[EUA] Entrar na Zona: Um Relatório da Zona Autônoma de Capitol Hill, em Seattle

Terça-feira, 09 de junho de 2020

O seguinte texto é uma entrevista a um morador de Seattle que esteve nas ruas durante a recente revolta e assistiu os justiceiros, a polícia e a Guarda Nacional atacando manifestantes no bairro de Capital Hill. Agora, depois de mais de uma semana de intensos protestos e confrontos com as autoridades, a polícia de Seattle evacuou da sua delegacia leste e uma zona autônoma surgiu ao redor do prédio vazio. Querendo saber mais sobre o que está acontecendo, conversamos sobre como foi a última semana e meia nas ruas.

IGD: De um modo geral, o que tem acontecido em Seattle desde os protestos intensos que começaram no final de maio?

As coisas começaram em Seattle em 29 de maio, sexta-feira, sendo o sábado, dia 30, o dia mais intenso de protestos e saques. Os dias que se seguiram tiveram tons semelhantes, mas foram geralmente focados na Delegacia Leste do Departamento da Polícia de Seattle, no bairro de Capitol Hill. Foi aqui que se sucederam a maioria dos confrontos noturnos com a polícia.

Todos os dias assistimos a manifestações massivas por toda a cidade, à medida que a infraestrutura de protestos ao longo dos principais corredores comerciais de Capitol Hill cresce. Comida, música, médicos e médicas, mesas de literatura e uma vigília aos falecidos e falecidas surgiram ao longo da semana.

IGD: No outro dia, a polícia anunciou que ia recolher as suas coisas e abandonar a sua delegacia. O que é que conclui disto?

Para ser sincero, é uma incógnita. Existem muitas teorias sobre o porquê de terem abandonado a delegacia. Algumas pessoas acham que os recursos acabaram, outros acham que foi uma decisão politicamente conveniente da parte do presidente da câmara. Na minha perspectiva, esta foi uma “boa” jogada por parte da prefeitura. Eles estavam sendo martelados na imprensa pelos contratempos noturnos causados pela enxurrada de gás lacrimogêneo e confrontos nas ruas e as multidões nunca ficavam realmente menores, pelo contrário. Quando um atirador ativo da polícia estava em cena, as pessoas corriam para o bairro para dar apoio.

Os riscos que as pessoas estavam enfrentando ao encararem a polícia noite após noite simplesmente não eram o impedimento que suponho que a prefeitura pensasse que seria. Após deixarem a delegacia, embora certamente tenha sido um golpe ao seu poder, o foco foi retirado da polícia fortemente militarizada que ainda ronda na área.

Eles também lançaram uma dura campanha contra os “incêndios criminosos” através de mensagens nas redes sociais sobre as “ameaças de incêndio criminoso à delegacia” e sobre o Departamento de Bombeiros de Seattle estar em “espera”. Do meu ponto de vista, foi uma aposta estratégica da prefeitura, uma vez que perceberam que o que estavam defendendo era no máximo simbólico. O que eles talvez não tenham tido em conta é a importância da simbologia para a revolta – as estátuas que são deitadas abaixo por todo o mundo são um bom exemplo.

IGD: A área no bairro de Capitol Hill, onde as pessoas se têm reunido, foi descrita como uma zona autônoma. Pode falar mais sobre isto?

Autonomia vai significar muitas coisas para muitas pessoas. Este espaço certamente não é controlado pela prefeitura neste momento. Mas é importante lembrar que, por causa da pandemia, este bairro foi quase abandonado nos últimos 2 meses, o que o tornou uma excelente opção para ocupar, mas também um espaço mais fácil para passar a sensação de que é nosso.

Capitol Hill é o histórico bairro queer, e antigamente era onde moravam as e os punks, músicos e todos os freaks. As batalhas campais em torno de Ferguson em 2014/2015, o Occupy em 2011/2012 e o movimento antipolicial de 2010/2011 viram a maioria destes conflitos ocorrerem em Capitol Hill. Este sempre foi o “nosso” bairro – mas, como em literalmente todas as outras cidades dos EUA, a rápida gentrificação e as mudanças demográficas expulsaram toda a gente, corporatizaram o mês do Orgulho LGBT+ e transformaram o bairro num corredor tecnológico. Atualmente, as ruas são nossas novamente e com isso vem a próxima batalha de o que significa ser autônomo?

IGD: Como é a multidão que está saindo para estes eventos? Como é que os grupos burocráticos de esquerda/pacifistas juntamente com a polícia tentaram manobrar neste contexto e como é que foram recebidos?

Com 9 dias de tumultos, saques, manifestações, protestos, confrontos e tudo mais, é difícil categorizar a multidão de qualquer forma. Mas, em geral, especialmente no noroeste do Pacífico, esta foi uma das revoltas mais diversas, intergeracionais e generalizadas que eu já vi.

As ruas foram preenchidas com zoomers enérgicos e anarquistas endurecidos, “manifestantes pacíficos” e aqueles que querem confrontar diretamente a polícia e o capital. O que emergiu taticamente é a ideia de que a defesa militante era aceitável e de que ações mais agressivas contra a polícia eram mais controversas, levando a um elemento profundo de “policiamento da paz” que tem sido consistente. Apesar disso, pessoas de todos os tipos continuaram a avançar sobre as linhas da polícia, a atirar tanta merda para a polícia e a tentar criar tensões com os policiais que literalmente fizeram chover gás lacrimogêneo na cabeça das pessoas. A natureza complexa da raça e da liderança tem sido proeminente nestes confrontos, com pessoas brancas impedindo a juventude negra de levar a cabo os seus conflitos porque têm algum tipo de problema com a “liderança negra”. Estas dinâmicas tornaram a coesão na multidão difícil, mas não impossível. Porra, apesar das polícias da paz, as pessoas foram capazes de manter a Guarda Nacional à distância e fazê-los abandonar a sua amada delegacia, portanto não podem ter sido tão poderosos no final das contas.

No geral, houve muita emoção sentida visceralmente nestes blocos. Tanta alegria e tanta raiva ao mesmo tempo num momento em que as pessoas se reúnem fisicamente pela primeira vez em meses devido à pandemia do Covid-19. A música ao vivo é tocada todas as noites por uns músicos que se autodenominam Marshall Law Band, a menos de um quarteirão de distância de onde a polícia estaria atirando gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral contra manifestantes. A palavra surreal mal descreve a experiência.

IGD: A Guarda Nacional já saiu. Isto muda alguma coisa?

A Guarda Nacional na noite passada (08/06/2020) ainda estava presente em Seattle. Eles foram vistos em vários estacionamentos e parques de escolas públicas nas áreas próximas do bairro. Não os vendo a fazer o backup das fileiras policiais, que também desapareceram do quarteirão, claramente permite uma atmosfera mais tranquila. Havia muita raiva revelada contra a Guarda Nacional quando marchavam fisicamente com a polícia para pressionar os manifestantes, as pessoas ainda parecem estar muito apegadas a esta ideia de que a Guarda Nacional deveria servir o “povo americano” e toda a gente está os chamando de traidores por desempenharem um papel de suprimir a insurreição. A escola pública do distrito de Seattle postou no tuíter que estavam procurando uma maneira de impedir a Guarda de usar os seus estacionamentos como áreas de preparação, uma declaração encorajadora para todos e todas nós que tivemos de lidar com eles durante a última semana.

IGD: As forças policiais em Seattle e Portland parecem tentar aguentar mais do que as pessoas nas ruas; atirando gás lacrimogêneo às pessoas repetidamente. Consegues dizer alguma coisa em relação à estratégia geral deles nas ruas? Como é que as pessoas reagiram?

A polícia de Seattle tentou muito claramente consertar a sua imagem de relações públicas nos últimos dois dias que levaram à sua retirada da delegacia. A polícia de Seattle tem emitido inúmeras advertências por meio de sistemas de som, citando especificamente a importância de protestos pacíficos e afirmando coisas como: “São vocês os manifestantes que avançaram a vossa linha em relação a nós, não fizemos nenhum movimento na vossa direção”. Eventualmente, estes avisos transformam-se num dilúvio de táticas de dispersão de multidões, incluindo, entre outros, gás lacrimogêneo, gás pimenta, bolas de pimenta disparadas com armas de paintball e com balas de borracha e bombas de efeito moral disparadas diretamente contra os e as manifestantes.

Não tenho nada a ver com a capacidade das multidões de manter a calma diante destas manobras agressivas da polícia. Inúmeros vídeos mostram as multidões simplesmente se  afastando lentamente das fileiras policiais, formando filas defensivas com escudos e guarda-chuvas e às vezes atirando gás lacrimogêneo e gás pimenta de volta à polícia. No entanto, é também nestes momentos que algumas pessoas aproveitam a oportunidade para atirar coisas à polícia, o que ainda é incrivelmente impopular nas ruas, mesmo quando a polícia está ativamente atacando as pessoas.

IGD: Na outra noite em Seattle, um justiceiro entrou de carro no meio da multidão e abriu fogo, atingindo uma pessoa. A violência da extrema-direita e/ou de justiceiros tem sido um problema recorrente?

Até agora, a identidade do atirador é muito confusa. Pelo que a maioria das pessoas consegue discernir, ele é uma pessoa não-branca normal do sul de Seattle. Em vez de focar nele, acho importante pensar na resposta ao ataque – o que é irrefutável.

Quando ele conduziu o seu carro a uma velocidade significativa em direção à multidão, as pessoas não hesitaram em tentar detê-lo. As pessoas colocaram-se no caminho, tentaram puxá-lo para fora do carro, puxaram as outras pessoas para a segurança e pararam fisicamente o carro com barricadas policiais reaproveitadas. Alguém foi baleado pelos seus esforços. Foi um momento horrível e incrível que foi um exemplo claro de como um processo libertador sofrerá ataques de todos os lados e terá que se defender de várias maneiras diferentes. As pessoas envolvidas descobriram claramente que a polícia não se importa com o nosso bem-estar e que podemos proteger-nos da violência reacionária sem a ajuda da polícia.

A ameaça de violência reacionária é muito real e temo que veremos esse bumerangue de volta em breve. Mas, neste momento, uma das maiores ameaças parece ser o medo em torno destas forças. À medida que falamos, centenas, se não mais, de pessoas estão enviando mensagens, tuitando e, geralmente, impulsionando afirmações sem fundamentos de reacionários a caminho de Hill a qualquer momento. Este aumento constante do sinal dos canais públicos de rádio da polícia dificultou profundamente a capacidade de organizar uma resposta real e consistente quando a direita opta por nos atacar.

IGD: Denúncias da revolta, desinformação liberal, teorias da conspiração – a esquerda mais ampla realmente mostrou-se carente de análise e compreensão gerais do momento atual. Estou curioso de como as pessoas estão lidando com o mar de desinformação e de atores de má fé.

Há tantas pessoas envolvidas neste movimento que é difícil dizer uma maneira exata pela qual estas ideias estão sendo abordadas. Também depende muito de qual perspectiva virá. Podemos ver que as pessoas que se posicionam para “liderar” este movimento são vigaristas desonestos, embora outros pensam da mesma maneira sobre as e os anarquistas. A nossa resposta geral tem sido aparecer, estar lá, ter literatura e informações disponíveis, manter a nossa posição noite após noite, confrontar as polícias da paz e ajudar os médicos e médicas a arrastar corpos para fora, tirar as pessoas da cadeia, ter algumas das conversas que precisam ser resolvidas, fazer alianças e formar os grupos que precisaremos para continuar isto para além de um conflito com a Delegacia Leste.

Fonte: https://itsgoingdown.org/get-in-the-zone/

Tradução > Ananás

agência de notícias anarquistas-ana

Um menino índio
Que tem os olhinhos verdes.
Flores de capim.

Itto Tako