45 dias de norte: dois punks brasileiros sem dinheiro pela Europa – dia 2

Em 2012, fiz uma viagem sem muito dinheiro junto com um amigo pela Europa, abusando de hospedagem solidária, comida barata, comida grátis, comida do lixo e de vez em quando comida boa.

Na época, escrevi um diário, agora publicado dia por dia neste blog.

Dia 2: Transporte público gratuito e o ativismo de solidariedade que efetivamente funciona

Acordamos, Ivana e eu, bem cedo, por volta de 8h. O julgamento seria às 9h30. Descontando o fuso horário, 8h significavam 3h no Brasil. Tenso. Nos vestimos e saímos sem comer nada. No caminho ela foi me explicando algo sobre o que iria rolar. Antes, me deu metade de um bilhete de metrô e disse que na maquininha laranja ele funciona sempre, mas era pra ter cuidado com os oficiais. O transporte seria gratuito.

Ivana fazia parte de um grupo de apoio a imigrantes presos por estarem em condição ilegal. Escreviam cartas pros presos, mandavam roupas e comida, arranjavam advogados – anarquistas como Ivana e o resto do grupo. Na Itália, foram criados centros chamados de CIE – Centro de Identificação e Expulsão – para tratar dos imigrantes ilegais. Os ragazzi que seriam julgados eram tunisianos que, presos nesse CIE, participaram/promoveram uma revolta para fugir de lá, queimando colchões e tudo mais. Tentar fugir desses centros não configura crime (por que, eu não entendi), daí sempre acontecerem rebeliões.

Cada CIE levava o nome da rua onde ficava, então esse era chamado de via Corello. Os tunisianos estavam sendo acusados de saque e devastação, crimes que podem dar até 18 anos de prisão, mas os advogados já tinham conseguido nas audiências anteriores mudar a acusação para incêndio doloso, cuja pena máxima era de 3 anos. Pegamos o metrô na faixa e depois um ônibus, também na faixa, já que não tem cobrador, apenas máquinas coletoras pra quem “quiser” pagar. Quase ninguém paga. E quando entra um fiscal, todos os sem bilhete descem imediatamente antes de serem pegos. Não cheguei a passar por isso.

Observando o trânsito em Milão, notei que scooters e smarts, aqueles carros pequenos pra apenas duas pessoas a la Mister Bean, são bastante utilizados. Há muitas bikes também, muitas mesmo. Chegamos ao tribunal um pouco cedo, então paramos para um café, 90 centavos de euro. Descobri que tenho que pedir ele longo pra vir a xícara cheia, coisa que antes tinha me fodido quando tentei comprar um café perto do squat e veio metade da xícara. Bebemos e entramos no tribunal. Ivana teve problemas na porta por portar dois canivetes, discutiu com os seguranças que queriam que ela jogasse eles fora e conseguiu fazer com que eles guardassem os canivetes pra ela até ela sair, escrevendo seu nome num papelzinho e colando junto a uma das lâminas. Começamos a subir as escadas e lá de cima uma mulher mais velha gritou pra gente. Era a Solange, amiga brasileira – branca, gaúcha – de Ivana, pertencente ao mesmo grupo.

Vivendo na Europa há 15 anos, Solange tinha desenvolvido alguns vícios de linguagem, então quando falava português misturava italiano e mudava sintaxes e construções – por exemplo, falava “público ministério” ao invés de “ministério público”. Ela me explicou bastante sobre o caso, os CIE e o que estava pra rolar: era a última audiência, dali sairia a sentença final.

Outras pessoas do grupo de solidariedade foram chegando, entre elas Lollo, um italiano de pai ruandês, negro, skinhead antifa, SHARP. Me contou que ele mesmo esteve preso até um mês atrás, mas não por questões de imigração já que ele era italiano de nascença, e sim por estar entre os mais de 10.000 que haviam marchado no acampamento do No TAV ano passado. A polícia escolheu 25, ele incluso, e prendeu. Foram 7 meses de cadeia sem muitas explicações. Lollo também me contou sobre como a prisão normal para onde os tunisianos tinham sido levados depois da rebelião e queima de colchões era muito pior do que o CIE, com poucas horas de sol, comida ruim, os piores tratos dos policiais – ou os policiais de pior trato.

Na sala do tribunal, os advogados e réus entravam por um lado, enquanto quem quisesse assistir entrava pelo outro. Os advogados chegaram, falaram conosco, e logo em seguida passaram pelo salão os réus, algemados em fila indiana. Nosso grupo fez sinais de força e solidariedade e eles responderam positivamente, com alguma esperança, mas semblantes cansados. Fomos para a nossa porta e ela estava trancada por dentro. Ivana e Solange forçavam a maçaneta e batiam com força, mas nada de abrirem. Um dos advogados veio dizer meio dando risada que já iriam abrir e que não precisávamos derrubar a porta. Minutos depois os três advogados de defesa saíram e disseram que a sessão seria atrasada em meia hora porque um dos réus se sentiu mal e foi para o hospital, não estando presente, e que por isso eles precisavam ir ao hospital para atestar que ele tem ciência e acorda em ser julgado mesmo assim, ou algo do tipo. Descemos para tomar outro café. Aproveitei e tomei um suco.

Na volta, porta aberta, entramos na sala. Tínhamos um espaço de uns 10 metros quadrados pra assistir à audiência. Em pé. Do lado esquerdo, um grupo de policiais guardando um dos réus, que estava em separado dos outros seis. Estes ficavam dentro de uma jaula – ou cela se preferir – um pouco à frente do primeiro. No centro da sala, três fileiras de mesas, para os advogados e seus assistentes. Na frente, o que eles chamam de consiglio, ou seja, três juízes que decidem a sentença e dão andamento ao processo todo. O juiz principal era um homem, as outras duas eram mulheres. Finalmente, do lado direito da sala, por onde entram e saem todos menos a gente, mais policiais fardados e alguns sem farda.

– Esses são a polícia política, estão aqui por conta da gente, sempre estão – disse Solange.

Polícia política, mesmo, o tempo todo dentro da sala observando.

O julgamento é todo da defesa, pois a acusação já tinha sido ouvida em outra sessão. Cada um dos três advogados falou por bastante tempo. Eu, que entendi perto de nada do que foi falado, observava a sala. Pé direito altíssimo em todo o prédio, dava pra construir três andares se quisessem. Um mural TOSCO na parede acima dos juízes, que provavelmente representa a justiça ou qualquer merda dessa. Um tradutor rondando a jaula/cela, passando para o árabe o que estava sendo dito em italiano. Perguntei para Solange porque um dos réus estava separado dos demais e ela disse que ele tinha caguetado os outros em audiência e depois tomado um pau quando voltaram pra cadeia. Os advogados vestiam uma espécie de bata com uns adornos, parecendo fantasias de carnaval. Fiquei pensando o quanto aquilo tudo não era uma grande fantasia, um teatrinho de merda, podendo os advogados falar o quanto e o que quisessem que não mudaria a vontade do consiglio. Depois dos advogados de defesa, a acusação teve uma breve fala, e na volta o juiz principal interrompeu bruscamente uma fala de um dos advogados de defesa, na qual ele tentava colocar em questão a legalidade da própria existência dos CIE.

Todos escutados, o consiglio pediu uma hora para discutir e dar a sentença. Fomos comer numa padaria próxima, um panino delicioso de tomate seco, bom demais. O queijo na Itália é muito diferente, mais leve, menos gorduroso. Pelo menos esse e o da pizza do dia anterior. Nunca eu comeria uma pizza daquele tamanho com o queijo que temos no Brasil.

Na volta ao tribunal, havia esperança e medo misturados no nosso grupo. A expectativa era de que a argumentação da defesa tivesse sido boa o suficiente, mas todo mundo sabia que os juízes fariam o que queriam. Voltaram os réus, voltaram os advogados, policiais e a polícia política, o tradutor, voltamos nós. Esperávamos todos pelo consiglio. Entraram na sala, pediram que todos ficassem de pé e deram a sentença: para alguns, 7 meses; para outros, 1 ano e 3 meses. Caso não tivessem antecedentes, porém, estariam todos liberados – no caso dos que pegaram 7 meses, de qualquer jeito, pois já estavam na prisão há exatos 7 meses, daí a conveniência da sentença. Nenhum tinha antecedência, ou seja:

– TUTTI LIBERI[1]! TUTTI LIBERI! – gritavam Solange e Ivana sob os olhares ameaçadores dos policiais. Os réus agradeciam em italiano e diziam que iam ligar pra encontrar e celebrar, quase choravam de alívio, e todo aquele sentimento me trouxe lágrimas aos olhos. A polícia nos varreu da sala.

Do lado de fora, perguntei para onde iriam eles. E a resposta me frustrou enormemente:

– Ninguém sabe, vão voltar pra prisão e de lá serão enviados pra uma commizaria[2] de polícia. Da commizaria podem ser libertados ou mandados de volta pra algum CIE. Depende da polícia agora.

Ou seja, tutti liberi, mas nem tanto. Voltando pro CIE, como o tempo máximo de permanência lá é de 1 ano e 6 meses e a maioria já estava próxima disso, provavelmente seriam extraditados. Mas sempre existia a possibilidade de serem soltos, já que a propaganda dos CIE junto à população não andava muito boa. Alguns jornalistas independentes chegaram e entrevistaram os advogados. Saímos do tribunal e fomos, Solange, Ivana e eu, para a casa de Solange, na via Padova, um dos lugares com maior concentração de imigrantes em Milão. Aproveitei que encontrei um telefone público e finalmente consegui falar com alguém em casa no Brasil, dizer que eu estava bem.

Iríamos passar pela piazza Loreto, onde foram mortos e expostos Mussolini e sua mulher, porque lá havia um correio e ela precisava passar por ele. Na saída do metrô, porém, havia verificação de bilhetes pelos guardinhas, então Ivana e eu aguardamos Solange ir e voltar, já que ela tinha um passe livre por conta do trabalho.

Em todo o caminho, Ivana recebia ligações aos montes de gente querendo saber do julgamento, considerado uma vitória por todo o grupo. Passamos num mercado e finalmente chegamos na via Padova. Solange mora num apartamento estilo CDHU, para o qual se candidatou anos atrás. Paga 150 euros de aluguel, onde seriam cobrados uns 800 não fosse uma habitação popular. Me contou um pouco da sua vida e perguntava se havia algum site brasileiro que concentrasse informações anarquistas, de atos, grupos e movimentos no Brasil. Me mostrou o italiano, informaazione, e eu mostrei a ela o blog da Agência de Notícias Anarquistas e o site do CMI-SP, que era o máximo parecido que eu consegui lembrar. Ivana e eu conversamos sobre futebol, já que Lollo era um ex-ultra da Fossa milanesa, e eu expliquei um pouco da ideia do Auto[3] e da liberdade através do futebol. Ela pareceu compreender e respeitar, mas continuou não gostando de calcio.

Saímos de lá já tarde, quase 21h, e voltamos pro squat pegando três ônibus sem pagar nenhum. No caminho, notei um restaurante com bandeira e logo do Sri Lanka e me lembrei do Autônomos em Bristol[4]. Sorri sozinho dentro do ônibus.

Chegando no squat, Ivana cozinhou um penne com molho de tomate, abobrinha e pimenta, e foi minha primeira refeição decente na Europa. Aproveitei a internet livre pra responder emails e encaminhar o vôo pra Lituânia. Mostrei para Walter a música “Samba italiano”, dos Demônios da Garoa, pois tinha falado com ele sobre a imigração italiana em São Paulo. E fui pro quarto dormir. Ivana veio logo depois, conversamos um pouco e caímos no sono.

[1] Todos livres.

[2] Delegacia.

[3] Auto, ou Autônomos FC, era o time de várzea em que eu jogava à época, fundado por punks e anarquistas em 2006.

[4] Em 2010, estivemos com o time em Bristol para um torneio e nos envolvemos em uma situação inusitada com um imigrante do Sri Lanka, que acabou ficando nosso amigo.

sempredesobedecer.wordpress.com

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fim de tarde
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o silêncio é maior

Alice Ruiz