Não estamos contra a civilização, a civilização está contra nós

Por Mirna Wabi-Sabi

civilizar
Definição

1: fazer com que se desenvolva a partir de um estado primitivo, especialmente: levar a um estágio de desenvolvimento cultural tecnicamente avançado e racionalmente ordenado.
2a: EDUCAR, REFINAR
b: SOCIALIZAR: adquirir os costumes e amenidades de uma comunidade civil (“relativa ao Estado ou aos seus cidadãos”).
Primeiro uso conhecido de civilizar: 1595.

Nossa humanidade foi civilizada até a morte. Desde que os europeus começaram a afirmar que descobriram as pessoas indígenas, a civilização é a morte. Morte do espírito e da Terra. A ideia de que existe um estágio mais avançado da existência humana não pôde escapar a violência fatal, porque ninguém quer preservar o que é retrógrado. Mas eles estavam errados sobre o que era regressivo. A civilização ocidental não é tão racional, afinal, é tão suscetível ao preconceito e à subjetividade quanto qualquer outra. É por isso que quando o termo “anticivismo” é usado como uma acusação, fico perplexa — como podemos não ser? Civilisé é um conceito criado logo após a “descoberta” das Américas, embora a única coisa que os europeus descobriram foi sua própria megalomania — que foi disfarçada no desejo de civilizar os povos colonizados. Como uma crítica da civilização pode se manifestar hoje em dia? Se não podemos voltar no tempo, e certamente não devemos debruçar sobre o mito europeu hipócrita do “nobre selvagem”, o que há de ser feito?

Um retorno à vida incivilizada não pode nos levar ao que éramos antes da invenção da civilização. Mesmo se quiséssemos, não conseguiríamos, já houve muita destruição irreversível. E certamente não poderá haver uma tentativa através de valores anarquistas. Como Wolfi Landstreicher coloca em seu texto A Critique, Not a Program: For a Non-Primitivist Anti-Civilization Critique (2007) — “Primeiramente, não há nada inerentemente primitivista em uma crítica da civilização”. O “retorno” é uma práxis revolucionária em direção a um futuro que desaprende os princípios destrutivos do capitalismo industrial. É um caminho informado pelo passado em sua busca por uma nova maneira de ser.

Os povos indígenas não eram civilizações da mesma forma que não eram anarquistas. Os conceitos de civilização e anarquismo foram criados por europeus para realizar ou resolver um problema europeu, respectivamente. Não havia Estado de qual ser cidadão ou para destruir. Havia outros problemas e outras palavras para eles, e o fato de não sabermos quais elas eram é um fracasso da sociedade ocidental e o resultado de sua expansão megalomaníaca.

Quando confrontados pela primeira vez com as pessoas nativas na floresta amazônica, os europeus rapidamente presumiram que haviam “descoberto” seres animalescos na selva, e não monumentos maravilhosos de povos milenares, feitos de florestas e litorais cuidadosamente desenvolvidos. Até hoje, esse legado erroneamente taxado de incivilizado é destruído em prol do desenvolvimento. Os sambaquis, por exemplo, que são construções indígenas de até 9 mil anos de idade no litoral, costumam ser aterrados e loteados.

A praia de Camboinhas foi cercada com arame farpado e a restinga e as dunas, onde existiam sítios arqueológicos e sambaquis, foram aplainadas a trator para facilitar o parcelamento e a demarcação dos lotes. (Cultura Niterói)

Este desenvolvimento nada mais é do que a destruição que ele atribui à sua oposição. Ser ‘anti-civilização’ é visto como ser porta voz da destruição de tudo o que as ‘nações desenvolvidas’ construíram e estão tentando construir. Mas, de uma perspectiva desocidentalizada, anti-civ significa resistência contra a destruição implacável da industrialização; significa rejeitar o conceito de “desenvolvimento” e “Nação” que há mais de um século se mostra colocar o lucro acima de tudo.

Um aspecto retrógrado da industrialização do qual raramente se fala é a diversidade das plantas comestíveis. Poluição, desmatamento, mudança climática etc. são citados com frequência, mas o fato de que nossa dieta é baseada na “padronização do consumo” é ignorado.

De acordo com a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO, 2004), no decorrer de milênios o ser humano baseou sua alimentação em mais de dez mil diferentes espécies vegetais. Atualmente, entretanto existem menos de cento e cinquenta espécies sendo cultivadas.
Arroz, trigo, milho e batata – suprem mais da metade de nossas necessidades energéticas.
(EMBRAPA)

A FAO revela que mais de 90% das safras desapareceram dos campos agrícolas, o que representa uma ameaça séria para a agro-biodiversidade. Isso significa que nossa educação e práticas alimentícias são fatores importantes na desestabilização dos ecossistemas do planeta. Aprendemos a desprezar as ervas daninhas e a valorizar as plantas comercializáveis com base em padrões capitalistas dos quais não temos consciência. O simples fato de que a planta é espontânea e não requer nenhum esforço para adquiri-la automaticamente as torna indesejadas. Esta é uma resposta civilizada, que define um gosto refinado — e que coloca um preço ou chama de lixo.

O que significa desaprender essa educação e essas práticas civilizadas? Como anarquista, eu diria que não deve haver uma diretriz ou conjunto de regras para definir esse processo — cada pessoa pode decidir por si mesma o que esse processo é para ela. Ele é baseado no pensamento crítico, não na resposta. Se não, apenas reproduziríamos a doutrinação que estamos tentando desaprender. Como cada um de nós foi civilizado? Como nos disseram para comer, nos vestir e nos comportar? Desde quando temos vergonha do trabalho com a terra e das unhas sujas?

Muitas vezes não sabemos como o que comemos é feito. É feito para nós por uma indústria e por pessoas trabalhadoras exploradas. E é feito para maximizar o lucro (não a nossa saúde ou bem-estar), mantendo-nos vivos apenas na medida em que nos mantemos consumidores funcionais. Uma pessoa consumidora funcional está longe de ser uma parte funcional do planeta. Trabalhamos para consumir e consumimos para trabalhar, e o planeta não está nem no nosso campo de visão. Entretanto, é justo dizer que as pessoas indígenas foram habitantes funcionais do planeta, por boa parte de 10 mil anos antes de sua “descoberta”.

Hoje, não está tarde demais para começar a colocar este planeta de volta em nossas vistas, mesmo que isso signifique olhar para algo desconfortável e impossível de resgatar. Há um caminho de volta das telas e mídias sociais, ao futuro do livro e da terra. A jornada do digital para o analógico não precisa ser um sacrifício, pode ser uma experiência gratificante, embora seja mais fácil falar do que fazer.

A Amiga da Planta¹, um projeto nascido da revista A Inimiga da Rainha², é uma iniciativa autônoma que explora caminhos e facilita o encontro entre o digital e o analógico, centrando a nossa relação com as plantas. Se trata de postagens do Instagram automaticamente alimentando um site que formata um livro virtual imprimível. As postagens dão conselhos com base em relatos pessoais de como voltar a olhar e tocar a terra. Qualquer pessoa pode participar marcando a página em suas postagens sobre seu relacionamento com as plantas.

Num ambiente metropolitano, os esforços de reflorestamento são fracos em comparação com a força da expansão urbana. As ervas daninhas sobreviventes e árvores ocasionais são frequentemente vistas como um incômodo, especialmente quando atraem animais e geram muitos frutos. Há uma necessidade de iniciativas maiores e mais fortes que busquem mudar nossa abordagem às plantas em vez de mudar as plantas. Iniciativas que promovam o cuidado, o conhecimento, o crescimento e o respeito em qualquer circunstância.

Nem todas as “ervas daninhas” são comestíveis, mas todas têm seu valor. Grande parte da prática moderna de comer ‘Plantas Alimentícias Não Convencionais’ (PANCs) vem do desejo de preservar a biodiversidade, de lutar contra o marketing agressivo de alimentos industrializados que levam a uma padronização da produção e do consumo de alimentos — e também do desejo de preservar hábitos alimentares tradicionais que estão se perdendo.

Ao longo do último século, o abandono do consumo de plantas não convencionais deve-se em grande parte ao desejo de elevar os padrões de vida. Em um país colonizado como o Brasil — incrivelmente rico em biodiversidade — esses padrões foram impostos pela civilização em detrimento da terra e da população. Os esforços para resgatar essas práticas alimentares servem para preservar espécies de plantas, promover a autonomia agrícola, melhorar a saúde, minar as destrutivas indústrias capitalistas, e promover a alfabetização ecológica.

Temos plena consciência de que não será possível restabelecer as práticas indígenas exatamente como elas eram mais de meio milênio atrás. Porém, nada nos impede de acessar conhecimentos de um ponto de vista desocidentalizado, visando acabar com o conceito de “civilização” ao invés de tentar nos inserir nele. A tela é nada mais do que um veículo de informação para o nosso reencontro com a terra — a fonte debaixo de nossos pés.

Vamos encontrar o caminho de volta para o futuro do livro e da Terra.

[1] https://www.instagram.com/aamigadaplanta/

[2] https://inimiga.noblogs.org/

agência de notícias anarquistas-ana

um gato no telhado
para os pardais novos
que alvoroço!

Rogério Martins