Isolamento, parte II

Isolamento, 26 de março de 2020.

Mãe,

Eu pretendia escrever antes, mas não tive cabeça. Não dá pra dizer que não tive tempo, né, o dia todo em casa. Inclusive, ficar em casa sem motivos pra sair muda um pouco a cabeça da gente. Li algumas pessoas na internet falando em ansiedade. Eu sinto calma. Um oceano de calma. Parece que estou fazendo tudo mais devagar. Cozinho mais devagar, limpo o quintal minuciosamente, demoro pra levantar, esfrego partes que nunca tinha notado antes durante o banho. De certa forma, talvez eu esteja me conhecendo melhor. Me disseram que isso é comum em Isolamento.

Observo bastante as bichanas. A Preta fica deitada por muito tempo, sempre perto da gente, sempre no mesmo cômodo. Tenho notado que ela às vezes sai do conforto pra se estatelar no chão. Claro que ela não tem noção de nada disso, conforto, estatelar ou chão. Mas eu tenho, e talvez por passar tanto tempo com ela, mais do que nunca antes, isso me faça criar preocupação. Não está calor pra ela preferir o chão frio. Será que ela está com dores? Quente? Com febre? Será que tem alguma doença pouco sintomática? Ou é a calmaria melancólica em Isolamento que deixa ela assim?

A Branca, por outro lado, parece mais feliz. Desde a morte da Zica, ano passado, acho que ela parece mais feliz. Não pela morte em si, que elas viviam grudadas, mas porque desde então ela ganhou autorização pra dormir conosco. Agora ela criou uma rotina: acordamos, ela mia e nos mostra o caminho até o pote de comida. Que nunca está vazio, mas ela quer a comida do sachê, aquela mais saborosa e mole pra mastigar. Fica tão alucinada com isso que chamamos de “drogas”. A Branca adora as drogas dela – mas nunca come tudo, como uma boa gata. Acaba que a Preta ganha os grãozinhos que sobram. Depois disso, ela toma sol no quintal – a Branca. E passa quase todo o dia dormindo, cada hora em um canto, até que chega o fim da tarde e ela pede as drogas dela de novo. Quando vamos pra cama, ela vem ronronando e se acomoda entre as pernas e braços, cada vez de um, fazendo ser muito difícil se mexer durante o sono. E assim no outro dia. E no outro.

Como será que elas vão reagir quando a gente não estiver mais em Isolamento?

Falando nisso, mãe, parece que as regras endureceram nas ruas. Olho da janela e vejo muito menos gente. Quase tudo fechado. Baixaram um decreto muito parecido com o de Quarentena, ainda que lá você esteja proibido de sair e possa tomar multa ou mesmo ir preso. Aqui em Isolamento ainda não é assim, só para os comércios “não essenciais”. As pessoas podem sair, mas não saem, porque ninguém quer ir pra Quarentena, ou pior, ser levado pra Morte. Pelo menos aqui no centro. Dizem que na periferia ainda há mais gente na rua, e até o tráfico de drogas tá fazendo toque de recolher. Em um bairro mais pro sul, os moradores se organizaram e criaram uma brigada voluntária, que aconselha rua por rua as pessoas, principalmente os mais velhos, a ficarem em casa e respeitar os “procedimentos”. Cada rua tem inclusive um “presidente”. Fizeram isso porque sabem que não dá pra esperar nada do governo, que por ali sempre apareceu na forma da polícia, pra matar e prender. E muito menos do presidente – o da república, não o de cada rua.

Mãe, o presidente aqui é algo indescritível. A face de um projeto de poder dos mais cruéis que já vi, ou pelo menos vivi. Outro dia ele veio à público em cadeia nacional falar contra a ausência de circulação de pessoas nas ruas, mesmo sabendo que se as pessoas saírem podem acabar em Quarentena ou Morte. Enquanto isso, ele nem sequer está em Isolamento. É uma tática de manipulação realmente impressionante, uma forma de genocídio sofisticada. O lado bom é que parece que cada vez menos gente acredita nele, embora muitos continuem seguindo suas bravatas e, sem saber, caminhando para o abate. Tem muitas famílias rompidas com isso. E também muita confusão nos discursos e nas ações.

Esses dias um amigo me perguntou se eu acho que poder ficar em casa é um privilégio, que muitos não têm. É uma discussão difícil essa. Costumo pensar em privilégio quando ele está sustentado por uma estrutura, muitas vezes anterior mesmo ao nascimento de uma pessoa ou do grupo ao qual ela pertence. Me parece que se sair às ruas oferece risco, negar a uma parte das pessoas o direito de ficar em casa para se proteger não significa exatamente privilegiar o restante. Mas essa discussão entre privilégio e direito é bem complicada, porque de várias maneiras o meu direito de ficar em casa está relacionado aos privilégios que eu tenho por ser homem e ter crescido na classe média, alcançado uma profissão pública – embora exatamente por ser pública ela me sujeite às regras governamentais, e se me mandarem voltar pro trabalho eu tenho que ir. De toda forma, eu disse pra ele, acho que falar em direito negado é mais fortalecedor em termos de classe do que falar em privilégio, uma perspectiva que nos divide, ainda que sejamos todos trabalhadores. Privilégio, penso eu, tem esse monte de rico e de celebridade que fica postando vídeo agradecendo Isolamento por ter tornado “todos iguais”, cantando música bonitinha, fazendo selfie na banheira cercado de rosas. Pior, mãe, é que esse discurso acaba contaminando inclusive parte das pessoas mais afetadas, que estão criando expectativas de, quando o risco de sair às ruas passar, outro mundo ser gestado. Como se Isolamento e suas regras, por si só, fossem capazes de derrubar séculos de patriarcado, classismo, racismo, genocídio, propriedade privada, culto ao mercado e egoísmo. Quem dera.

Bom, talvez esse sentimento todo gere alguma ação. Quer dizer, já está gerando, né. As brigadas que eu citei são um exemplo. Tem outros. Vou tentar ser mais otimista, prometo. E fazer alguma coisa nesse sentido. É o mínimo pra quem cresceu cercado por pessoas que passaram por um inferno bem pior que esse e foram pra briga.

Vocês são foda.

Estou com saudades, mãe. Já disse isso no primeiro email, né? Mas é que elas estão sempre aqui, comigo, e eu acabo passando parte dos dias pensando na nossa casa, quando estávamos todos juntos sempre. Lembra quando a Lu e eu íamos com o pai fazer compras no mercado, e ele dividia a lista pra ir mais rápido? Acho que ele odiava ir ao mercado, mas a gente que era criança adorava. E a locadora aí em frente, onde a gente alugava os filmes na promoção, ficava com eles uma semana e só lembrava de ver no último dia? São muitas memórias felizes, mãe, mas ficar pensando nelas muitas vezes me deixa mais triste de estar em Isolamento. Pra evitar a tristeza, tenho lido bastante. Criei uma pasta aqui no computador chamada “Isolamento”, só pra salvar coisas que quero ler enquanto estou por aqui. Faz tempo que não leio tanto. E, como deu pra perceber, escrevo também.

Como estão as coisas por aí? Espero que esteja se cuidando. Você sempre foi teimosa, né, na mesma medida em que é responsável. Fico feliz de perceber que aprendi muito disso contigo, o suficiente pra saber que, por mais duro que seja, melhor “aquietar o facho” aqui em Isolamento do que acabar em Quarentena, Colapso ou Morte.

Vai passar, mãe. E sairemos disso bem mais fortes.

Até o próximo abraço – vai ser o maior de todos.

Te amo,

D.

sempredesobedecer.wordpress.com

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Douglas Eduardo Rothemann – 8 anos