[Reino Unido] David Graeber: “Depois vamos fingir que foi tudo um sonho?”

31 de março de 2020

Quais empregos são “de mentira” e quais são sistematicamente importantes: não deveríamos esquecer isso após a crise do corona, diz o crítico ao capitalismo David Graeber.

O movimento “Occupy Home Office” vai se tornar “Ocuppy Wall Street”? Uma ligação em Londres para o antropologista e crítico do capitalismo David Graeber, que espera que nossas vidas no trabalho e nosso sistema econômico jamais sejam o mesmo após a crise do corona.

ZEIT ONLINE: Sr. Graeber, de repente o home office se tornou viável e caixas de supermercado sistematicamente relevantes. A crise do corona está virando o nosso mundo do trabalho de cabeça para baixo para sempre?

David Graeber:  Aqui na Grã-Bretanha o governo fez uma lista das profissões sistematicamente relevantes, aquelas cujos trabalhadores podem continuar a mandar os filhos para a escola, para ser cuidados. A lista surpreende com a ausência de consultores administrativos e gerentes de fundos especulativos! Aqueles que mais ganham não aparecem nela. A regra básica é: quanto mais útil um trabalho, pior se paga por ele. Uma exceção, é claro, são os médicos. Mas mesmo assim podemos dizer que, quando se trata de saúde, os profissionais de limpeza no hospital colaboram no mesmo nível que médicos, e muito do progresso nos últimos 150 anos se deva à higiene.

ZEIT ONLINE: Na França, os funcionários de supermercados, cujo trabalho é particularmente desafiador, agora recebem um pagamento de bônus – como insiste o governo. O mercado não se regula sozinho.

David Graeber: Porque o mercado não se baseia tanto em oferta e demanda quanto nos disseram a vida toda – quem decide os preços são os poderes políticos. A crise atual demonstra de modo ainda mais claro que meus salários não dependem da utilidade da minha profissão.

“Algumas pessoas agora entram em contato comigo e me dizem: ‘Sempre suspeitei que pudesse fazer meu serviço duas horas por semana, mas agora tenho certeza’,” diz David Graeber.

ZEIT ONLINE: Esse é o assunto de seu livro mais recente, Bullshit Jobs (“Empregos de Mentira”): muitos trabalhos socialmente indispensáveis são muito mal pagos, enquanto funcionários bem pagos muitas vezes duvidam que seus trabalhos tenham algum sentido, ou se estão num “emprego de mentira”.

Graeber: O que é importante para mim: eu jamais contradiria as pessoas que sentem que estão contribuindo significativamente para com seus trabalhos. Para meu livro, porém, reuni relatos daqueles que não se sentem lá tão úteis: algumas pessoas estão, às vezes, profundamente frustradas porque querem contribuir para o bem-estar de todos nós. Mas, para ganhar dinheiro o suficiente para suas famílias, têm empregos que não beneficiam ninguém. Algumas pessoas vieram me dizer: “eu trabalhava como professor de jardim de infância. Era um trabalho ótimo e gratificante, mas eu não conseguia pagar mais minhas contas. E agora estou trabalhando para uma empresa terceirizada que oferece seguros de saúde com informação. Eu preencho formulários o dia inteiro. Ninguém lê meus relatórios, mas eu ganho vinte vezes mais que antes”.

ZEIT ONLINE: O que acontece com esses funcionários de escritórios que estão agora fazendo seus trabalhos de mentira em casa, no esquema home office, por causa do Coronavírus?

Graeber: Algumas pessoas agora entram em contato comigo e me dizem: “sempre suspeitei que pudesse fazer meu serviço duas horas por semana, mas agora tenho certeza”. Assim que você passa a trabalhar em casa, por exemplo, as reuniões inúteis são deixadas de lado muitas vezes.

ZEIT ONLINE: Após a crise financeira de2008, você se envolveu no movimento de protesto “Occupy Wall Street“, que incluía um acampamento de ativistas num parque próximo à Bolsa de Valores em Nova Iorque. A crise do corona pode produzir um movimento de esquerda semelhante? Um “occupy home office“?

Graeber: Se for esse o caso, o melhor lema seria: ocupe o apartamento onde mora e não pague mais aluguel. Greves de aluguel estão dando o que falar nesse momento, porque as pessoas não conseguem pagar seu aluguel por causa da crise do corona. Então, o importante é apoiar os trabalhadores sistematicamente importantes que estão destituídos das ferramentas que precisam para fazer seu trabalho. É do interesse geral que equipes médicas e entregadores tenham equipamento de proteção.

ZEIT ONLINE: Ao mesmo tempo, nessa crise vimos muito claramente o quão central o trabalho é em nossa sociedade: não importa quantos lugares não se possa mais visitar, as pessoas têm que continuar a trabalhar.

Graeber: Dá pra ver isso com as restrições de transporte público: se é fechado, é primeiro nos finais de semana. Não se pode ir ao parque. Mas Deus me livre as pessoas não poderem mais ir para o trabalho! Porém, notamos há muito tempo que uma grande parte do trabalho não tem que ser feita no escritório.

“É importante não abafar o que finalmente admitimos para nós mesmos em tempos de crise; por exemplo, quais empregos são sistematicamente importantes e quais não são.”

ZEIT ONLINE: Isso seria então uma revelação do momento atual, certo?

Graeber: Sim. A única pergunta é: quando acabar a crise, vamos fingir que foi tudo um sonho? Coisas semelhantes podiam ser notadas ao fim da crise financeira de 2008; por algumas semanas, todo mundo dizia: “Ó, tudo que pensávamos ser verdade não era verdade!” Questões fundamentais finalmente foram feitas: o que é dinheiro? O que são dívidas? Mas em algum ponto vocês decidiram de repente: “Pare, vamos deixar isso de lado agora. Vamos fingir que nada disso aconteceu! Vamos começar tudo de novo como antes!” E as políticas neoliberais e a indústria financeira continuaram como antes. É por isso que é tão importante não abafar o que finalmente admitimos para nós mesmos em tempos de crise; por exemplo, quais empregos são sistematicamente importantes e quais não são.

Fonte: https://www.zeit.de/zustimmung?url=https%3A%2F%2Fwww.zeit.de%2Farbeit%2F2020-03%2Fdavid-graebner-coronavirus-kapitalismus-bullshitjobs

Tradução > Schwartz

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2 responses to “[Reino Unido] David Graeber: “Depois vamos fingir que foi tudo um sonho?””

  1. carlos araújo

    sei que a tradução depende de pessoas voluntárias, mas “antropologista” é inaceitável. Por favor, leiam o artigo depois que a máquina de tradução fizer o seu trabalho automaticamente.

    1. ThC

      Carlos Araújo, acaso sois antropólogo?

      Suponho que não!

      É bem verdade que o termo é bem menos comum no Brasil, e talvez esteja até em desuso por outros lados(?). Mas o termo só parece um “bizarro erro” de tradução a um leitor mais esporádico ou incauto (em especial o brasileiro). Aliás, qual tradutor automático traduz assim? Desconheço… Talvez um de Portugal? Na verdade, em qualquer busca rápida se poderia constatar que o termo aparece de maneira recorrente, não apenas em dicionários, mas inclusive em textos acadêmicos em língua portuguesa (na minha experiência, principalmente fora do Brasil e, em especial, em Portugal).

      Eu parto do pressuposto de que o tradutor possivelmente não é brasileiro, não de que há qualquer tradução “inaceitável”. Sua postura, inclusive (e há de se destacar a ironia), não foi nada “antropológica”.

      Saudações