[Espanha] Anarquismo Existencial

Entre muitas outras coisas, o anarquismo também é um antídoto para a uniformidade. Ele promove e defende as diferenças, desde que estas não impliquem em desigualdade, é claro.

Se o anarquismo valoriza a diversidade, não podemos nos surpreender que seja plural, diverso, polimórfico, e é muito mais apropriado falar de “anarquismos” do que do anarquismo. Do anarco-comunismo, ao individualismo, do insurrecionalismo, ao anarco-feminismo, passando pelo neo-anarquismo e pós-anarquismo, entre outros… tal é a exuberante diversidade do anarquismo.

Essa diversidade é às vezes vista como um flagelo e uma deficiência, e alguns setores buscam unificar o anarquismo. Mas, eu já disse que isso milita contra a uniformidade, então, pela minha parte, desejo que as tentativas unificadoras nunca, jamais, tenham sucesso.

Agora, essa diversidade torna praticamente impossível dar uma visão geral do anarquismo em poucos minutos. Portanto, vou falar aqui apenas de uma de suas dimensões, uma dimensão que me parece fundamental, e que, embora pese mais sobre algumas tendências do que sobre outras, acaba por caracterizá-las a todas.

É o componente existencial do anarquismo, seu componente experiencial, ou seja, por um lado, o anarquismo como revolta espontânea da vida contra a dominação e, por outro lado, como formação de sua própria existência contra a dominação.

A revolta, a rebeldia, geralmente está associada ao anarquismo. Emergindo das vísceras, situadas na superfície, essa revolta incontrolável contra a autoridade e contra a injustiça, levou ao ditado do anarquismo que ilumina magníficos rebeldes, mas revolucionários ingênuos. Lutadores que falam a partir de sua sensibilidade e não da racionalidade política.

Assim, o anarquismo se revelaria “um modo de ser”, uma experiência vital, um compromisso existencial e ético, e não uma doutrina cuidadosamente delineada, e isso explicaria porque o anarquismo é muito mais receptivo a apelos à revolta do que a projetos de revolução.

O simples fato de se poder dizer de uma pessoa que ela é “um anarquista sem saber”, o que não é raro, também indica que o anarquismo é uma forma de estar no mundo, de se comportar, de reagir, de sentir.

Em suma, uma opção existencial e um ethos singular, que pode se manifestar mesmo sem referência direta a um corpus teórico, uma tradição de luta, práticas militantes e uma identidade política assumida como tal.

Por outro lado, a insistência anarquista na estreita ligação entre opções políticas e escolhas de vida também esboça o anarquismo como um dispositivo para a fusão do político e do existencial.

Se os princípios teóricos do anarquismo coincidem tão intimamente com a forma como os anarquistas “conduzem sua própria existência”, é porque no plano teórico o anarquismo procede a uma crítica radical de dominação, enquanto no plano existencial, acontece que como a vida cotidiana está saturada de dispositivos de dominação, eles dão origem à expressão prática dessa crítica, sua manifestação na prática.

Além disso, quando o horizonte do antagonismo político excede o estritamente econômico e se estende a todas as áreas onde o domínio é exercido, então todos os aspectos da vida cotidiana tornam-se objeto desse antagonismo. E o que toma forma naquele momento é uma nova relação entre vida e política que deixa de ocupar espaços separados naquele exato momento.

Finalmente, acontece que o ethos libertário também constitui, em si mesmo, uma forma de luta.

No início do século passado, Gustav Landauer escreveu que: “o anarquismo não é uma coisa do futuro, mas do presente, não é uma questão de exigências, mas de vida”, sublinhando assim a importância da dimensão existencial. Há algum tempo atrás, para apontar sua fragilidade e suas contradições, pude escrever que o anarquismo “combina com o imperfeito”. Hoje, seguindo Landauer, mas sobretudo as novas gerações de anarquistas, gostaria de acrescentar que o anarquismo “se conjuga com o presente”.

Na verdade, esse componente existencial do anarquismo empurra as novas gerações anarquistas a criar as condições ideais para poder viver, “a partir de hoje”, e sem esperar por uma hipotética mudança revolucionária, tão próxima quanto possível dos valores que essa mudança deveria promover se alguma vez fosse bem-sucedida.

Entretanto, a flexão e a subjugação dos seres humanos não são os únicos efeitos dos dispositivos de dominação; eles também sempre empregam “mecanismos de subjetivação das pessoas”. Eles moldam sua imaginação, seus desejos e sua maneira de pensar para que respondam, livre e espontaneamente, como os poderosos esperam deles. Na medida em que o capitalismo também nos detém, pelas múltiplas satisfações que nos oferece, trata-se de modificar nossos desejos para que o capitalismo não seja mais um sistema capaz de satisfazê-los.

No entanto, só podemos mudar nossos desejos se mudarmos o modo de vida que os produz. Daí a importância de criar formas de luta que permitam o desenvolvimento de “práticas de dessubjetivação”.

Por isso há, nos meios que tenho chamado de “neo-anarquistas”, a vontade de se transformar, de “inventar-se fora das matrizes que as moldaram”, buscando no tecido relacional, nas práticas coletivas e nas lutas comuns, as ferramentas certas para realizar este trabalho sobre si mesmas.

A importância que “práticas de dessubjetivação” adquiriram dilui a famosa dicotomia que Murray Bookchin estabeleceu em meados dos anos 90 entre o anarquismo “social” e o anarquismo “estilo de vida”. Se o anarquismo cria um problema para o sistema, é em parte porque seu lado existencial oferece forte resistência, não só às suas intimidações repressivas, mas sobretudo às suas manobras de sedução e integração.

A adoção de um estilo de vida antagônico ao promovido pelo sistema instituído, e a recusa em assumir suas normas e valores, constituem uma forma de luta que mina radicalmente suas pretensões de exercer “a hegemonia ideológica e comportamental” de que necessita para seu próprio funcionamento.

Em suma, o componente existencial é tão importante no anarquismo que renunciar a esse componente é, em grande medida, renunciar ao próprio anarquismo.

Tomás Ibáñez

Maio de 2018

>> Uma versão em francês diferente e mais extensa do texto pode ser encontrada no portal “Grand Angle-libertaire”:

http://www.grand-angle-libertaire.net/anarchisme-existentiel/

>> Arte em destaque: Michelle Pereira

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

As folhas caindo
Na roça em frente ao portão
Divertem o gato.

Issa

 

One response to “[Espanha] Anarquismo Existencial”

  1. SubAnarka

    Ótima publicação