[Espanha] Poetisa, anarquista e pioneira do futebol feminino: A mulher que morreu sem fazer alarde.

O trabalho da injustamente desconhecida Ana María Martínez Sagi vem à luz em ‘La voz sola’¹, uma antologia publicada pela Fundação Banco Santander

por Juan Soto Ivats | 03/07/2019

Estamos falando de uma nonagenária que vivia sozinha em Moià, uma pequena cidade na Catalunha, quando recebeu uma carta inesperada entre os folhetos publicitários e as cartas típicas de sua caixa postal. A carta, escrita com uma caligrafia de outra época, cheia de vértices e curvas, anacrônica, vigorosa, pertence a um autor emergente e famoso: alguém com o vento de cara.  Esta carta lembra à velha mulher, algo que ela vem tentando esquecer há anos: quem ela é, qual é o nome dela e como foi sua história. Esta carta a deixa incomodada e deprimida.

Assim, ela a deixa junto ao resto das correspondências indesejadas no cesto de lixo. Não quer que lembrem seu nome pois assim não lembrarão de sua história. De fato, ela queria permanecer sem fazer ruído, sem deixar rastro, sem incomodar. Mas ela foi poetisa e tem, quem sabe, sua vaidade. Será por isso que decidiu ligar para o autor da carta depois de alguns meses? À beira de adormecer, um barulho a despertou.

A mulher se chama Ana María Martínez Sagi e o escritor que a procurou foi Juan Manuel de Prada. Isso faz vinte anos: foi o tempo que Ana Maria exigiu a de Prada para publicar seus manuscritos esquecidos, já contando com sua morte. Temia que sua história pudesse afetar a família da mulher que ela amou com todas as suas forças até sua morte. Deixou na terra a poeira do amor que Quevedo se referiu.

O interesse de Prada por Martínez Sagi despertou quando ele descobriu seu nome entre os de Unamuno², Pérez de Ayala e Blasco Ibáñez em um livro de entrevistas de César Gonzales-Ruano. Ruano a descrevia com as seguintes palavras: “poetisa, sindicalista e virgem do estádio” e contava que a mulher, jovem, acabara de chegar a Madrid para promover seu livro de poemas. De Prada seguiu a trilha nos arquivos do jornal e descobriu que Cansinos-Asséns a havia proclamado, na época da entrevista de Ruano: “herdeira de Rosalía de Castro”.

Mas os acadêmicos e especialistas em literatura espanhola e catalã não sabiam nada sobre ela. Algumas cópias de duas de suas obras nas bibliotecas públicas da Catalunha e o eco estrondoso de um desaparecimento era tudo que podia ser encontrado. Penso eu agora, quantos entre os da minha geração, como ela, esperam sua vez de serem esquecidos assim que o barulho das novidades for extinto, e quantos mais da sua seguem desconhecidos até mesmo para o olhar profundo de ‘Las armas y las letras’ de Andrés Trapiello.

|| Quantos entre os da minha geração, como ela, esperam sua vez para serem esquecidos assim que o barulho das novidades for extinto ||

O caso: uma amiga de Juan Manuel de Prada, funcionária do ministério da fazenda, encontrou essa escritora. Não nas bibliotecas, mas nos registros oficiais. Prada soube assim que a mulher ainda estava viva na Catalunha e escreveu-lhe aquela carta com a esperança de descobrir quem era e, mais importante, o que acontecera. Na segunda-feira, duas décadas depois, um compilado de suas poesias e publicações, editado pela Fundação Santander, foi apresentado no Liceu de Barcelona, com a presença de algumas autoridades. Sim, Martínez Sagi finalmente apareceria.

Uma mulher canta, outra grita.

Ana María Martínez Sagi era poetisa e esportista: jogava tênis, nadava, esquiava, jogava dardos e disco. Além disso era membro do Club Femení i d’Esports³  de Barcelona e, como  poetisa, me lembra, em seu texto “Luz e Barro”, a pastora Marcela do primeiro livro de Don Quixote. Lá, ela deu uma pista sobre a orientação de seu amor com um sopro de desgosto pelo desejo masculino: “Não se aproxime, então, homem. Você é feito / de carne e de desejo… A respiração que sai da sua boca / queima…”

Elisabeth Mulder ficou entusiasmada com aquele livro de poemas e o exaltou com as seguintes palavras: “uma mulher que canta, entre tantas mulheres que gritam”. Na entrevista de Ruano, ela se define: “Não sou vanguardista, nem ultraista, nem classicista, nem feminista… Me enojam muito os “istas” e os “ismos”. Se quiser me dar algum “ista”, pode ser sindicalista”. “Meu Deus!”, Ruano se encanta pouco depois: “Não me estranha que tivestes tantos problemas com tantas mulheres”. Mas seu desejo aponta para a outra pessoa mencionada neste parágrafo.

Durante a República continuou publicando livros. Ela viajou de Barcelona a Madri para promover seu trabalho e lutou para manter sua equipe esportiva. Enfrentava, por essa razão, críticas pouco elogiosas. O Club Femení i d’Esports despertava o receio dos reacionários e de uma boa parte das mulheres, que consideravam que o esporte feminino era uma desculpa para que seus maridos pudessem ir vadiar enquanto suas esposas faziam ginástica. Martínez Sagi seguiu adiante e iniciou sua carreira jornalística.

Mas acima de tudo, seu relacionamento de amor proibido começou com a poetisa que a elogiara, Elisabeth Mulder. Seria sua musa, sua mestra e o objeto de uma obsessão que não encontraria a satisfação completa. As más línguas diziam que tinham um relacionamento escondido e a própria autora sugeriu dessa maneira, já nonagenária, a Juan Manuel de Prada. Mas os mistérios de amor entre essas duas mulheres permanece, merecidamente, na especulação e na intimidade. E também codificado nos versos cruzados das duas mulheres, disponíveis para aqueles que querem se aproximar de seu trabalho.

Da palestra ao esquecimento.

A partir de 1933, sua vida dá uma reviravolta. Enquanto a República cavalga entre motins e sabres até a conflagração, seu Club Femení i d’Esports se envolve em outro tipo de guerra civil. As brigas e a maldade dos membros levam Ana María a sair. Nos artigos dessa época há uma reflexão sobre a falta de companheirismo que reina nos ambientes femininos, mas seu desencanto se atenua um ano depois, quando Josep Sunyol i Garriga a converte na primeira mulher a fazer parte da direção do Fútbol Club Barcelona.

Nesse mesmo ano escuta o anarquista Buenaventura Durruti no Palácio de Pedralbes e decide que esta será, junto ao catalanismo da Esquerda Republicana, sua luta. Em 1936 pede permissão para juntar-se à linha de frente de Aragón como repórter de guerra, lá há testemunhos de sua ousadia inconsequente: as balas e os morteiros apitam sob sua cabeça, mas Ana Maria não se agacha. Quando as tropas de Franco finalmente entram em Barcelona, ela foge para a França. Viverá em Paris até que os nazistas a invadam, seguirá rumo a Chartes, onde dormirá nos bancos das praças, e finalmente entrará para a Resistência junto a franceses, polacos e checos.

Uma noite, em 1942, ela escuta o som de botas na escada: é a Gestapo. Sem tempo para enfrentá-los, salta pela janela. Corre e corre; espera e espera, enquanto recita seus próprios versos para manter a mente ocupada. Por um milagre consegue se salvar e anos depois diz: “Toda a minha vida eu lutei contra as injustiças, a ditadura, a opressão e por isso decidi entrar para a Resistência. Salvei muitos judeus e muitos franceses que fugiram do avanço nazista. Sempre foi algo voluntário. Eu sempre fiz porque quis”.

Terminada a Guerra, segue seu caminho até Cannes com 18 francos no bolso e sobrevivendo como pintora, decorando lenços e vendendo-os na rua, até que, em mais uma reviravolta novelesca de sua vida, a esposa de um magnata de Aga-Khan lhe compra centenas de lenços por uma fortuna suficientemente grande. Com esse dinheiro ela adquire uma casa em Montauroux e lá passa a cultivar plantas aromáticas e vender sua essência para fazer perfumes.

|| Em 1942, escuta o som de botas na escada; é a Gestapo. Sem tempo para enfrentá-los, salta pela janela ||

Em 1966 se concede a primeira anistia para socialistas sem delitos de sangue e ela volta a Barcelona, mas encontra um território hostil e apagado: o mesmo que relatam outros exilados que regressarão antes de 1975. Sagi parte novamente, desta vez para os Estados Unidos, onde permanece até 1977.

Desde seu último retorno, já na Transição, sua existência e memória estão diminuindo. Distante da literatura, desencantada e solitária, sua vida segue sem grandes acontecimentos em Moià até a chegada da carta de Juan Manuel de Prada. Quem viveu, escreveu e lutou tanto não deve ser apagado sem perturbar. Morreu no ano de 2000 e agora ressuscita através de sua obra.

Fonte: https://www.elconfidencial.com/cultura/2019-07-03/ana-maria-martinez-sagi_2101982/?fbclid=IwAR0VCJ4W_7NuRnv5l9t6D-3M-sUgDqu0YK439Zdq_RI-GnmtJsKojwu3G9Y

>> Notas:

[1] “A voz solitária”.

[2] Miguel de Unamuno y Jugo (1864 – 1936): ensaísta, romancistas, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol.

[3] Clube Feminino e de Esportes de Barcelona, foi um dos espaços de mulheres e feministas mais importantes de Barcelona no período pré-guerra, era vinculado a propostas progressistas e catalanistas.

Tradução > Daitoshi

agência de notícias anarquistas-ana

O grito do faisão –
Que saudade imensa
De meu pai e minha mãe.

Matsuo Bashô