[Chile] Coronavírus ontem, hoje e amanhã. Do micro para o macro.

Muito se tem falado sobre o novo coronavírus que tem se espalhado pelo mundo nos últimos meses. Muitos testes podem ser bastante precisos em alguns aspectos muito específicos, mas esquecem de olhar para isso de outro ponto de vista. O bioquímico focou o efeito do interferon ou cloroquina, a enfermeira preocupada com medidas de biossegurança e lavagem das mãos, o profissional de saúde alegando falta de leitos, o biólogo falando sobre a evolução dos vírus. E se houver relações entre cada uma dessas separações artificiais/acadêmicas que a humanidade tem feito?

Ontem

Ao longo da história da humanidade, sempre houve grandes epidemias que mataram milhares de pessoas, como a famosa Peste Negra, para dar um exemplo. Mas, nos últimos anos, as infecções emergentes têm aumentado: SRA (de um coronavírus), MERS (de outro coronavírus), “gripe aviária e suína” (vírus influenza), Ebola, são todos exemplos das últimas décadas. Por quê? Eles estão desenvolvendo doenças em laboratórios chineses? Embora algumas pessoas considerem o Estado chinês como “socialista”, é sabido que ele pratica um forte capitalismo de Estado. Nessas lógicas, cai em práticas semelhantes às existentes no resto do mundo: forte extrativismo, com destruição de ecossistemas selvagens, deslocamento e assassinato em massa de múltiplas espécies, urbanização acelerada com pessoas superamontoadas, em más condições de higiene e com poucos recursos para ter acesso a muitas opções básicas de subsistência.

Nesses processos de destruição ambiental, e de mãos dadas com uma cultura fortemente especista, muitos contatos são gerados entre espécies humanas e espécies “exóticas”. A matança constante destas espécies gera uma pressão em relação as infecções que elas possuem: se não sofrerem mutações e conseguirem se transferir para outro hospedeiro, elas deixarão de se reproduzir. Assim, sobrevivem aquelas infecções que conseguem se transferir para a espécie humana. Casos como a gripe nos últimos anos têm sido gerados, não por um laboratório, mas pela existência de grandes fazendas onde se condenam aves e porcos. E depois somos surpreendidos por uma gripe suína? Assim, a mineração, a urbanização, a destruição dos ecossistemas, geram as condições para que esses fenômenos zoonóticos ocorram: saltos de doença de uma espécie para outra. E há vários artigos científicos alertando para as centenas de possibilidades, alertas para centenas de possibilidades, incluindo múltiplas novas cepas de coronavírus.

E apesar dos avisos terem sido dados, pouco e nada tem sido feito a respeito deles nos últimos anos. Continuamos a gerar todas essas condições, além de termos sistemas de saúde cada vez mais caros e inacessíveis.

No Chile, embora a população tenha crescido e envelhecido sistematicamente, o número de hospitais ou leitos neles existentes dificilmente aumentou. A única coisa que tem crescido são os lucros daqueles que fazem negócios com a saúde das pessoas. Porque, mais uma vez, capitalismo e política são transversais a toda a situação atual.

Outro fenômeno de impacto óbvio tem sido a globalização. O delírio de crescimento e desenvolvimento permanente nos força a hiper-conectividade, criando extensas redes de comércio, circulação de bens e pessoas, e alterações deletérias nos territórios. E bem, com viagens diárias entre todos os cantos do planeta, tudo pode viajar com muita facilidade, inclusive doenças.

Hoje

Assim, todas as condições estavam (e ainda estão) reunidas para alcançar a situação atual. Forçamos um vírus a pular dos animais caçados e expulsá-los de seus ambientes destruídos. O vírus rapidamente infectou milhares de pessoas que vivem em grandes cidades. Atravessou fronteiras porque os negócios e o turismo da classe opressora permaneceram. Os ricos trouxeram a doença para diferentes territórios, como o nosso. E hoje temos centenas de pessoas diagnosticadas, talvez milhares doentes, dezenas de mortes, militares nas ruas e toque de recolher. Em meio à enorme crise política, o governo precisava legitimar a militarização do território. Para nos fazer sentir que o Estado está aqui para nos proteger, que precisamos dele para sobreviver. Que uma grande autoridade vai nos salvar. Mas não podemos esquecer que o capitalismo apoiado pelos Estados foi um dos principais responsáveis pela crise sanitária.

Também não podemos cair na crença de que uma quarentena militarizada irá nos salvar. Porque ontem foram aqueles mesmos soldados que estupraram centenas de vezes no Haiti, que torturaram e mataram no Chile. Não podemos cair na passividade de depender de Estados e autoridades para prover soluções aos nossos problemas. Porque, mesmo que uma quarentena total fosse para achatar a curva de infecção, ela teria que durar meses para não colapsar tanto o sistema de saúde. E o que acontece durante essa quarentena? Como podemos conseguir uma boa quarentena quando temos pessoas que têm que continuar trabalhando pessoalmente porque a aliança-política empresarial só se preocupa em fazer o sistema funcionar? Ou quando você tem que abastecer sua família e fica infectado quando vai buscar comida, ficando preso com toda sua família que acabará infectada da mesma forma? Qual a quantidade de quarentena que existe quando você vive completamente superamontoado? O que acontece com as pessoas na prisão quando os gendarmes as expõem? Estamos em maus lençóis, o Estado deu uma resposta ruim nos primeiros dias e temos isso claro. O que mais nos resta fazer?

Amanhã

O amanhã é incerto, mas a partir de ontem podemos tirar algumas lições. Quando tudo passar a luta tem que continuar, ou voltaremos ao dia de hoje. Não podemos esquecer o que e quem nos fez isso. Amanhã não podemos depender de esperar por mediação normativa daqueles que nos fizeram isso, porque simplesmente não se importam conosco. Amanhã devemos fortalecer os laços comunitários, para que possamos dar respostas locais mais diretas e mais direcionadas desde o início. Um grupo bem organizado poderia rapidamente colocar em quarentena a necessidade de deter uma epidemia e suprir aqueles que dela necessitam. Profissionais de saúde bem organizados e focados poderiam acompanhar os casos confirmados e seus contatos para efetivamente isolá-los e realmente se encarregar do problema, sem um toque de recolher absurdo das 22h às 5h. No Chile existem cerca de 3000 internos de medicina que poderiam estar acompanhando os casos neste momento, para que não tenham que parar permanentemente um país inteiro. Cordões bem organizados poderiam parar um país se a situação ficasse fora de controle. Dezenas de especialistas poderiam contribuir para o acompanhamento se houvesse transparência nas informações que o Ministério da Saúde tem escondido hoje. E falhamos miseravelmente em entender como e porque as pessoas ficaram doentes, porque isolar alguém à beira da morte é fácil, mas tardio. Temos que encontrar aqueles que são contagiosos porque têm sintomas sutis, o que é impossível se a força é desperdiçada e a informação é retida.

Amanhã poderemos aprender com o Chile de ontem, onde foi construída uma policlínica autogerida da IWW (sindicato internacionalista da Workers of the World), com atenção em horários e preços acessíveis à classe trabalhadora. Não esqueçamos que de 1923 a (pelo menos) 1942 a Policlínica Obreira Juan Gandulfo Guerra operou em Santiago, onde médicos anarquistas atenderam os trabalhadores, não só com atendimento médico e odontológico normal, mas também quando foi necessário ajudar aqueles que sofreram a violência do regime.

Amanhã é nosso camarada e há muito o que fazer.

Saúde e Anarquia.

S. Gandulfo

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

O frêmito cessou.
A árvore abre-se
para conter a lua.

Eugenia Faraon