A fome em crescimento: o negócio da fome.

A Covid-19 escancarou a fome no Brasil. Com o rebaixamento de renda de grande parte da população em decorrência do desemprego, somado à inflação dos alimentos que superou os 15% dos 12 meses iniciais da chamada pandemia, o triplo da inflação geral… o aumento exponencial da fome no país se acentuou.

A atribulação da fome retornou a pautar de modo considerável os discursos da mídia, dos partidos políticos e da sociedade civil organizada clamando por medidas paliativas de Estado. De acordo com o relatório “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, publicado em 13 de maio deste ano, houve uma redução geral da disponibilidade de alimentos nos domicílios classificados como “em situação de insegurança alimentar”, incluindo alimentos considerados não saudáveis como os ultraprocessados mais baratos. Estima-se que 58 milhões de pessoas adultas, idosas, jovens e crianças enfrentarão fome diária e constante ao longo de 2021.

Outro levantamento foi realizado no mesmo período pelo Grupo de Pesquisa “Alimento para Justiça” da Universidade Livre de Berlim, em parceria com UFMG e a UnB, com financiamento do governo alemão. O resultado indicou que o consumo de alimentos considerados saudáveis diminuiu em 85% nos domicílios mais pobres durante a chamada pandemia. A maior redução foi no consumo de carnes (44%), seguida de frutas (40,8%), queijos (40,4%), e hortaliças e legumes (36,8%). Ainda de acordo com a mesma pesquisa, os ovos tornaram-se a principal proteína nas refeições, mesmo com o maior aumento entre os alimentos da categoria, em quase 19%.

Piores índices foram contidos pelo auxílio emergencial, criado em abril do ano passado, uma vez que 63% dos entrevistados durante a pesquisa alegaram que usaram o dinheiro para a compra de alimentos. Quando o levantamento foi realizado, o valor do auxílio já havia sido reduzido pela metade. Dos 600 reais iniciais, o valor caiu para 300 reais. O benefício foi encerrado em dezembro do ano passado, voltando a ser pago em abril deste ano, após queda da popularidade do governo federal de acordo com os institutos de pesquisas, em um valor abaixo do inicial. São quatro parcelas de 150 reais (para famílias de uma só pessoa), 250 reais (para famílias de duas ou mais pessoas) e 375 reais (para mães chefes de família monoparental).

Enquanto isso, Melinda Gates e o presidente do Banco Mundial alegaram que, em um futuro pós-pandêmico, as mulheres devem ser colocadas em primeiro lugar. Além de se confirmarem como ótimas administradoras de casas e empreendedoras, conciliaram as misérias de auxílios pagos por governos e, muitas delas, começaram a empreender para conseguirem se manter e complementar a renda. Soma-se a isso, segundo o presidente do Banco Mundial e a esposa do dono da Microsoft, cujo patrimônio é de US$126,3 bilhões, que elas seriam melhores agricultoras que os homens e isso poderia levar a um crescimento de 4% do agronegócio. Ou seja, mulheres empoderadas é sinônimo de mercado, capitalismo sustentável e empreendedorismos.

solidariedade Ltda.

A despeito da fome que vem aumentando, o setor supermercadista vai muito bem, obrigado. Segue lucrando cada vez mais devido às vendas que dispararam no ano de 2020. De um lado, a população pobre e os que se encontram desempregados correm para os atacarejos, que concentram mercadorias e operam com custos mais baixos, oferecendo preços menores. De outro lado, as vendas pelos meios digitais dispararam, atendendo aos setores da classe média e alta, que seguem se alimentando em casa com o uso de aplicativos delivery.

Os dois grupos empresariais que concentram a maior fatia do varejo de alimentos no país não disfarçam os ânimos em relação aos resultados recordes de lucro. O diretor executivo da rede Atacadão, ao comentar os resultados de 2020, declarou que conseguiram “surfar nessa oportunidade”, obtendo resultados acima das expectativas. O Atacadão no ano de 2020 lucrou R$ 47 bilhões em vendas, 23% a mais do que no ano anterior. A rede pertence ao grupo Carrefour, cujo supermercado homônimo é focado no varejo e onde em uma de suas lojas foi executado um homem preto no ano de 2020. Os lucros das lojas do Carrefour em 2020 foram de R$ 2,8 bilhões (líquido), com um aumento de 20% nas vendas, batendo R$ 74,4 bilhões.

O concorrente, a rede Assaí, que pertence ao grupo Pão de Açúcar, somou R$ 39,4 bilhões, resultado 30% superior ao de 2019. Todos esses dados são divulgados oficialmente pelas empresas.

Fome, desemprego e crise são termos presentes no vocabulário empolado dos executivos do setor supermercadista enquanto possibilidades de investimentos. O negócio dos grandes varejistas de alimentos é estruturado de forma a maximizar ganhos e reduzir perdas. Isso é capitalismo e a filantropia sempre foi um grande negócio.

Essas empresas lucram mesmo quando resolvem fazer doações. Prova disso, é a campanha lançada pelas associações paulista e brasileira de supermercados: Apas e Abras. A iniciativa estimula empresas e pessoas a fazerem doações que serão revertidas em cartões individuais no valor de R$100,00 para serem utilizados nos próprios supermercados. O governador do Estado de São Paulo, ao comentar esta iniciativa, declarou que 100 reais bastam para alimentar uma família de 5 pessoas por 30 dias. A declaração canalha vem da mesma pessoa que no ano de 2017 propôs alimentar famílias pobres com uma “ração humana” feita de restos de alimentos.

Os primeiros 300 cartões da iniciativa foram doados pela própria Apas, um valor abaixo do mínimo estabelecido para as empresas, que devem fazer doações a partir de 5 mil reais. A campanha exalta a liberdade do consumidor poder escolher o que for comprar, além de poder usar o benefício quantas vezes quiser. A Apas também anunciou, em parceria com a prefeitura de São Paulo, a instalação de 102 pontos de coleta para arrecadar alimentos não perecíveis comprados pelos clientes nos próprios supermercados. Fazer caridade por meio de terceiros é o negócio da vez, que garante faturamento e pontos positivos na imagem de seus associados.

fome, periferia e elites secundárias.

Os efeitos da segunda onda da chamada pandemia, levaram duas das maiores ONGs focadas em atuações nas favelas do país a encabeçarem um movimento de combate à fome nas periferias. A CUFA (Central Única das Favelas) e Gerando Falcões, em parceria com a Frente Nacional Antirracista, lançaram no dia 5 de abri de 2021 o movimento Panela Cheia. Com o slogan “Fome mata. Panela cheia salva”, a campanha tem como objetivo arrecadar 2 milhões de cestas básicas para distribuição em todo o país. A iniciativa ainda conta com apoio do movimento União SP e da Unesco.

A união das entidades também pretende obter maior participação de empresários em doações de cestas básicas. Declaram que demandam medidas prementes e de efeito prático por meio de uma coalização política, social e empresarial para vencer a Covid-19.

Também demandam uma campanha oficial contra o que chamam de desinformação nas favelas, com medidas que explicitem a importância da vacinação para a preservação da vida biológica da população periférica. Citam a pesquisa Data Favela, em parceria com o Instituto Locomotiva, pela qual 53% dos moradores das periferias temem que a vacina não faça efeito, enquanto 31% têm medo de se infectar com o imunizante e 22% creem que a vacina pode alterar o DNA ou instalar um chip no organismo.

As lideranças dessas entidades declararam que essas aspirações não esgotam a pauta que reivindicam. Argumentam que o atendimento a essas demandas é suficiente apenas para “nos mantermos com o nariz acima da linha da água”. Esta é a tarefa das entidades filantrópicas!

programa de erradicação da fome no Brasil

Em 2014, o Brasil saiu oficialmente do Mapa da Fome, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e cumpriu um dos Objetivos do Milênio (ODM): reduzir a fome e a miséria à metade em relação ao nível de 1990, até o ano de 2015.

A conquista foi celebrada e atribuída ao sucesso do Programa Fome Zero e sua derivação no Bolsa Família, que é a unificação de uma série de programas instituídos durante os governos Lula e seu predecessor, FHC.

Em 2001, o Instituto Cidadania, com a participação de Lula, elaborou o Projeto Fome Zero, com o objetivo de produzir um modelo que pudesse ser aplicado em qualquer governo, independente do partido. Com a eleição de Lula, em 2005, o Projeto se tornou uma estratégia, para posteriormente se constituir como plano nacional.

O programa, apresentado como uma proposta alternativa, respondia a diversas diretrizes estabelecidas pela ONU. Não demorou para que fosse reconhecido internacionalmente, como um modelo de sucesso para erradicação da pobreza extrema, reverberando, inclusive, nos novos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).

fome, pandemia e gestão comunitária

No final de 2020, a Organização Internacional para Migrações (OIM) e o Programa Mundial de Alimento (PMA) — ambos incluídos no sistema ONU — publicaram um relatório prevendo que 33 milhões de pessoas pelo planeta passariam fome em função da chamada pandemia em curso.

Segundo o relatório, na região identificada como “América Latina e Caribe”, o número de pessoas em situação de “insegurança alimentar grave” poderia chegar a 16 milhões (excluindo a Venezuela) até o final de 2020.

No Brasil, no início de 2021, uma pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN) identificou, no final de 2020, 19 milhões de brasileiros em situação de fome, ou “insegurança alimentar grave”.

Entretanto, a pesquisa brasileira atesta que o crescimento da fome no Brasil se acentuava desde antes da chamada pandemia. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede PENSSAN, mostra que, enquanto a chamada insegurança alimentar, entre os anos de 2004 e 2013, especialmente em sua forma grave, diminuiu no país entre 2013 e 2018, houve um retrocesso, intensificado entre 2018 e 2020, relacionado, durante a pandemia, à redução no valor do auxílio emergencial.

O crescente desemprego e a óbvia constatação da situação de fome fizeram com que proliferassem as iniciativas privadas e das organizações não governamentais para a redistribuição de alimentos. Entre as organizações envolvidas na redistribuição de alimentos destacaram-se na mídia, por todo o Brasil, as iniciativas da Central Única das Favelas (CUFA).

Em parceira com as organizações Gerando Falcões, Frente Nacional Antirracista, com o apoio do União SP e cooperação da Unesco, a CUFA lançou recentemente o “Movimento Panela Cheia” com o objetivo de “arrecadar recursos para a compra de cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade (…) para fazer chegar alimentos (…) nas mesas de famílias em comunidades de todo país.

A articulação é recente, mas a atividade de redistribuição de alimentos nas favelas não. A CUFA já possui experiência na localização e administração de doações variadas, também ligadas a outros de seus projetos.

No início de 2021, a CUFA anunciou o uso da tecnologia de reconhecimento facial para cadastramento de quem receberia as doações. A tecnologia foi adotada em parceria com a empresa especializada Unico, uma ID Tech fundada por desenvolvedores treinados no Vale do Silício em empresas como Google, Yahoo, IBM, Facebook etc. e nas estatais da China. Atualmente, a empresa presta seus serviços para dezenas de negócios, como redes de supermercados, bancos, lojas de cosméticos etc.

O reconhecimento na CUFA deveria servir para a prestação de contas aos doadores, garantindo que as pessoas certas receberiam o alimento e que não houvesse fraude por nenhuma das partes. Em reportagem que celebrava a iniciativa, definia-se: “a ideia é ter o controle total: quem recebeu, como recebeu, qual o dia e hora. Esses dados, com o CPF da pessoa, são cruzados com o cadastro nacional. É para saber se aquela pessoa recebe algum dinheiro do Bolsa Família e também monitorar as doações”.

Logo após o anúncio, algumas pessoas se manifestaram nas redes sociais alertando para a polêmica em relação ao armazenamento de dados pessoais e ao uso destes dados. A CUFA prontamente interrompeu o uso da tecnologia, prometendo apagar todo o dado armazenado. Apesar do anúncio no início de 2021, o reconhecimento facial já estava sendo usado desde 2020, no programa “Mães da favela”, cujo objetivo era ajudar as famílias lideradas por mulheres e que sofreram com o impacto da pandemia.

O processo de atuação da CUFA passa pelo reconhecimento e articulação com as chamadas lideranças comunitárias, como uma forma de descentralização do “controle democrático”.

A participação da “comunidade” é um dos elementos que aproximava o projeto inicial do Fome Zero, com as diretrizes estabelecidas pela ONU. Não à toa, a CUFA é reconhecida como uma iniciativa de grande alcance nacional e mesmo internacional, a partir da parceria com o governo, durante o primeiro mandato do então presidente Lula. A CUFA passou a oportunizar cursos de empreendedorismo, prêmios, arregimentação de jovens pelo esporte, gestão de situações emergenciais, etc.

A CUFA se firmou histórica e politicamente por suas conexões indissociáveis com a polícia e, também, por sua participação ativa na implantação do programa da polícia comunitária e das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), dos vínculos indissociáveis da CUFA com o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) e territórios de paz, etc. Sem falar na pesquisa que a própria CUFA fez em 2008 com os moradores de favelas onde quase metade aprovava a entrada do caveirão nas favelas e os demais pleiteavam uma polícia cidadã. Ou seja, tudo polícia.

gestão da miséria

O plano da CUFA, o programa Fome Zero, auxílios emergenciais, etc., etc. são claros em suas metas: manter os pobres em seu lugar, contentes e obedientes.

Entre os governos as estratégias variam de bolsas migalhas, auxílios esmolas ou similares. Estes restos que possibilitam a manutenção da sobrevida de grande parte da população, são somente uma ínfima parte do dinheiro sequestrado constantemente pelo Estado.

A produção de alimentos não cessou durante a pandemia, assim como sempre se produziu mais do que o suficiente para alimentar a população global.

Os programas assistenciais, sejam eles de governo, iniciativas privadas ou parcerias público-privadas, alimentam o controle sobre a população a partir de registros, digitalização de dados, monitoramento comunitário. Alimentam a gestão dos pobres e famélicos por seus pares e por eles mesmos. E os pobres e miseráveis, em grandes contingentes, agradecem e se submetem consensualmente na busca pelas migalhas que continuam miseravelmente presentes para comprovar suas provações e pecados.

O capitalismo alimenta-se da pobreza e enaltece a pobreza obediente.

A pobreza extrema é sinal de perigo, pois alguém com fome pode perder o controle e o equilíbrio, quando a migalha vira moeda em troca da obediência.

Os anarquistas aprenderam há muito tempo que a criação da escassez é própria do Estado e do capitalismo.

Os povos indígenas no Brasil, quando não dependem da intervenção do Estado, desconhecem o que é a subsistência, pois a vida coletiva fora das métricas econômicas é de abundância.

A fome como sinônimo de insegurança alimentar coloca a vida sob a ótica do cálculo entre o risco e a segurança. Mas, comer não é só se alimentar. Faz parte de uma relação, uma sociabilidade. Dentro do cálculo neoliberal só cabe a ração administrada e abençoada para conter a revolta.

Fonte: Hypomnemata 245 | Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP N° 245, maio de 2021.

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Boneca se aquece
com o meu chapéu de lã.
Eu visto saudades.

Teruko Oda