Durante os primeiros dias da insurreição desatada em território chileno, o palhaço que administra o Estado, S. Piñera, disse que estavam “em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém” e que está disposto a “usar a violência e a delinquência sem nenhum limite”. Um “inimigo poderoso”? Acaso isso não se parece com o discurso que se escutava na ditadura cívico-militar? Claro que sim, porque ambos apontam ao mesmo: o “inimigo interno”. Contudo, este recurso do famoso “inimigo interno” provoca que nos desiludimos ainda mais com a classe dominante pela pouca imaginação que demonstra. Este mecanismo é tão velho como o autoritarismo que percorre este território: cada vez que balançaram os cimentos da “Ordem” apareceu, por arte de magia, um “inimigo interno” que atentava contra a classe dominante e que justificou o restabelecimento das relações de dominação que conhecemos profundamente. Neste sentido, hoje em dia voltamos a ver isto: a democracia já está insinuando a nova ameaça inserida dentro da “sociedade chilena” e que conjura contra ela mesma.
Contudo, como se justifica um “inimigo interno” na democracia? Poderia parecer contraditório, mas considerou que não o é: tal como o indica o Comitê Invisível, a democracia não é mais que o governo em estado puro. Em suas próprias palavras: “O que no fundo se pretende quando se fala de democracia é a identidade entre governantes e governados, sem importar quais sejam os meios pelos quais esta identidade é obtida”. Neste sentido, a democracia é uma forma específica de governo, é “conduzir o comportamento de uma população, de uma multiplicidade que é preciso cuidar como um pastor o faz com seu rebanho para maximizar seu potencial e orientar sua liberdade”. Esta naturalização da democracia como mecanismo de controle, a podemos apreciar desde a educação primária nas escolas: as Bases Curriculares do Ministério da Educação indicam que meninos e meninas devem reconhecer símbolos e comemorações pátrias, distinguir o sistema institucional e defender a propriedade privada na “democracia”, apresentada como a única alternativa.
Neste sentido, o famoso “inimigo interno” tem sido um mecanismo funcional a qualquer forma de governo em território chileno, como o evidencia a história. Nos inícios do século XX, em pleno auge das mobilizações durante a Questão Social, a oligarquia não encontrou melhor resposta ao descontentamento popular que culpar os “agitadores estrangeiros” do que acontecia. Para que falar do que ocorreu depois com o auge anticomunista, que levou o governo de Gabriel González Videla a proibir o partido da polícia de vermelho através da “Lei Maldita”. Não só isso, já que a insurreição ocorrida no início de abril de 1957 foi interpretada pela elite político empresarial, ao mando de Carlos Ibáñez de Campo, como outra “confabulação comunista”. Finalmente, não temos que ir tão atrás para ver a aplicação deste mecanismo: a Doutrina de Segurança Nacional, impulsionada desde os EUA, promoveu a noção de um “inimigo interno” que foi combatido pela ditadura cívico-militar através da perseguição, tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas.
Contudo, isto leva a uma pergunta: quem seria agora o “inimigo interno”? Bom, se vinha insinuando desde alguns anos, mas a partir dos fatos ocorridos desde o 18 de outubro já está mais claro: desde as autoridades até a imprensa, o “inimigo interno” da democracia são os/as anarquistas. Apenas uns dias de iniciada a revolta, o presidente Piñera já culpava a narcotraficantes e anarquistas pelos atos de violência, teoria que reafirmou tempos depois frente a graduados e graduadas da Polícia de Investigações (PDI). O mesmo fez o impune General Diretor de Carabineiros, M. Rozas, ao culpar a “delinquentes, traficantes de drogas, lúmpen e anarquistas” dos “eventos graves” ocorridos neste Estado. Para que falar da imprensa, que foi mais além da pouca clareza e ambiguidade das autoridades, ao difundir “nexos” entre anarquistas do território chileno e argentino, que explicaria a violência das mobilizações. Como se vê, de maneira cada vez mais evidente, vai se articulando um discurso que identifica, exclui e criminaliza a todo aquele ou aquela que não se submeta às bondades democráticas.
A democracia representativa, essa que as Bases Curriculares do Ministério da Educação buscam naturalizar desde a infância, cheira a autoritarismo como qualquer forma de governo. Isso sim, tenho que ser justo: pelo menos produz a sensação de nos sentirmos poderosos e poderosas, ainda que evidentemente não o sejamos… Como dizem por aí: “Pior é nada”. E como qualquer forma de governo, a democracia também necessita seu “inimigo interno”, aquele ou aquela caricatura de “terrorista” que justifique a “defesa” dessa mesma democracia, da democracia “Na medida do possível”. Essa caricatura terrorista foram diversos sujeitos ao longo da história, como comentei mais acima: desde os agitadores e agitadoras de inícios do século XX, passando pelo “comunismo” até chegar, agora, aos/as anarquistas. Não obstante, em verdade é preocupante esta situação? Alguém realmente pensou que isto não ocorreria ou que não se daria assim? Ninguém projetou, alguma vez, o que vemos? Ao final, a história do anarquismo é a história da perseguição e nisto já temos bastante experiência. Neste sentido, acho difícil que consigam nos amedrontar.
Manoel Caringa
Fonte: https://lapeste.org/2019/12/el-enemigo-interno-de-la-democracia/
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agência de notícias anarquistas-ana
Folhas a cair,
folhas e folhas caindo
também na minha cama.
Mitsuhashi Takajo
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!