[Espanha] Como a própria vida em tempos de Covid-19

Há cerca de vinte anos a chamada “economia feminista” começou a falar da contradição entre Capital e Vida, entre as coisas e a vitalidade (ou o vivo), entre a vida e as normas que a enquadram para despojá-la de sua dimensão vitalista¹. O Covid-19 trouxe à tona a necessidade, a fim de preservar a integridade dos “vivos”, de um conjunto de dispositivos para enquadrar a vida (evitando os riscos da pandemia), o que na verdade significa tirar a dimensão vitalista da vida.

O sistema econômico capitalista colocou as coisas, as mercadorias e o capital no centro da economia e o fez à custa de um lado B que repousa sobre três pilares: a divisão sexual do trabalho, a pilhagem do sul global e a predação ambiental. A divisão sexual do trabalho sempre implicou que, para sustentar a economia de mercado (visível e principalmente masculina), existiam os espaços invisíveis da economia nos quais se localizavam os empregos para sustentar a Vida (gratuitos e geralmente assumidos pelas mulheres).

O capitalismo tem colocado sistematicamente a Vida em risco (das pessoas e de todo o Planeta), reparar os danos à Vida é o que tem sido chamado de “cuidado” (parte daquela economia invisível, livre e feminizada). “Cuidado” é tudo o que é necessário para que a vida funcione, um espectro muito amplo da economia que não se reduz apenas à dependência, ao cuidado infantil ou ao trabalho doméstico.

O capitalismo desde sua origem, e também na fase neoliberal que estamos vivendo (Rita Segato o chama de “fase apocalíptica do capital e do patriarcado a serviço do capital²”), tem se baseado na pilhagem da Vida e isso está levando o mundo ao limite de seus recursos com relação à população, além dos efeitos nocivos ao Planeta, entre os quais se destaca a mudança climática. Esta situação apocalíptica, ou suicida, não é circunstancial, mas sistêmica. O sistema precisa sempre desse lado B baseado no saque da Vida, que é o conflito básico e insolúvel se não mudarmos o capitalismo para outro sistema baseado na sustentabilidade da Vida que implica profundas transformações: o decrescimento, basear a economia em outros sentidos da Vida, a coletivização e desmercantilização da resolução das necessidades, a reorganização dos trabalhos socialmente necessários, etc.

Mas o objetivo deste texto não é ficar apenas nas reflexões teóricas, embora eu seja de opinião que teoria e prática são duas formas igualmente úteis, nunca contraditórias, pois teoria e prática constituem duas dimensões que interagem e se reforçam mutuamente, ao mesmo tempo em que ambas são autônomas. O conhecimento é adquirido como uma dimensão de ação, se esta é poderosa, a razão desenvolve ideias que são acompanhadas pelas possibilidades de ação. Como eu disse, este texto visa trazer “a própria vida” e, para isso, pedi a várias mulheres que escrevessem sobre como o Covid-19 estava afetando-as.

MEDO

“O medo é a primeira coisa que me vem à cabeça. Ah, que perigo! Medo de perder a própria vida. O medo nos transforma em argila para modelar. Isso nos faz adaptar a qualquer situação (confinamento) que aceitemos qualquer condição e esqueçamos de questionar quase tudo. No meu caso, o medo ao quadrado. Sou responsável por nada me acontecer porque a vida do meu marido, “um alto risco”, depende disso. A casa é minha segurança, nossa segurança. Eu saio o menos possível e quando tenho que passar por tal estresse que acho que minhas artérias se estreitam por um milésimo de milímetro”.

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“No começo eu estava com raiva porque parecia que o medo nos isolava e não nos permitia ver mais nada. Isso significava que parecia que os trabalhadores não conseguiam se organizar de forma alguma, os sindicatos – alternativos e não alternativos – ficaram chocados e tudo o que fizeram foi enviar reclamações à inspeção do trabalho ou chamar a polícia, como se xs trabalhadorxs que já estavam lotadxs em plataformas de 500 ou 1000 pessoas não pudessem exigir nada juntxs. O medo tinha enchido e enegrecido tudo de repente, tão fortemente que ficamos paralisados”.

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“Cada dia na minha vida era um estado de medo e incerteza, para que andar [do Hospital 12 de Octubre de Madrid] eles iam me mudar e para o que eu ia encontrar lá. No final, tive a sorte de não ter sido encaminhada para as alas do Covid-19, pois era a mais antiga no turno da tarde em minha especialidade. A administração do hospital foi totalmente desinformada; descobrimos o que estava acontecendo com nossxs companheirxs que estavam nas alas do Covid-19. A ansiedade e incerteza ainda era o tom geral, você chegava no trabalho e o supervisor nos dava – ou melhor, tínhamos que ir e perguntar a ela – uma máscara cirúrgica diária porque as máscaras FFP2 e FFP3 são reservadas para as operações. Também não sabíamos quais de nós poderiam ter o vírus, estavam assintomáticos ou o havíamos transmitido sem saber.

Continuamos aprendendo com os comentários entre nós que havia muitxs companheirxs que estavam sendo infectados, do transbordamento do departamento de emergência, da saturação das UTIs e do quanto os pacientes estão ficando mal, do número de pacientes que estão morrendo todos os dias e do fato de que eles estão começando a discriminar os pacientes com base na idade e nas patologias anteriores”.

TRABALHO

“Quando você está emocionalmente tocada, afunda ainda mais ao ver a situação dxs companheirxs, muitas e muitos ao nosso redor, que estão vivendo ERTE’s (Expediente Temporário de Regularização Temporário de Emprego), demissões e situações como a sua e você nesses momentos não tem ferramentas nem físicas (por causa da situação) nem emocionais para poder ajudar como em outros momentos. TEM SIDO DIFÍCIL”.

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“Toda a deficiência que sentimos como trabalhadorxs se materializou em você indo trabalhar como se o Covid-19 fosse estranha às nossas vidas no local de trabalho. Nos fins de semana você estava confinadx e de segunda a sexta-feira você jogou a roleta russa do contágio. Resignação que gerou frustração que levou à loucura. Essa loucura sem contrapeso argumentativo produz as famosas saídas individuais que sempre isentam o empregador da sua responsabilidade de estabelecer condições dignas para exercer nosso trabalho ou, se não, de exonerar ou do teletrabalho sem nos pagar com nosso salário sua maligna incompetência… Por fim, o acordo CCOO-UGT-CEOE sobre o ERTE como única saída para o conflito foi materializado nas diferentes plataformas. Concretizava-se, ainda mais difícil de assumir, que a maioria dos chamados sindicatos alternativos defendia secretamente a mesma solução. A polícia teve que vir após uma semana para forçar a Atento a deixar um posto e impor os géis desinfetantes, deixar as portas abertas, etc. Ainda estávamos sem máscaras ou luvas ou desinfecção diária do posto ou escritório, embora já existissem dois trabalhadores infectadxs”.

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“Desde segunda-feira, 30 de março, tenho perdido garantias de emprego porque eu tenho que colocar todos os meios: computador, tela, teclado, luz, cadeira, ADLS… Mais uma perda de direitos conquistados em prol dos patrões. Além disso, eles monitoram seu computador e para o controle do trabalho remoto fizeram um grupo de whatsapp onde nos informam as orientações do serviço e onde você indica quando você vai descansar e outras necessidades”.

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“Quando o departamento de emergência começa a ser preenchido com pacientes do Covid-19, uma semana antes do governo decretar o estado de alarme, o supervisor nos liga e nos diz que a unidade de consulta onde trabalho será desmantelada e que três equipes – cada uma formada por um médico, uma enfermeira e um assistente – serão formadas, apenas para as emergências da minha especialidade”. Finalmente, a realidade dos casos de Covid-19 foi tão esmagadora que as equipes foram reduzidas a uma, as demais foram movidas para cobrir os casos de Covid-19 nos andares que estavam fechados e tiveram que ser viabilizadas pela avalanche de doenças de Covid-19. Qual foi o critério utilizado pelo hospital para conseguir que saíssem uns companheirxs e não outrxs? Muito simplesmente, primeiro seriam emitidos os contratos temporários, depois os contratos provisórios dependendo do tempo de serviço e, finalmente, os contratos a prazo também aplicariam o critério do tempo de serviço.

A incerteza e a preocupação estão agora centradas nxs companheirxs – médicxs, enfermeirxs, auxiliares, zeladores – com contratos e condições precárias. Em princípio, se o número de pacientes, de consultas no andar, de intervenções for reduzido, elas não serão renovadas. Companheirxs com contratos a cada três meses e que têm sido assim por anos”.

CUIDADOS E CORPOS

“Descobri que as rotinas ajudam, e muito. No início você começa com o desejo de organizar, de organizar tudo, armários, gavetas, livros… e para limpar, limpeza geral, você tem que ocupar o tempo. Mas pouco a pouco você perde esse interesse e entra em desespero. E então as rotinas aparecem. Entre outros (exercício pela manhã, leitura, telefone, videochamadas (ahh! amigos), circuito de casa…) o crochê, uma cortina que minha mãe começou e não conseguiu terminar. Encontrei-a numa daquelas manhãs de arranjo geral de guarda-roupa. Deixei-a à vista e uma tarde liguei o rádio e decidi continuar. Descobri que isso me relaxa, me liga a ela, me impede de pensar e, sim, me ajuda a me desligar por um tempo deste pesadelo”.

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“Eu vivi este confinamento como um retorno para mim”. Para mim tem sido um despertar e um período de reflexão sobre como eu estava lidando com meu tempo, meu corpo e minha atenção nos últimos meses. Minha vida chegou a uma parada seca, passei de levantar às seis horas e não parar e voltar em oito ou dez horas depois, para não sair de casa por quase um mês e meio. A isto se juntaram os dependentes doentes e questões pessoais a serem resolvidas. Portanto, a primeira quinzena foi um processo pessoal muito duro de tristeza e reflexão. Mas também devo admitir que me senti egoísta porque, no final, quando penso que consegui superar esse período, sinto que ele foi, ou está sendo, positivo para mim no meu processo pessoal”.

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“Pouco a pouco você vai perdendo o interesse [em notícias pandêmicas] e ficando cada vez mais desesperada. As notícias informam, mas desinformam.  Você deixa de vê-las e de ouvi-las. Isso já não importa mais. Não há certezas. É tudo incerteza. Você não vê a saída. E então eles começam a tentar enviar emoções. Os olhos ficam vermelhos e as lágrimas vêm facilmente. Você tenta não deixá-los te ver para não infectá-los e tenta de todas as maneiras sair dessa situação”.

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“Foi uma preocupação constante e uma vulnerabilidade tanto profissional quanto pessoal. Um deslize de emoções, de sentimentos na superfície… Uma das minhas melhores amigas me ligou preocupada comigo e me disse que ela estava infectada, mas apenas com febre, que ela estava bem. Alguns dias depois ela é admitida com CPAP (respirador), encaminhada ao pré-UVI, muito grave. Esta é a beligerância deste vírus, mas parece que ainda não estamos cientes disso”.

Para concluir esta reflexão, Rita Segato diz que nós mulheres temos nos autorizado mais do que os homens a entrelaçar o pensamento com a vida. Pode ser, em qualquer caso, que estes fragmentos nos tragam um vendaval de vitalidade das pessoas que colocam a Vida no centro.

Laura Vicente

[1] São muitos os autores que, de diferentes disciplinas, enfrentam essa contradição impulsionada pelo capitalismo. Cito os três que mais influenciaram minha maneira de ver esta edição: Amaia Pérez Orozco, Rita Segato e Rosi Braidotti.

[2] Rita Segato (2018): Contra-pedagogias da crueldade Buenos Aires, Prometeo Livros.

Fonte: http://pensarenelmargen.blogspot.com/2020/05/como-la-vida-misma-en-tiempos-de-covid19.html

Tradução > Liberto

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