[EUA] Sou um anarquista que está sempre preparado para a crise – agora ela está aqui

Este momento prova que não podemos contar com o governo. Precisamos cuidar um do outro.

Por Kitty Stryker | 13/04/2020

Quando vi uma ligação urgente de um médico do pronto-socorro local pedindo máscaras N95, atendi. Acontece que eu tinha 40 no meu equipamento de sobrevivência, a maioria para distribuir durante a temporada de queimadas. Não pensei duas vezes em desenterrá-las e deixá-las na garagem daquele médico.

Eu não sou exatamente o que você pode imaginar quando pensa em alguém que se prepara para o fim do mundo como nós o conhecemos. O estereótipo, graças a shows como o Doomsday Preppers, geralmente é alguém em uma área rural, profundamente conservadora, com um bunker cheio de armas e comida enlatada. Eu sou o oposto disso. Para começar, sou deficiente e queer, com cabelos coloridos e uma coleção de camisetas com trocadilhos de Dungeons e Dragons. Alugo um apartamento em uma cidade onde não tenho nem quintal. Atualmente não tenho uma arma, embora saiba atirar.

Quando o mundo está se desmoronando, assim como está no momento devido ao Covid-19, é mais provável que eu entre no caos para ajudar os outros do que parar para esperar que ele passe.

O mais importante para minha ética é que sou um anarquista, o que para mim significa que não tenho grandes expectativas de que o governo esteja interessado em me ajudar nos bons momentos – e muito menos nos piores. Ao invés disso, eu estabeleço conexões com a minha comunidade local para que possamos formar uma rede de segurança sem depender da ajuda do governo.

Nunca foi tão claro o quanto estamos interligados e o quanto precisamos cuidar uns dos outros, tanto para o nosso próprio bem como para o bem da sociedade.

Uma grande parte do meu sistema de valores é a ajuda mútua, o que para mim se resume à crença de que temos mais chances de sobrevivência quando cooperamos do que quando competimos. O altruísmo é pragmático porque quando damos aos outros, todos nós nos beneficiamos – uma ideia delineada em Ajuda Mútua: Um Fator de Evolução de Pëtr Kropotkin, um anarquista russo, publicado em 1902. Isto vem em forte contraste com o mantra da “sobrevivência do mais forte”.

Em nosso atual estado de emergência, mais pessoas estão começando a olhar para as redes de ajuda mútua – essencialmente, os sistemas informais criados pela comunidade para servi-la de forma voluntária. Muitas pessoas perderam seus empregos devido ao coronavírus e perceberam como sua estabilidade sempre foi tênue. Com tantos desempregados e tão poucos negócios abertos, as pessoas começam a ver a dura realidade de que não é tão fácil “arranjar um emprego” para sobreviver por conta própria. As pessoas estão procurando ajuda umas das outras para sobreviverem aqui em São Francisco, parece que pelo menos 1 em cada 17 pessoas não consegue pagar aluguel. Aqueles que são imunocomprometidos e/ou idosos estão pedindo ajuda nas compras de mercearia para que possam diminuir sua exposição.

Nunca foi tão claro o quanto estamos interligados e o quanto precisamos cuidar uns dos outros, tanto para o nosso próprio bem como para o da sociedade.

O termo ajuda mútua está se tornando comum durante este momento, mas muitas pessoas vêm trabalhando nesta direção há décadas. Eu pessoalmente comecei com a ajuda mútua há mais de 10 anos quando me tornei um médico de rua para protestos, começando com o Occupy e depois Black Lives Matter e nas Battles for Berkeley. Ser um médico foi um trabalho árduo, muitas vezes envolvendo marchar ao lado e oferecer ajuda conforme necessário por oito horas, às vezes mais, muitas vezes em condições de nervosismo. Eu tinha que ter cuidado com os Proud Boys com bonés “Make America Great Again” e com a polícia. Eu me senti motivado a continuar ajudando fora do caos e do trauma dos protestos, fazendo primeiros socorros básicos para acampamentos de sem-teto e conectando meus amigos aos treinamentos de Narcan em Bay Area. O que começou como preenchimento de um papel durante uma pontual situação, tornou-se a minha maneira de viver.

Uma forma de pensar “cada um por si” é exatamente o oposto do que é necessário diante de uma pandemia.

Eu não me preocupo com a comunidade porque espero compensação imediata ou gratidão. Eu doei essas máscaras N95 porque, ao garantir que os profissionais médicos tenham algum equipamento de proteção, estou ajudando a diminuir a propagação dessa pandemia. Desacelerando a pandemia eu posso sair de casa com segurança muito mais cedo. Eu faço isso pela comunidade sem teto porque eles são meus vizinhos, e nós olhamos uns pelos outros – aliviar o desespero significa menos pequenos crimes na minha vizinhança.

O altruísmo é, no final, um tanto egoísta, mas isso não o torna menos valioso.

As redes de ajuda mútua não são apenas um conceito anarquista. Elas existem muito antes da crise atual, desde as guildas medievais ao Partido Pantera Negra, até os sindicatos modernos. Estes coletivos voluntários ainda são incrivelmente úteis. Habitat for Humanity, um grupo que constrói casas para os desabrigados, é um grande exemplo, assim como o Mask Oakland (que fornece máscaras N95 para pessoas carentes durante a temporada de queimadas na Califórnia) ou o Common Ground Relief and Clinic em Nova Orleans após o Katrina. É visto em grupos de distribuição de alimentos como Food Not Bombs em People’s Park em Berkeley, ou West Oakland Punks With Lunch. Petições GoFundMe pedindo ajuda para pagar aluguel ou contas médicas também são um exemplo de ajuda mútua em um nível maior.

Nossa sociedade normalmente favorece uma abordagem mais individualista. Muitos preppers (pessoas que se preparam para catástrofes), por exemplo, estão mais interessados em se proteger e proteger suas famílias do que em colaborar ou cooperar. Na crise atual, temos visto muitas pessoas com recursos fretando aviões e fugindo para suas casas de praia (correndo o risco de contaminar novas comunidades e de esvaziar os recursos de cidades pequenas). Uma forma de pensar “cada um por si” é exatamente o oposto do que é necessário diante de uma pandemia, onde ninguém é uma ilha, nem mesmo uma ilha.

A assistência governamental é boa quando – ou se – ela acontece, mas pode levar muito mais tempo para se manifestar do que o que nós mesmos podemos fazer.

É por isso que eu gosto especialmente de iniciativas de ajuda mútua como uma abordagem de base para a preparação para desastres. Isso nos incentiva a nos afastarmos do nosso desejo capitalista de nos retirarmos e, em vez disso, incentiva a nos aproximarmos dos nossos vizinhos que precisam de ajuda. Você não precisa ser rico ou ter muito tempo disponível para apoiar as pessoas que usam essas redes de ajuda mútua. O que você tem em mãos é suficiente para ajudar os outros, qualquer coisa que você puder doar é valiosa.

Olhando uma lista local do guia de recursos de ajuda mútua específico da Bay Area, vi pedidos de ajuda com dinheiro de aluguel, uma bicicleta para se exercitar com segurança, dicas de pintura, conselhos sobre educação à distância, alguém para ir ao supermercado para pegar a leite em pó. Vi também quantos pedidos foram atendidos, estranhos cuidando de estranhos, um salto de fé da parte de todos. Isso sempre me emociona.

Outra vantagem da ajuda mútua é que ela pode começar aqui e agora. A ajuda governamental é boa quando – ou se – acontece, mas pode levar muito mais tempo para se manifestar do que o que nós mesmos podemos fazer. Mesmo quando ela vem, muitas vezes não é suficiente, e muitas pessoas ficam de fora dos serviços e recursos fornecidos porque não se encaixam no perfil certo.

Um dos meus livros favoritos, A Paradise built in Hell, de Rebecca Solnit, ilustra situações em que as comunidades locais e as empresas prestaram melhores cuidados semanas mais rápido do que o governo. Na verdade, Solnit delineia vários cenários nos quais os funcionários do governo se opuseram ativamente a projetos de ajuda mútua, aparentemente impedindo-os de ter controle e poder em vez de realmente cuidar de seu povo mais vulnerável. A burocracia já é ineficiente em tempos tranquilos, mas pode ser fatal em uma emergência, onde cada minuto importa.

Como disse Solnit em uma entrevista com a WBUR:

Sabe, essa sensação de que de repente tudo pode ser profundamente diferente porque algo terrível aconteceu nos lembra que tudo pode ser profundamente diferente, talvez até mesmo não só porque algo terrível aconteceu. Os poderosos se esforçam para restaurar um status quo que funcionou muito bem para eles. Os desfavorecidos dizem: “Uau, tudo mudou. Nós não estamos prontos pra voltar ao que era antes.”

Para não perder tudo isso, é importante explorar como tornar esse trabalho sustentável. Há sempre mais necessidade de ajuda, não só durante um desastre, mas também após, e isso é exaustivo. Para mim, vale a pena lembrar que é importante colocar minha máscara de oxigênio em primeiro lugar, para que eu possa ajudar melhor os outros. Eu sou inútil se estiver queimado e emocionalmente esgotado, e você também é. Eu estabeleço metas pequenas e factíveis para fazer algum trabalho de ajuda mútua todos os dias, e eu vario o trabalho para que eu fique equilibrado. Também faço questão de reservar tempo por semana para meus hobbies; jogo Dungeons and Dragons com amigos duas vezes por semana, e preencho o resto do meu tempo livre com culinária, tricô e escrita.

Lembro também que posso pedir ajuda, e não apenas providenciá-la. Isso é uma coisa importante que adoro nos projetos de ajuda mútua – a dinâmica não coloca uma pessoa numa posição de poder sobre outra. Recentemente, ofereci uma garrafa extra de higienizador de mãos a um amigo que trabalha nas linhas de frente, e ele me perguntou o que queria da Target. Recebi um pouco de farinha e manteiga vegana Earth Balance, que usei para assar pão.

A ajuda mútua, quando bem feita, pode ser uma troca fluida de recursos. Isto é intuitivo para as pessoas pobres que conheço, que muitas vezes doam dinheiro de acordo com a necessidade – esta semana eu posso precisar de $5 para comer, mas quando eu for pago, vou passar esses $5 para alguém que precisa para gasolina, e assim por diante.

Tem sido incrível ver quantas pessoas, frente a uma pandemia, encontraram maneiras de cuidar de si mesmas e de suas comunidades. Precisamos manter essa energia circulando aqui, para que se estenda de semanas a meses. Manter o ritmo é uma parte importante desse processo, assim como cuidar de nós mesmos. Muitas pessoas estão fazendo hobbies para os quais nunca tiveram tempo: assar, jardinagem, arte, música. Outras estão se comprometendo a se exercitar pelo corpo e pela mente.

Coletivamente, estamos cuidando uns dos outros neste momento, quer seja conversando com um amigo, mandando um recado para um vizinho, ou simplesmente ficando em casa para que os outros não adoeçam. Que todos nós possamos lembrar o quanto isso é valioso, e como é bom – não apenas hoje, não apenas durante o epicentro desta pandemia, mas para o resto de nossas vidas.

Fonte: https://thebolditalic.com/amp/p/3868306cbbc

Tradução > Otchobi

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Isabelli Pires da Luz – 10 anos