Da desobediência civil à insurreição popular: Uma reflexão sobre a revolta e o terrorismo de Estado na região chilena

O neoliberalismo agoniza na região chilena e quer levar-nos com ele. A raiva acumulada durante décadas encontrou sua faísca com o aumento da tarifa do metrô de Santiago, se estendendo pelos diferentes territórios controlados pelo Estado chileno. Não é estranho, portanto, que os atos de sabotagem, saques e incêndios apontassem para a infraestrutura das instituições que representam os setores da elite chilena que lucram dia a dia milhões (1).

Se o estado policial avançava implacável com novas legislações repressivas -na última década piorou a lei antiterrorista (2011) e a lei de controle de armas (2015), junto com a instalação do controle preventivo de identidade (2016) e a lei Aula Segura (2018),entre outras -, os protestos, principalmente dos estudantes, diante da intensidade da criminalização contra aqueles que denunciavam a violência sistemática do Estado e do mercado, nunca pararam. As evasões massiva que começaram com o aumento da passagem do metrô (2) – a quarta em dois anos- terminaram por desmascarar o fascismo e a soberba da classe política conservadora, que num primeiro momento zombou da raiva social e ameaçou em aplicar a lei de segurança interior do Estado, para logo desencadear uma onda repressiva extrema – como não se via desde tempos ditatoriais (3) -, invocando o estado de emergência em praticamente todo território que pretendem controlar. O paraíso de consumo neoliberal, viu novamente os militares empunhar as armas contra as pessoas que dizem defender, castigando a desobediência com várias mortes, centena de feridos e milhares de detidos, minando a dignidade dos lutadores sociais através das mais aberrantes torturas, utilizando o sequestro e a violência política sexual em numerosos casos conhecidos (4) – aplicando no novo contexto alguns dos métodos de contrainsurgência – para instaurar o medo e frear o movimento social insurreto, tudo isso para resguardar a propriedade privada, privilegiando a defesa das multinacionais (supermercados, farmácias, shoppings, etc.) e instituições estatais antes das vidas das pessoas (5), lembrando-nos sua função como defensores dos privilégios dos poderosos.

A pesar dessa crescente onda de violência perpetrada por militares e policiais, os bairros e comunidades têm respondido com valor e dignidade, enfrentando incansavelmente as forças repressivas, ocupando as ruas uma e outra vez com barricadas e ataques as instituições e símbolos do poder que estão há décadas roubando a todos que habitamos a região chilena. A sociedade não acreditou no discurso oficial do governo de turno, que tentou se posicionar por meio de uma guerra psicológica criminalizadora das legítimas demandas de um povo exausto, que finalmente começa a enxergar de maneira clara como funcionam as engrenagens de um sistema social e econômico desigual a beira do colapso. É necessário não esquecer que a atual revolta vem para aglutinar uma variedade de demandas de parte das comunidades e bairros mais desfavorecidos na região; onde o pontapé inicial pode identificar-se no mochilaço (2001), que continuou com vários protestos nas últimas duas décadas: revolução dos pinguins (2006), greve de fome dos presos políticos mapuche (2010), mobilizações estudantis contra o lucro (2011), revolta social de Aysén (2012), protestos de pescadores artesanais contra a lei de pescas (2012), revolta social de Chiloé (2016), protestos contra as AFP (2016), a revolução feminista (2018) e a revolta pela crise ambiental de Puchuncaví-Quintero (2018), para nomear só algumas das mais relevantes.

Acreditamos que é necessário enfrentar a instalação, sem caretas, do estado policial e relevar os caídos sem baixar os braços, enfrentando os ataques do Estado desde todas as trincheiras possíveis. É a hora de nos reencontrar em nossos territórios e comunidades, reconstruir confianças ao fogo das barricadas e caçaroladas pela eliminação de um sistema ecocida e autodestrutivo, a forjar auto-determinação e recuperar nossa liberdade. Que a crise terminal do neoliberalismo – em sua versão chilena – não nos leve com ele. Evitemos que se instale o fascismo em nossos espaços, Hoje, mais do que nunca, é hora de golpear o capital. A revolta se levanta em diferentes territórios: Equador, Honduras, Hong Kong, França são exemplos visíveis de organização e resistência a dor universal que o extermínio capitalista de milhões de formas de vida tem ocasionado durante séculos. As opções são simples: revolução ou extinção.

Grupo Solenopsis

gruposolenopsis@riseup.net

Outubro 2019

Santiago, Região chilena

PS: Recomendamos a crônica do coletivo CrimenthInc sobre a repressão nos primeiros dias de revolta: https://lapeste.org/2019/10/resistiendo-bajo-la-ley-marcial-un-reporte-una-entrevista-y-una-llamada-a-la-accion/

Notas:

[1] Enquanto a tônica tem sido aumentar as penas contra os lutadores sociais, criminalizar o comércio ambulante e reprimir os delitos contra a propriedade, por outra parte para os grandes empresários tem existido grandes perdões e penas menores: conluio de frangos (https://ciperchile.cl/2016/01/06/nueva-colusion-por-el-precio-del-pollo-acusan-a-las-tres-principales-cadenas-de-supermercados/); conluio das farmácias (https://ciperchile.cl/2009/04/09/el-dossier-del-caso-farmacias-asi-se-subieron-los-precios-segun-fasa/); conluio do papel (https://ciperchile.cl/2018/10/11/colusion-del-papel-el-secreto-que-cubre-los-2-795-millones-que-recibieron-conadecus-y-odecu/); financiamento irregular dos políticos (https://ciperchile.cl/especiales/financiamiento-irregular-politica/), entre outras.

O nível de cinismo dos poderosos é tão grande que, no caso Penta os empresários Délano e Lávin, apesar de uma milionária fraude ao fisco, só receberam multas e a obrigação de realizar aulas de ética sem perder sua liberdade.

[2] A passagem do metrô aumentou 50 pesos no ano 2019, sendo o quarto aumento em 2 anos, posicionando-se como o terceiro ano que sobe a sua tarifa. Cabe destacar que o ponto sem retorno nos aumentos desmedidos do metrô ocorre em 2010, pouco depois da criação do grupo de especialistas – que determina o valor do transporte público – que estipulou 5 aumentos, o que se traduz em 120 pesos. https://www.eldinamo.cl/nacional/2019/10/19/el-ano-en-que-mas-subio-la-tarifa-del-metro/

[3] A última vez que se invocou o estado de emergência para eliminar manifestações sociais foi em 1987 na ditadura de Pinochet.

[4] https://www.24horas.cl/nacional/indh-suma-120-denuncias-por-violaciones-a-los-derechos-humanos-durante-el-estado-de-emergencia-3690240

[5] O ex-presidente Evópoli (partido oficialista), Francisco Undurraga, apontou para os meios de comunicação “que os atentados aos direitos humanos realizados por agentes do Estado eram de igual gravidade que os ataques sofridos pelo Metrô de Santiago. https://www.cooperativa.cl/noticias/pais/manifestaciones/ex-presidente-de-evopoli-atentados-al-metro-son-igual-de-graves-que/2019-10-28/145251.html

Fonte: https://lapeste.org/2019/11/de-la-desobediencia-civil-a-la-insurreccion-popular-una-reflexion-en-torno-a-la-revuelta-y-el-terrorismo-de-estado-en-la-region-chilena/

agência de notícias anarquistas-ana

fim de tarde
depois do trovão
o silêncio é maior

Alice Ruiz