Sobre o livro “A Cruel Pedagogia do Vírus” (recém publicado), de Boaventura de Sousa Santos

Por Vantiê Clínio Carvalho de Oliveira

Boaventura, como mais um “vendedor” da social democracia que é – muito longe da imagem de “intelectual rigoroso” – aponta como prováveis causas da pandemia as relações autocentradas dos mercados sobre o social e do suposto “humano” sobre o ecológico (como se todxs axs ‘humanxs’ fossem detentorxs dos poderes de determinação sobre os rumos do capitalismo globalizado), visto serem estas causas evidentes de todo o ciclo destrutivo do equilíbrio ambiental planetário, e quer fazer passar como “solução” a falaciosa ideia da possibilidade de uma “domesticação” do capitalismo pela sua “socialização” e doutrinação via escolinha da Teoria de Gaia, ao mesmo tempo em que omite a responsabilidade de sxs “companheirxs” de partidos e movimentos sociais da esquerda mundial na geração destes mesmos problemas por ele apontados, a partir do momento em que, de forma nada surpreendente, ao fazerem a defesa do próprio discurso agora requentado pelo autor – ou seja, o do projeto de “adoçamento” do sistema pela ação política dentro do próprio sistema -, no fim das contas, exerceram sobretudo a função de legitimadorxs dos centros de poder (econômicos/políticos, sempre indissociáveis) em sobreposição ao todo social, bem como de “pacificadorxs” das potenciais revoltas sociais de cariz ecológico, pela via da legitimação de discursos “ecologistas” que suportam políticas supostamente de combate aos fatores de desequilíbrios ecológicos através da promoção de pretensas tecnologias sustentáveis e limpas que, via de regra, não alteram as dinâmicas globais dos ciclos produtivistas/consumistas (e, portanto, inevitavelmente promotores do esgotamento ambiental), além de representarem a abertura de mais nichos de mercado e acúmulo de capitais para os mesmos centros de poderes econômicos (e políticos) que se impõem sobre o conjunto das sociedades.

O que Boaventura – e todxs axs ditxs “socialistas” moderadxs – não dizem, é que o mercado e o Estado são conjuntos de empresas entrelaçados entre si em uma “cosmogonia social” hierárquica (o primeiro, especializadamente comercial; o segundo, especializadamemente político) e que, como toda empresa hierárquica, visam se afirmarem na luta pelo “lugar de cima”, em sobreposição aos outros “seres” integrantes desta cosmogonia social hierárquica, sejam eles humanos (individuais e coletivos) ou não. É a velha história: pela lei do mercado, empresa que não reduz custos e incrementa lucros (e isso significa, inevitavelmente, tratar pessoas e recursos naturais como meros objetos de contabilidade fria), será expulsa do mercado pela concorrência que o faz. E o próprio Boaventura admite, em sua já clássica teorização sobre o Estado, que uma das características inalienáveis de todo Estado é a universalidade, ou seja, Estado que não se impõe a todo e qualquer outro eixo de condução política da vida social, em todo e qualquer ponto do território por ele dominado, perde-se enquanto Estado. Ora, se tudo isto não são relações autocentradas de poderes (r)estritos – econômicos/políticos – sobre o conjunto do universo social e natural em que se inserem (portanto, nomeadamente, fatores de desequilíbrios nas relações ecológicas, em todos os sentidos), então, ou a longa história dos governos ditos “socialistas” da Europa “democrática” durante o Séc.XX teria evitado a eclosão dos processos de esgotamento de recursos naturais, do aquecimento global e do domínio crescente das grandes corporações sobre a vida das sociedades modernas (é óbvio que processos desta magnitude não são consequência apenas do curto período histórico de tempo – menos de meio século – em que o neoliberalismo surgiu e se impôs no cenário político dos países centrais) ou, por outro lado, os Estados autodenominados de “socialistas” demonstrariam uma história de razoável “equilíbrio” de poder entre comunidades (sejam humanas ou não) e Estado, o que, em ambos os casos, sabe-se que não acontece(u). Como se vê, o esboço de “solução” delineado pelo autor, já teve sua aspiração ao sucesso frustrada, desde os experimentos da sua primeira versão de projetos de governos “humanizadores” do capitalismo e/ou “socializantes”, experimentados ao redor do mundo durante boa parte do Séc. XX.

Enquanto não se admitir que todo imaginário – e consequentes práticas sociais – hierarquizante(s) é antiecológico por definição (ou seja, promotor de desequilíbrios crescentes, visto que favorece mais a alguns elementos específicos das relações, em detrimento do conjunto como um todo), sempre se recairá de novo na ilusão de “placebos” para tentar evitar o enorme colapso em que o sistema globalizado está para mergulhar (e levar, junto com ele, quase todo o mundo).

Quem sabe, assim que a última e “mais cruel” lição deste sistema se realizar – o colapsamento deste mundo – o poder de ilusão dos placebos se esgote pela desilusão definitiva com a possibilidade de “domesticação” do sistema por dentro dele próprio. Aí, ficará demonstrado inequivocamente a incompatibilidade de lógicas cosmogônicas sociais hierárquicas com o caráter complexo, descentrado, multidependente, anárquico mesmo, dos processos naturais de equilibrações dinâmicas (e da própria espécie, como expressão da natureza que é, também).

A maior, mais contagiosa e mais letal pandemia do mundo, é a expansão do imaginário da cosmogonia hierárquica: deste “vírus”, nem as cabeças supostamente “vacinadas” pela ciência escapam (como é de se esperar, para quem sabe que “a ciência” também é parte desta mesma cosmogonia)..

agência de notícias anarquistas-ana

Essas maritacas
Nem no dia de domingo
Me deixam dormir.

Tainá Aparecida do Vale Rocha – 10 anos