Como uma novela proibida de Lev Tolstói deu início à revolução sexual na Rússia

Por Aleksandra Gúzeva | 08/05/2021

Pai de 13 filhos, Tolstói não foi nenhum santo antes do casamento (o que, aliás, lembra de outro santo: Agostinho). Mas, depois de idoso, o escritor decidiu que o amor carnal era prejudicial e escreveu uma obra de arrepiar sobre seus novos pensamentos: A Sonata Kreutzer.

No final da vida o escritor Lev Tolstói passou por uma transformação espiritual e reviu seus conceitos em relação ao casamento e às relações entre homens e mulheres em geral. Em sua escandalosa novela “A Sonata Kreutzer”, de 1890, que reflete suas ideias no período, ele propunha que se abandonasse completamente o amor carnal. O livro teve um enorme impacto na juventude do final do século 19.

Há quem considere “A Sonata Kreutzer” a melhor obra do conde escritor. Outros, na contramão, rejeitaram as opiniões de Tolstói, e Theodore Roosevelt chegou a dizer que ele era um homem com uma “moral sexual pervertida”.

“Crime de honra”

O protagonista, Vassíli Pozdnichev, conta a um companheiro de viagem no trem que matou a mulher quando, ao voltar de viagem uma noite, encontrou-a tocando música com outro homem. O veredito no tribunal foi que o assassinato foi provocado por adultério e, por isso, seguindo a moral absurda da época, ele foi absolvido.

Depois daquele episódio terrível, Pozdnichev passa por um “renascimento espiritual” e diz ter percebido o “estado perverso da sociedade”: “Não foi naquele dia que a matei, mas muito antes. Assim como eles matam agora, todos, todos…”

Pozdnichev é uma espécie de Bentinho: o livro nunca deixa claro se a mulher foi infiel a ele ou não. Tolstói está muito mais preocupado com sentimentos que com ações. Na epígrafe de “A Sonata Kreutzer”, o autor cita o Evangelho: “Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração.”

“Tolstói acreditava que o infortúnio da família de seus personagens provinha da promiscuidade sexual deles antes do casamento, a qual ensinou-os a esperar da vida familiar a satisfação dos desejos carnais acima de tudo. A decepção leva Pozdnichev a odiar a mulher e ter um ciúme obsessivo”, segundo escreve Andrei Zorin no livro “A vida de Lev Tolstoi” (ainda sem tradução para o português).

Círculo vicioso

Discutindo a educação sexual de meninos e meninas, Pozdnichev nota com amargura o quanto a sociedade laica é “moralmente corrupta”. Entre as pessoas de seu círculo social, é considerado normal e até saudável que os homens “se entreguem à devassidão” antes do casamento.

Pozdnichev compartilha abertamente sua primeira experiência sexual: junto com o irmão, ele foi a um bordel com um grupo de amigos. “Lembro-me de que imediatamente fui tomado por uma tristeza tão profunda que tive vontade de chorar, de chorar pela perda para sempre da minha inocência, das minhas relações com a mulher. Sim, as minhas relações com a mulher se perderam para sempre.” É interessante notar que este episódio é autobiográfico: Tolstói teve uma experiência muito semelhante e a descreveu em seus diários.

Ao mesmo tempo, as mulheres da época eram privadas do “direito” de ter relações sexuais antes do casamento. Mas, na opinião de Pozdnichev, as moças “casáveis” não são melhores que prostitutas: seus pais buscam noivos para elas e fazem de tudo para garantir um casamento vantajoso, mas todos os hobbies das tais moças, seja tricotar ou tocar música, visam apenas a impressionar um futuro marido.

Em relação às roupas femininas, Pozdnichev faz todo um discurso de que milhões de pessoas trabalhavam em fábricas apenas para satisfazer os caprichos das mulheres e criar vestidos que pudessem atrair momentaneamente um cavalheiro. Pozdnichev diz que é uma coisa horrível que as mulheres conquistem os homens com lascívia. “Uma vez que ela domine esse recurso, ela abusa dele e adquire uma terrível supremacia sobre as pessoas.”

Tolstói desiludido com o casamento

Devido a seus pensamentos ousados sobre o casamento e à ousadia de minar os valores familiares, “A Sonata Kreutzer” foi banida pelos censores imediatamente após a publicação. Além disso, nos EUA, a tiragem de jornais que publicaram traduções da novela também foi proibida.

Mas foram justamente as proibições que aumentaram incrivelmente a popularidade do livro. Na época, Tolstói já era uma celebridade internacional, mas com “A Sonata Kreutzer” ele capturou a atenção de toda a sociedade educada, especialmente a dos jovens. A novela passava de mão em mão em segredo, em cópias manuscritas (em uma espécie de precursor do samizdat soviético).

Pozdnichev descreve como se apaixonou pela mulher: mas, depois de um tempo, ele via aquilo apenas como algum passeio de barco agradável ou um vestido atraente da esposa. Depois do casamento, segue-se uma lua-de-mel “vil”, que nada mais é que um “vício legalizado”. E acontece que o marido não tem ideia do tipo de pessoa que a esposa é e fica surpreso ao ver raiva ou outras novas características nela. Eles brigam e discutem, e a única coisa que pode reconciliá-los é o nascimento de filhos.

É justamente na gravidez e nos cuidados dos filhos que Pozdnichev (assim como Tolstói) vê a predestinação da mulher. É por isso que ele fica indignado ao saber que, após o nascimento do quinto filho, os médicos aconselham a mulher a não ter mais filhos – e vê isso como uma violação da lei da natureza.

Além disso, de acordo com Tolstói, a mulher que não planeja engravidar, mas continua a fazer sexo com seu marido e até usa anticoncepcionais, é totalmente imoral. Essa era uma questão que o escritor levava muito a sério: sua mulher também foi aconselhada a não ter mais filhos, mas ele se opôs a que ela tomasse “medidas” para evitar ficar grávida.

Pozdnichev considerava que o melhor caminho a seguir era a abstinência sexual. Seu companheiro de viagem, ouvinte acidental de sua história de vida, exclama: Mas e a raça humana? A isso, o protagonista responde que concorda com os budistas que a vida humana não tem propósito e que vai acabar de qualquer maneira, por isso não haverá mal se acabar porque todos viverão seguindo a “boa moral”.

“Tolstói obviamente rejeitava um significado positivo do casamento, dando um veredito sobre o casamento: a união de um homem e uma mulher consagrada pela tradição cristã”, escreve o pesquisador especializado no conde Pável Bassinski.

Leitura das mulheres emancipadas

Na década de 1890, “A Sonata Kreutzer” foi fonte de contínuo debate. Bassinski escreve que o livro “foi um dos principais pontos de discórdia da década”. O final do século 19 foi uma época em que aumento sem precedentes a emancipação das mulheres. Portanto, não é de surpreender que as leitoras tenham visto outro problema ético na história: por que uma moça deveria permanecer virgem antes do casamento, enquanto seu noivo tinha o direito de gozar de experiência sexual e era até mesmo incentivado pela sociedade a fazê-lo?

Depois de a novela de Tolstói ser lançada, a questão da moralidade sexual passou a ser discutida na imprensa. Uma das primeiras feministas russas, Elizaveta Diakonova, escreveu em seus diários, indignada, que qualquer homem “consideraria uma vergonha para si mesmo” casar com uma mulher que teve relações com outros homens antes dele, enquanto ele próprio considerava normal ter relações sexuais antes do casamento. “E isso ocorre em todo lugar, em toda parte! Tanto na Rússia, quanto no exterior! Oh, meu Deus, meu Deus!”, escreveu Diakonova.

Fonte: https://br.rbth.com/cultura/85340-novela-proibida-de-tolstoi-incentivou-mulheres-a-questionar

agência de notícias anarquistas-ana

Encontro fugaz.
Neblina abraça o velho
lampião de gás.

Rogério Viana