[Porto Alegre-RS] Não foi um ato. Foi uma ação de hostilidade contra o racismo.

Quando as águas pareciam estar na maior calmaria, quase indiferentes com a sutil mas aguda dominação, um dos tantos assassinatos que as forças armadas praticam contra a população negra, aconteceu na véspera do dia da consciência negra, o dia de lembrança de um grande guerreiro: Zumbi dos Palmares.

João Beto que já tinha marcado seu passo pela vida no seu bairro e com os seus marcou o desborde da raiva com sua triste morte. Certamente, nada iremos a dizer em defesa do templo da mercadoria que é a empresa internacional de Supermercados Carrefour.

E também não iremos analisar o papel das forças armadas ou sua continuidade como capitães do mato no Bra$il do presente. Não queremos ser ativistas, nem comentaristas da revolta. Estas palavras saíram entre as pedras e o fogo que teve, sim, e muito, em Porto Alegre.

Ao longo do dia várias pessoas estiveram na frente do supermercado iniciando o protesto. Mas foi no entardecer que a raiva aqueceu e se conseguiu ingressar no Carrefour momentaneamente, pixa-lo, e marcar sua fachada com a frase PM ASSASSINA em letras gigantes, obra de um artista do rolo.

Nem sempre uma retirada significa uma derrota. E assim, ainda tendo saído do supermercado pelo embate policial, a batalha continuava. Vários focos de incêndio rodeavam o supermercado, e pela porta arrombada se atacava desde uma barricada aos policiais que custodiavam o ingresso ao mercado. Uns linha de frente estavam atrás dessa barricada tentando chegar nos policiais com pedras e rojões.

Alguns quebraram o calçamento propiciando mais municiones, outros lançaram rojões e foguetes, alguns devolviam o gás lacrimogêneo para dentro do supermercado, se avançava e retrocedia, iam uns por um lado e outros pelo outro. Os policiais tentavam responder com balas de borracha e atirando gases nos que levavam as munições e nos que alimentavam as fogueiras.

Até que, em um desses ataques, a força policial saiu do mercado procurando tomar o controle da rua. A revolta pareceu se dividir em vários grupos, o que significou a ampliação do conflito. Uma viatura policial avistada na lateral do estacionamento do supermercado foi imediatamente depredada, pedras voaram sobre ela a cerca foi parcialmente derrubada logo um atrevido invadiu e tentou botar fogo nela. Vários ajudavam, passando algo que servisse para alimentar o fogo inicial. Faltou combustível (todos fomos com poucas munições e muito ódio). Chegou a polícia para defender seu carro, e uma nova correria.

Um prédio em obra foi invadido para tirar dele tapumes, pallets, portas, pedras, garrafas… que alimentaram duas barricadas, uma de fogo na frente e outra de proteção para os linha de frente. A polícia se decidiu a avançar e veio com uma forte arremetida de gás. Nova correria.

No caminho, outro atrevido aguçava os ânimos com uma motosserra que foi expropriada de um caminhão de bombeiros. Vários aplaudiam, outros gritavam. Chegou desde o outro extremo da rua, uma viatura ameaçante, e uma pedrada caiu nela, bastou isso, mais outra pedra voou contra ela e mais outra… o policial que dirigia fugiu no carro inegavelmente apavorado.

Novo festejo. Nem sempre as viaturas são recebidas assim. E não foi a única. Mais duas viaturas desceram a mesma rua sendo recebidas com as pedradas justas da indignação pela morte de mais uma pessoa na defesa da mercadoria. Todas fugiram, não desceu nenhum policial e nem duvidaram em sair a toda velocidade. Os reforços terminaram correndo em debandada com as sirenes quase gritando socorro.

Lojas da burguesia foram atacadas na caminhada dos vingadores. Uma delas que expõe colchões de um lado da vidraça enquanto do outro dormem moradores de rua, se desfez em pedaços de pesados vidros, depois de várias pedradas. Duas cadeiras e um banquinho estilo colonizador mais travesseiros saíram da vitrine para a barricada. Nova correria e gás, dispersão momentânea, contêineres, portas, ferros, pedras, tudo ia sendo jogado nas ruas para evitar o avanço da polícia enquanto íamos nos dispersando. O gás invadia prédios e moradias de um setor nobre do bairro que provavelmente nunca sentiu o cheiro da insubmissão nem aquele da repressão.

Foi pouco, foi o mínimo, mas não foi mais uma morte pela força policial (que privada ou pública, militar ou civil fazem um trabalho similar) que passou indiferente, nem foi um ato apaziguado que serve de palanque político para os militantes. Foi uma ação de hostilidade contra o racismo que faz tempo era urgente nestas terras.

O 20 de novembro de 2020 foi marcado com sangue no templo da mercadoria que ironicamente anunciava  a chegada da Black Friday. Foi sim uma sexta-feira negra, uma sexta-feira de consciência, de ação, de sensibilidade pela vida dos guerreiros e guerreiras que dia a dia sentem no corpo o peso de sair do padrão imposto de bom cidadão.

O silêncio da imprensa, que corriqueiramente chora a defesa da propriedade e da mercadoria, prefere abafar os atos da vingança, pra que não contagie e vire costume, queremos salientar com alegria o que aconteceu, o que vimos, o que conseguimos fazer.

Alguns que, com amor e ódio, fomos na rua para agredir a máquina que nos esmaga.

agência de notícias anarquistas-ana

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Millôr Fernandes