[EUA] A força moral da violência e os limites da reforma

Por Kristian Williams | 13/06/2020

Raça e resistência: após o homicídio de George Floyd, as autoridades agiram rápido ao indiciar os assassinos. Mas, apesar disso, protestos e revoltas eclodiram por toda parte, pois reformas não são o bastante.

O vídeo é perturbador, incriminador e indiscutível. Nele um policial branco, Derek Chauvin, se ajoelha sobre o pescoço de um homem afro-americano, George Floyd, enquanto ele está rendido e algemado de bruços no meio da rua. As imagens mostram Floyd reclamando que não podia respirar, implorando por sua vida, chamando por sua mãe. Os espectadores em volta protestam contra os policiais, argumentando com eles, e suplicando. E, principalmente, demonstra a absoluta indiferença do oficial pela vida humana, decência, moralidade, razão e lei.

Na internet e ao redor do mundo o vídeo se espalhou em grande velocidade. Logo surgiram as manifestações, muitas das quais converteram-se em revoltas. Em uma semana mais de uma centena de cidades já haviam sido palco de protestos. Viaturas, delegacias e tribunais foram queimados. Lojas foram saqueadas. Policiais, manifestantes, espectadores e jornalistas foram feridos, ao menos 22 morreram. Como sempre, a maioria dos mortos foram manifestantes feridos fatalmente pela polícia.

A primeira vista, tudo parece muito familiar, uma parte padrão do espetáculo americano, como alguma peça de propaganda de segunda da categoria da USO (United Service Organizations Inc). Esse vídeo imediatamente nos recorda o caso de Eric Garner, enforcado até a morte por um policial de Nova York enquanto dizia ofegante “Não consigo respirar”. Também nos lembra Oscar Grent, morto com um tiro pelas costas por um guarda de trânsito enquanto estava deitado de bruços e algemado. Isso nos lembra de Rodney King, cuja gravação do espancamento por policiais de Los Angeles foi incessantemente repetido na televisão, prometendo finalmente provar o que as pessoas negras sempre souberam a respeito da polícia.

Cada incidente desencadeia uma onda de agitação seguida por um período de empatia nacional e posteriormente pelas reformas, concessões, novas regras acerca da disciplina policial, e novos mecanismos de responsabilização.

Numa inspeção mais minuciosa, contudo, dessa vez algo está sendo diferente.

Justiça, independente das consequências

É a ordem dos eventos que parece estranha. Às oito horas da segunda (25) Floyd foi detido, ele morreu uma hora e meia depois. Naquele mesmo dia o vídeo foi postado online. Às três da madrugada do dia 26 – nem seis horas após o assassinato de Floyd – o FBI anunciou uma investigação sobre possível violação de direitos civis. Uma vigília em memória de Floyd começou por volta de meio dia. Às duas da tarde o chefe de polícia de Minneapolis anunciou que todos os quatro oficiais envolvidos seriam demitidos.

Por volta das seis e meia daquela noite, manifestantes começaram a atirar pedras contra a polícia, e policiais começaram a usar spray de pimenta e espingardas “não-letais” contra eles. Uma hora depois, janelas foram quebradas na Terceira Delegacia (onde antes trabalhavam Derek Chauvin e seus três cúmplices) e então a polícia disparou o gás lacrimogêneo.

No dia seguinte, 27 de maio, a polícia divulgou os nomes dos oficiais envolvidos, e o prefeito pediu acusações criminais contra eles. Naquela noite, manifestantes começaram a saquear lojas e os policiais atiraram balas de borracha. Em 28 de maio manifestantes atearam fogo na Terceira Delegacia e a Guarda Nacional de Minnesota foi convocada. Protestos espalharam-se para diversas outras cidades, incluindo Nova York, Denver, Phoenix e Louisville.

Na sexta-feira, 29 de maio, Chauvin foi preso, acusado de homicídio em terceiro grau e homicídio culposo em segundo grau. Naquele fim de semana, protestos emergiram em ao menos cem cidades por toda a nação, muitos escalando em saques, incêndios e batalhas contra a polícia.

Quando comparada com ocorrências similares, essa linha do tempo se mostra extremamente comprimida. Os protestos se iniciam quase que imediatamente, escalaram rápido e espalharam-se depressa. Mais surpreendente, entretanto, foi a reação oficial. As autoridades responderam com uma velocidade incomum, iniciando uma investigação federal, demitindo os envolvidos e apresentando acusações criminais em alguns poucos dias. Notavelmente, tais ações parecem ter sido tomadas em antecipação à indignação pública.

Similarmente, o roteiro usual têm a polícia e as lideranças civis isentando-se de qualquer julgamento até que sejam esclarecidos e pedindo ao público para ter paciência, mas, neste caso, o prefeito, o chefe de polícia e o promotor público, todos fizeram questão de dizer a coisa certa logo na primeira oportunidade – inclusive destacando o aspecto racista do assassinato. Esse sentimento foi ecoado pelos líderes da polícia em Nova York, Los Angeles, Boston, Houston e cidades menores espalhadas pelo país.

A Federação dos Policiais de Minneapolis manteve sua estratégia usual de não se desculpar e muito menos oferecer solidariedade – chamando George Floyd de “criminoso violento” – mas as lideranças de outras organizações, incluindo a Associação Nacional das Organizações Policiais, a Associação Internacional dos Chefes de Polícia, a Associação dos Delegados das Principais Cidades, e Fundação Nacional da Polícia, foram rápidas em condenar o assassinato ou louvar a demissão dos oficiais.

Até a Ordem Fraterna de Polícia pedia justiça “sejam quais forem as consequências”. Quase se pode ouvir uma tréplica: e por qualquer meio necessário.

Um momento de pura rebelião

Estes são os dividendos de décadas de organização e, mais importantes, de revoltas anteriores. Eventos anteriores ensinaram às autoridades que eles devem levar a sério esses acontecimentos de grande visibilidade e que, sinceramente ou não, devem ser vistos expressando simpatia para com as vítimas e indignação com as desigualdades sociais. Os incidentes prévios produziram um padrão de requisitos: identificar os policiais, demiti-los, processá-los, pedir por intervenção federal.

Essas medidas poderiam ser implementadas imediatamente – e foram, num claro esforço para se antecipar à controvérsia garantindo ao público que a justiça seria feita, que as coisas estavam sendo tratadas e que o sistema estava funcionando.

Notoriamente, de nada essas medidas serviram para amenizar a raiva da população. Escalada nas demonstrações de violência após os policiais serem demitidos, os protestos agigantados, nacionalmente, após a prisão de Chauvin. O que as autoridades inadvertidamente alcançaram com suas concessões foi empurrar os protestos para fora da estrutura discursiva de negociações e reformas.

Ao oferecer concessões antecipadamente, eles não só roubaram o movimento de sua demanda mais básica, também jogaram luz no fato de que apenas atender a essas demandas não seria o suficiente.

Demandas similares foram articuladas, defendidas nas lutas sociais, e até mesmo garantidas em ciclos anteriores de agitação – e mesmo assim, o racismo da nossa sociedade mal diminuiu enquanto os assassinatos feitos por policiais contra a população negra continuam. A única demanda recorrente ganhando força no presente momento é, sem dúvida, que os departamentos de polícia devam perder seu financiamento. Isso é, de fato, não uma demanda por uma reforma da polícia, mas sim por uma redução desta, não uma polícia melhor, mas sim uma polícia menor.

Esses protestos foram despidos da sua forma essencial, um momento de pura rebelião contra o intolerável estado das coisas. Isso deu à rebelião seu caráter distintivo, e talvez até tenha contribuído tanto para sua militância quanto para sua popularidade. Por enquanto demandas podem motivar e direcionar um movimento, mas elas também podem contê-lo. Observada sua essência radical – a recusa da injustiça, que também contém uma afirmação do valor de cada ser humano – a força motriz por trás dos protestos é prontamente compreensível e inegavelmente convincente.

Afirmando a humanidade, tornando-se ingovernável

O que esses manifestantes desejam é absurdamente simples. Isso é muito mais simples do que qualquer investigação, processo, debate político ou reformas burocráticas possa ser. O que eles querem é viver num mundo onde autoridades não podem simplesmente nos matar – qualquer um de nós, mas pessoas negras em particular. Além disso, os manifestantes sabem que esse desejo será entendido, como já foi resumido (e, de fato, endossado) por um dos seus adversários. Na sua declaração inicial sobre o assassinato de George Floyd, o prefeito de Minneapolis Jacob Frey admitiu, “ser negro na América não deveria ser uma sentença de morte.”

Muitas vezes é uma sentença de morte – não apenas por conta da polícia, mas também dos efeitos da pobreza, racismo estrutural e o resultado da falta de acesso às necessidades básicas da vida: ar e água limpos, comida nutritiva, moradia adequada, assistência médica adequada. Se, como diz o slogan, “vidas negras importam”, então elas não devem apenas importar na relativamente rara condição de revolta urbana generalizada, e não apenas nos eventos mais comuns de pessoas negras sendo mortas nas mãos da polícia. Elas precisam importar em cada nível da política, em cada instituição da nossa sociedade.

A polícia claramente é um símbolo do racismo institucional, assim como colaboradores e defensores de todo o sistema de supremacia branca. A morte de George Floyd ressoa de forma tão visceral, não meramente por conta da fria desumanidade da polícia e dos apelos angustiantes do homem que eles estavam assassinando, mas por conta do seu peculiar caráter iconográfico, o joelho literalmente sobre o pescoço proporciona uma metáfora imediatamente compreensível para as relações entre pessoas negras e o governo. Mudar essas relações vai exigir uma mudança na própria estrutura da nossa sociedade.

É provavelmente demais esperar um programa político completo emergir em meio às lutas nas ruas. Mas, não se pode dizer que não há uma estratégia evidente nas revoltas: a atual inquietação claramente mostra que a violência policial acarretará num custo para os mestres da sociedade. E cada ato de resistência implicitamente ameaça uma escalada a tal ponto que o status quo venha a se tornar insustentável.

O que perturba nossos governantes não é a violência das demonstrações. O Estado emprega violência numa escala bem maior todos os dias – em guerras, prisões, fronteiras, na preservação da desigualdade. O que os perturba é a força moral por trás da violência, aqueles dos níveis mais baixos da sociedade talvez possam finalmente afirmar sua humanidade, recusar ver isto negado, e então tornar a si mesmos ingovernáveis.

>> Kristian Williams é o autor de Our Enemies in Blue: Police and Power in America, American Methods: Torture and the Logic of Domination, Hurt: Notes on Torture in a Modern Democracy, e Fire the Cops! Ele vem escrevendo sobre policiamento e violência estatal para He has written about policing and state violence for Clamor, Counterpunch, New Politics, In These Times e Toward Freedom. Ele mora em Portland, Oregon.

Fonte: https://roarmag.org/essays/%E2%81%A0the-moral-force-of-violence-and-the-limits-of-reform/

Tradução > AnarcoSSA

agência de notícias anarquistas-ana

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Neide Rocha Portugal