldados prussianos: “suas mulheres e filhos estão chamando-os com fome. Nossos camponeses, que vieram lutar contra suas culpáveis iniciativas, estão no mesmo caso que vocês. Quando voltarem, gritem ‘Viva a República!’ Abaixo as fronteiras!”. Precisamente por conta de sua contundência antimilitar, Courbet foi levado a julgamento em junho 1871. Sob a acusação de ter sido o communard responsável, à frente da Associação de Artistas, pela demolição da Coluna Vendome, monumento erigido por Napoleão e que, segundo o artista, era “desprovido de qualquer valor artístico, tendendo a perpetuar, por sua expressão, as ideias das guerras”. Foi encarcerado e, posteriormente, enviado ao exílio, onde morreu em 1877.
Somado às greves gerais do The Living Theatre, responsáveis pelo fim dos testes anti-aéreos e a abolição do monumento napoleônico pelo communard Courbet, ainda poderíamos citar como exemplos antimilitares, o Cabaret Voltaire, inventado em Zurique, em plena primeira guerra, por Hugo Ball, artista que também foi um dos tradutores suíços das obras de Mikhail Bakunin. Ali, houve uma reunião de refratários, em 1916, enquanto a Europa tornava-se um açougue (expressão usada por Ball), que o dada Huelsenbeck descreveu: “nenhum de nós tinha esse tipo de coragem que consiste em fazer-se fuzilar pelas ideias de uma nação que, no melhor dos casos, é apenas um consórcio de traficantes de peles”.
Ao mesmo tempo dos dadas, nas Américas, jornais como o Mother Earth, de Emma Goldman e Alexander Berkman, nos Estados Unidos; o Jiyu Rengô destacava em meio ao crescente militarismo japonês “devemos cessar a produção militar, recusar o serviço militar e desobedecer aos oficiais”, e na década de 1980, os panfletos do Grupo Anarquista de Hiroshima estampavam “contra a guerra, contra a energia nuclear contra o Estado”; A plebe e A Guerra Social, no Brasil, escancaravam a incompatibilidade entre os anarquismos e o militarismo. Por aqui, no meio da guerra, Florentino de Carvalho disparou: “invoca-se também a defesa da pátria. Bravo! Que a defendam os proprietários, os que gozam da riqueza do país. Nós os assalariados e proletários, nada podemos defender porque não gozamos de patrimônio algum, não possuímos casa, não temos eira nem beira”. Em alguns jornais operários da época, como maneira de combate ao militarismo, mulheres anarquistas recomendavam a abolição da noção de pátria na educação. “Vossos filhos nenhum dever tem a cumprir para com ela e que quando, em nome dessa pátria, os vierem arrancar aos vossos braços devei revoltar-vos”.
Em 1932, Maria Lacerda de Moura escreveu sua recusa ao serviço militar obrigatório, confrontando também as mulheres que, domesticadas e servis, sustentavam a guerra, e aquelas que reivindicavam seu dever de servirem à pátria como os homens. Contra o Estado, o militarismo e o fascismo, ela declarou guerra à guerra. “A luta contra a guerra é uma guerra tremenda, a luta aberta, de vida ou morte, contra todas as forças sociais reacionárias, é a ação direta, a mais poderosa força revolucionária do mundo moderno. Todos os governos são cúmplices, consciente ou inconscientemente, dos canibais civilizados, forjadores das guerras.”
uma breve nota de anarquia
Voltando a 2019, no último mês, quase que simultaneamente à divulgação dos documentos sobre a MINUSTAH, um sociólogo ex-secretário de segurança pública publicou “desmilitarizar”, seu mais recente livro. Oportunista, o sociólogo ex-secretário de segurança pública, se tivesse um pingo de coragem, antes de pensar nesse “título” deveria queimar todos os seus títulos junto com seus ternos, gravatas e arquivos com pronunciamentos em programas sérios da TV aberta ou a cabo. Anarquistas sabem da importância do “des”, prefixo de negação. Todavia, o próprio uso cabotino pelo sociólogo ex-secretário de segurança pública expõe seu limite.
A vida é mais, é uma afirmação. E quando ela irrompe não tem fardo ou farda. Nos próximos protestos lembremos de Cubero. É preciso lutar urgentemente contra os militares e a ampliação de seu poder em qualquer governo enquanto houver Estado. E que essa luta se intensifique e se volte contra a própria política que, de tempos em tempos, recorre a botas e uniformes batendo continência. Hoje é urgente uma atitude antimilitar e esta é uma afirmação singularmente anarquista.
Hypomnemata
Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 211, abril de 2019.
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Alberto Marsicano
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!
Um puta exemplo! E que se foda o Estado espanhol e do mundo todo!