[Espanha] Coronavírus e sociedades tradicionais

Por Carlos Taibo | 04/05/2020

Suponho que o mesmo está acontecendo com você: a avalanche de informações, tendenciosas ou não, e de opiniões, fundadas ou não, que nos assaltam não pode deixar de nos deixar meio atordoados. De vez em quando, porém, algumas notícias, ou alguma interpretação, fazem de uma luz uma lâmpada entre as muitas que estão apagadas.

Aconteceu-me há algumas semanas quando recebi um artigo da revista Forbes, que já mencionei várias vezes. O artigo concluiu que, como resultado da significativa redução da poluição na China, nada menos que 77 mil pessoas seriam salvas, um número vinte vezes superior ao número de mortes naquele país distante, e de acordo com os números oficiais controversos, como resultado do coronavírus. Não há nada de particularmente surpreendente nesta figura, é claro, aos olhos daqueles que estão conscientes das consequências da loucura que está assaltando nossa civilização industrial agredida. No entanto, passou bastante despercebido.

Ontem, no entanto, outra lâmpada acendeu-se. O rastilho foi um artigo publicado no La Vanguardia. O texto, de Joaquín Luna, procurou explicar porque Portugal e a Grécia apresentam níveis significativamente mais baixos de incidência de coronavírus do que os registrados em outros cenários. Neste sentido, foi citado um fato revelador: enquanto na Extremadura espanhola, com 1.060.000 habitantes, quase quinhentas pessoas haviam morrido devido ao efeito da pandemia, no vizinho Alentejo, Portugal, com 760.000 pessoas, uma única morte havia sido contada. Isto é tanto mais preocupante quanto estamos falando de duas áreas geográficas adjacentes e, em muitos aspectos, semelhantes.

Confesso que, quando se trata da discussão correspondente, não estou interessado na habilidade e sabedoria, presumida ou real, dos governantes. Gostaria de prestar atenção, antes, a dois fatos – que sinto estarem relacionados um com o outro – que são mencionados no artigo que estou discutindo e que certamente merecem uma reflexão mais atenta do que aquela que estou empreendendo aqui.

Entendo que o primeiro desses fatos é igualmente evidente em Portugal e na Grécia, ou pelo menos em uma grande parte dos respectivos territórios. Refiro-me à presença muito ligeira de um fenômeno, as residências de idosos, que é bastante desconhecido e, de qualquer forma, excluído, em sociedades marcadas por códigos comunitários tradicionais. Nestas sociedades, é comum homens e mulheres idosos viverem e morrerem em casa, junto com suas famílias, de tal forma que o cenário – acho que não preciso dar mais explicações – é muito menos permeável ao desastre que se abateu sobre a Espanha, a Itália, a França e o Reino Unido. Há algumas semanas, um colega me disse que, segundo um estudo realizado em lares de idosos em uma área da Comunidade de Madrid, apenas 17% dos homens e mulheres idosos haviam deixado suas casas para passar as férias de Natal com suas famílias. Os dados – eu acho – são arrepiantes. E não quero de forma alguma ignorar que as residências de que me ocupo muitas vezes desempenham tarefas muito honrosas, e que as pessoas que nelas trabalham merecem todo o respeito. Teremos que falar sobre os efeitos dramáticos da privatização dessas instituições em outro dia.

O segundo dos fatos que antecipei, que é muito marcante, é a desconfiança que os hospitais tendem a provocar em muitas das pessoas que vivem, e particularmente entre os idosos, naquelas sociedades comunitárias tradicionais que acabo de mencionar. Parece que, em virtude de um excelente paradoxo, quanto mais fraco é um sistema de saúde – e os sistemas português e grego são, pelo menos em termos comparativos – maior a possibilidade de as pessoas se confinarem espontaneamente e reduzirem eficientemente os riscos. Entretanto, e em paralelo, é mais provável que os países com sistemas de saúde mais desenvolvidos julguem mal sua enorme capacidade de lidar com os problemas sem grandes contratempos, o que, no final, acabará ficando fora de controle.

Com relação a uma discussão como a anterior, não posso e não desejo chegar a nenhuma conclusão definitiva. Minha intuição, entretanto, é que os resultados moderadamente lisonjeiros registrados em Portugal e na Grécia em relação à pandemia têm mais a ver com a ascendência de certos elementos típicos das sociedades tradicionais do que com a gestão dos que estão no poder. É claro, eu afirmo esta tese com toda a cautela. Certamente não sabemos como Portugal e a Grécia vão acabar. Nem é óbvio para mim que o cenário da Extremadura é diferente do de Alentejo em termos das questões-chave que aqui tratei. Finalmente, os únicos dados estatísticos que tenho disponíveis sobre lares de idosos em Portugal em relação ao coronavírus indicam que se a média mundial de mortes nesses lares é de 50% do total – certamente a média espanhola é maior – em Portugal o número é um pouco menor, em 40%. No bom entendimento de que falta uma desagregação geográfica destes últimos dados, uma desagregação que provavelmente lançaria luz, em qualquer sentido, sobre a tese que estou defendendo.

Eu poderia continuar acumulando incógnitas e, no final, reconhecer que o que me levou a escrever estas linhas é a memória de como minha mãe, que morreu há alguns anos atrás, lutou com sucesso para morrer em casa e não para colocar os pés em um hospital. Talvez a dela tivesse sido uma defesa não insignificante contra o coronavírus. Digo isto com toda a admiração pelas pessoas que suaram sangue para salvar nossas vidas e desde a denúncia da ignomínia daqueles que dinamitaram, com premeditação e malícia, o sistema de saúde pública.

Fonte: https://www.carlostaibo.com/articulos/texto/?id=676&fbclid=IwAR0u8azOWinbBj3BmjYNRL1YpmE6ta_cuHobddGApVI5HaTR-5AWMouqqoc

Tradução > Liberto

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