Por Laura Vicente | 13/09/2020
A notícia da morte de David Graeber (2 de setembro de 2020), não a escondo, tem me impactado, e há muitas pessoas que têm esse sentimento emocionado.
Me atraía nele a desmistificação que ele realizou do anarquismo entendido como algo que implicava coerência no modo de ser, viver e agir, colocando-o sobre o altar da perfeição. Há muito tempo que penso no anarquismo à escala humana e prefiro ser coerente do que ser coerente na linha de Diana Torres [1] quando ela diz:
“Serei coerente, o que não é outra coisa senão assumir a responsabilidade pelas consequências de minhas ações e minhas palavras e pelas belas contradições que as compõem”.
Ele estava desmantelando certezas e semeando dúvidas e incertezas ao falar do que ele chamou de “anarquismo com letras minúsculas” [2] referindo-se às pessoas que, fazendo anarquismo ao invés de serem anarquistas, estavam dispostas a colaborar em amplas coalizões, desde que operassem sobre princípios horizontais.
Ele entendeu o anarquismo como uma ampla sensibilidade política, como um “movimento político que aspira a gerar uma sociedade genuinamente livre”, e define uma “sociedade livre” como aquela em que os seres humanos só estabelecem relações uns com os outros que não dependem da constante ameaça de violência para colocá-los em prática”. Ele acrescentou que os anarquistas “concebem um mundo baseado na igualdade e na solidariedade, onde os seres humanos são livres para se associar uns com os outros e buscar uma infinita variedade de visões, projetos e conceitos do que eles consideram valioso na vida”.
Desde a antropologia, Graeber observou que os princípios básicos do anarquismo – associação voluntária, auto-organização e apoio mútuo – se referiam a formas de comportamento humano que fizeram parte da humanidade desde seu início. Esta era uma ideia tremendamente atraente e estimulante (que Kropotkin já havia formulado em Apoio Mútuo), uma vez que ele observou que havia pessoas que haviam defendido estes argumentos ao longo da história humana. Esta ideia nos sugere que estes princípios anarquistas são mais uma atitude do que um corpo teórico.
O anarquismo, refletiu Graeber, tendeu a ser um discurso ético sobre a prática revolucionária, em vez de um discurso teórico ou analítico sobre estratégia revolucionária como no caso do marxismo. Insistiu nas formas de prática e, portanto, que os meios devem estar de acordo com os fins; a liberdade não pode ser gerada por meios autoritários, deve-se antecipar a sociedade que se deseja. É por isso que a maioria dos grupos anarquistas opera por um processo de consenso (que envolve a aceitação de uma grande diversidade de perspectivas teóricas) em oposição a uma votação por braço erguido, que é divisória e sectária. Ele explicou esta abordagem em detalhes no Somos os 99% enraizado em sua experiência como ativista no movimento Occupy Wall Street iniciado em 2012. Este ativismo já havia levado à sua demissão do Departamento de Antropologia da prestigiosa Universidade de Yale em 2005.
Graeber colocou a palavra-chave da democracia no processo de tomada de decisão. Qualquer bom processo de consenso se baseia no fato de que ninguém deve tentar convencer os outros a se converterem a seus pontos de vista, mas sim que o grupo deve chegar a um acordo comum sobre as melhores medidas a serem adotadas. Em vez de votar propostas, elas são discutidas ou reformuladas, até que se chegue a uma abordagem que todos possam adotar. No final, há duas formas possíveis de objeção: ficar à margem ou bloquear a proposta.
Em seus Fragmentos de Antropologia Anarquista [4], ele fez uma pergunta relacionada à antropologia:
“(…) que tipo de teoria social pode realmente interessar àqueles de nós que estão tentando criar um mundo no qual as pessoas sejam livres para administrar seus próprios assuntos?”
São estes tipos de perguntas simples, mas relevantes em suas respostas, que me levaram a apreciar seus livros. Esse é o legado que David Graeber nos deixa para seguirmos um caminho de abertura de espírito e renovação do anarquismo.
Notas:
[1] Diana J. Torres [1] (2017): Vomitorium. Cidade do México, p. 26.
2] David Graeber (2014): Somos 99%. Uma história, uma crise, um movimento. Madrid, Capitão Swing, p. 100.
3] David Graeber, Somos 99%, p. 189.
4] David Graeber (2019): Fragmentos da Antropologia Anarquista. Barcelona, Virus, p. 21.
Fonte: http://pensarenelmargen.blogspot.com/2020/09/david-graeber-hacer-anarquismo.html
Tradução > Liberto
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!