Texto e fotografia Franco Giorda | 26/05/2019
Carlos Taibo é autor de uma vintena de livros e professor de Ciências Políticas e de Administração na Universidade Autônoma de Madrid (Espanha). A partir de uma perspectiva libertária se dedicou ao desenvolvimento das ideias de “colapso” e “Decrescimento”, com as quais traz um diagnóstico e uma saída ao atual estado do sistema econômico. Por sua vez estudou a história da União Soviética e a Rússia atual, os movimentos sociais, o fenômeno do 15-M, os problemas ambientais e outras questões.
Esteve no Paraná e em Santa Fé entre terça e sexta-feira da semana passada para apresentar seu livro Anarquistas de ultramar. Anarquismo, indigenismo e descolonização e participar do III Encontro Latino-americano e Europeu sobre Edificações e Comunidades Sustentáveis (Euro Elecs). A primeira atividade foi organizada pelo Espaço Libertário Paraná e o segundo pela Universidade Tecnológica Nacional, a Fundação Eco Urbano e a organização brasileira Antac.
Entra as várias atividades realizadas,Taibo manteve um diálogo com 170 Escalones sobre sua mais recente publicação, a conjuntura internacional e o estado atual do anarquismo.
Em relação ao seu último livro, qual é a razão de conectar o anarquismo, o indigenismo e a descolonização, movimentos e problemas que, a primeira vista, parecem como contextos diferentes?
O ponto principal é uma carência do pensamento anarquista clássico. Do meu ponto de vista, o anarquismo do século XIX dedica muito tempo refletindo sobre a questão nacional e pouco faz sobre a questão colonial e creio que, por trás disso, o que existe é uma ideia de que a civilização ocidental é superior, e isso justifica sua expansão por todo o planeta. Uma ideia que nasce, e é importante destacar, da fantasia que no anarquismo do século XIX eles produzem a ciência, a tecnologia, o trabalho e a ideia de progresso. A consequência é que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia foi produzido, antes de tudo, no mundo ocidental, o qual traz consigo a ideia de que a civilização correspondente é superior. Isso se traduz, por fim, em uma certa distância com relação aos povos indígenas que, em muitos casos, implantaram historicamente práticas de caráter libertário. Essa carência do mundo anarquista, com o passar do tempo, foi sendo suplantada, mas ainda assim creio que é preciso fazer uma descolonização definitiva no pensamento anarquista com a intenção de que, provavelmente, este último seja, entre os numerosos filhos da ilustração, o melhor preparado para assumir essa descolonização que creio que não tenha sido feita de maneira plena.
O que encontrou na sua indagação dos povo originários dos diferentes continentes que coincida com os princípios do anarquismo?
Em muitos casos, digo “muitos casos” pois existem realidades muito distintas, há sociedades com vocação francamente igualitária, que se organizam em assembleias às margens das estruturas tradicionais de poder, com uma repulsa expressa, orgulhosa e premeditada à instituição do Estado e com uma atitude extremamente respeitosa no que diz respeito ao meio ambiente, que desenha um horizonte muito diferente do nosso. Eu digo que as realidades são muito discrepantes. Antes que me pergunte, direi que essas sociedades também apresentavam problemas. Por exemplo, em muitos casos, identificavam de maneira muito rápida algo estrangeiro ao que é “nosso” que existia ao redor e com isso se assumia, com frequência, uma postura mais combativa. A condição das mulheres, muitas vezes, era de descriminação. Rita Segato afirma que na América pré-colombiana havia um patriarcado de baixa intensidade. O patriarcado não foi trazido pelos conquistadores europeus, já existia, mas não apresentava o perfil duro e contundente. Acrescento mais uma observação, porque eu mesmo estou cometendo um erro quando falo do passado. Muitas dessas comunidades sobrevivem. São realidades contemporâneas e isso é importante frisar.
Você mencionou o patriarcado e a postura mais combativa nos povos originários, e o que tem a dizer sobre a religião?
Em muitos casos estava ali presente, mas não sei se o termo “religião” em si nos guia ou nos confunde. Digamos que havia práticas ancestrais de cunho espiritual e eu não sou a melhor pessoa para qualificá-las. Em alguns casos, provavelmente, contribuíam poderosamente para esse cenário de sociedade igualitária e em outros não. Mas, certamente, estavam e estão presentes.
Relaciono o Encontro sobre Edificações e Sociedades Sustentáveis, o qual chegou a participar, à ideia de “decrescimento” que vem trabalhando bastante, o que você pode me dizer a respeito disso?
Sobre o decrescimento, é uma perspectiva que surgiu há algumas décadas de maneira simultânea na França e na Itália e que, em suma, diz que buscando riquezas para o hemisfério norte deixamos para trás o meio ambiente e os recursos do planeta, de tal modo que não há mais nenhuma alternativa, a não ser assumir o decrescimento no campo da produção e do consumo. É uma perspectiva que nos diz muitas coisas: por exemplo, que temos que recuperar a vida social que temos desperdiçado, obcecados como estamos pela lógica de produção e de consumo; que temos que repartir o trabalho; que temos que apostar em fórmulas de ócio criativo não mercantilizadas; que temos que reduzir as dimensões de muitas das infraestruturas que empregamos; que temos que defender a reconstrução da vida local em um cenário em que apareçam formas de democracia direta ou autogestão; ou, por fim, no campo individual, que temos que postular a sobriedade e a simplicidade voluntárias. Destaco que esta é uma perspectiva que surge nos países ricos para sua aplicação em países ricos, mas que tem muita relação, por exemplo, com a filosofia do “bem viver” de muitas comunidades indígenas na América Latina.
Você escreveu muito sobre a União Soviética e a Rússia…
Meu trabalho na universidade sempre foi esse.
Como você vê a era Putin?
Putin é um fenômeno muito singular que conseguiu unir as vontades de pessoas situadas no que, convencionalmente, chamamos de extrema direita e extrema esquerda. Penso que não contribui em nada genuinamente novo no campo político, econômico e social. É um conservador que dirige um país com uma veia autoritária muito poderosa, governado de fato pelas oligarquias que operam nas sombras e que conseguiu impulsionar a lógica imperial e o orgulho nacional que, creio eu, é muito falsa e equivocada, mas que explica porque produz certa fascinação, por exemplo, nos setores de esquerda que estão legitimamente obcecados com a hegemonia norte-americana e que anseiam que apareçam opositores. De tal maneira que preferem suplantar todas as demais questões em prol dessa contestação. Nesse sentido, admito que é um fenômeno interessante.
Como você qualifica o atual panorama da União Europeia?
O primeiro que se deveria fazer é se perguntar se este auge dos partidos de extrema direita, que é o código com o qual se descreve, realmente é o que é ou se estava ali presentes dentro dos partidos de direita tradicionais. Temo que isso foi o que ocorreu na Espanha. A União Europeia está em crise, isso é muito evidente, e não vislumbro nenhum mecanismo sério de resolução dessa crise em termos da lógica da UE; já não falo de minhas ideias, mais ou menos, radicais. Há tempestades por todos os lados. Há divergências muito agudas em termos de desenvolvimento entre a Europa mediterrânea e a mais setentrional. Há tempestades porque o desligamento do Reino Unido gera intermináveis polêmicas e não há o que fazer. Há tempestades porque há muito tempo existem governos de cunho nacionalista ultramontano como o húngaro que está em uma relação muito conflituosa com o resto. Há tempestades porque as políticas neoliberais difundidas por todos os governos vão gerando problemas sociais cada vez mais agudos, que tem hoje maior manifestação no movimento, muito interessante, dos Coletes Amarelos na França. Eu não percebo nenhum elemento de solução de todos esses problemas. De tal maneira que entendo que o futuro da União Europeia é muito obscuro. Acredito que não possa dizer outra coisa.
Como está o seu ponto de vista sobre a América Latina?
Minha tendência consiste, de novo, – em sintonia com o que disse antes a respeito dos partidos de extrema direita na Europa – em não me deixar levar em excesso por essa análise tão convencional da esquerda que diz que a América Latina vai mal porque as opções da direita tradicional obtiveram êxito na Argentina, no Chile e no Brasil. Essa postura supõe não levantar em consideração quais foram os erros dos governos de esquerda tradicionais. Eu acredito que para explicar o fenômeno (Jair) Bolsonaro no Brasil é absolutamente inevitável colocar o dedo na ferida de muitos dos elementos obscuros da política aplicada pelo partido do Lula, o PT. Soa como se o Bolsonaro surgisse do nada e não tivesse relação nenhuma com um modelo extrativista e hiper desenvolvimentista, nem com a corrupção estendida. Então, por um lado, sou pessimista, porque não me deixo levar por esses vai-e-vens. Apesar disso, creio que os movimentos sociais latino-americanos são muito mais interessantes do que os que acontecem na Europa, uma sociedade castigada pela lógica mercantil do capitalismo. Ao mesmo tempo, penso que muitas vezes são movimentos muito incertos, visto que a esquerda tradicional é muito pouca criativa, por exemplo, em matéria de contestação ao produtivismo e ao desenvolvimentismo. Nesse sentido, me parece que a visão dos governos da esquerda latino-americana não é nada saudável. É mais do mesmo. Creio que seja isso o que tem que ser dito se partirmos do pressuposto de que o kirchnerismo tenha sido um movimento de esquerda. Isso mereceria alguma discussão. Acredito que os elementos fundamentais da trama que rodeia a ideia de um colapso geral do sistema não foram encarados pela esquerda latino-americana como se deve, visto que produziu políticas e atitudes muito similares às da direita.
Em que situação se encontra o projeto anarquista?
Por um lado, me causa fascinação saber que na América Latina possa existir 500 ou 600 cidades com grupos anarquistas. Um raro movimento internacional que só poderia ser comparado com algumas estruturas do poder estabelecido, partidos liberais, partidos conservadores ou partidos sociais democratas. No entanto, esse movimento está muito fragmentado e com raros momentos de relação entre suas diferentes partes. Devo confessar que deposito mais esperança em iniciativas de cunho libertário, em virtude das quais, gente comum – não necessariamente anarquista – realiza práticas de autogestão e de apoio mútuo, e que fazem o que podem fazer os grupos ideológica e identitariamente anarquistas. Isso vale tanto para a América Latina quanto para a Europa. Na Espanha o movimento anarquista segue sendo forte em termos teóricos. Eu, muitas vezes, tenho acompanhado companheiros italianos, alemães ou portugueses que em uma cidade tão pouco afortunada nessa questão como é Madrid me dizem: ‘vocês têm sorte, os sindicatos têm suas sedes, os centros sociais estão ocupados, as assembleias do 15M”. Nós que estamos dentro da coisa não vemos tanta riqueza nesse fenômeno. No entanto, nos últimos anos há na Espanha um auge de iniciativas libertárias, de grupos de consumo, de cooperativas integrais que me parecem interessantes, entre tantas razões, por uma especificamente profunda: tenho que acreditar nas pessoas comuns, porque se não creio nas pessoas comuns tudo que digo perde o sentido. Estaria inclinado para um cenário de iniciados que seguem lendo e discutindo Kropotkin e isso é muito respeitável mas tem um alcance muito limitado. Sigo pensando que as pessoas comuns, muitas vezes, protagonizam iniciativas solidárias que são extremamente estimulantes e que querem dizer que, apesar de tudo, a lógica mercantil do capitalismo não penetrou totalmente suas mentes. É como se desenhassem diante do cenário de colapso, um cenário muito estimulante. Acredito fielmente que muitas das respostas aos problemas que não conseguimos obter no mundo ocidental do norte, chegarão dos países do sul. A respeito disso, o que propõe o zapatismo em Chiapas ou o Confederalismo Democrático em Rojava, na zona norte da Síria, me parece muito instigante, entre outras coisas, porque nasce de pessoas menos corroídas que nós pela lógica mercantil do capitalismo. De tal maneira que, ainda que o cenário seja sombrio, há alguns ventos de esperança nas mãos de pessoas comuns no norte e de determinados movimentos no sul. Dei esses exemplos, mas existem muitos outros.
Fonte: https://www.170escalones.com/con-animo-libertario/
Tradução > Daitoshi
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!