A vasta poesia anarquista

É preciso reconhecer que este artigo tem um título problemático. O termo “anarquista” aqui é usado de maneira desavergonhadamente genérica, o que é no mínimo questionável. “Anarquista”, inscrito no título como um qualitativo de “poesia”, pode se referir tanto à poetas engajados no movimento e que publicaram em jornais canhotos, quanto ao tema da revolução libertária e da luta socialista.

Para resolver esse primeiro problema, recorro ao passado: volto os olhos para quem já pesquisou o tema. Um dos mais importantes guardiões da memória libertária brasileira atende pelo nome de Edgard Leuenroth: jornalista, tipógrafo e fundador de inúmeros periódicos importantes como A Plebe, A Folha do Povo, Ação Direta e etc.

Durante quase toda sua militância, Leuenroth colecionou registros do movimento que fez parte. Como homem das letras, deu especial atenção à literatura e à poesia. Desde 1900, e por cerca de cinco décadas, ele catalogou poemas com temáticas anarquistas publicados na imprensa operária e livre-pensadora. Nem sempre eram poemas exaltadores ou que propunham um didatismo ideológico, em sua maioria eram singelos versos de protesto.

O que dá tom à compilação de Leuenroth é sua fonte de pesquisa, a imprensa operária, em que apenas companheiros e camaradas eram convidados a publicar. É um recorte temático que favorece a inclusão de diferentes matizes da esquerda revolucionária. Por isso, na antologia de Leuenroth, há uma recorrência de poetas notoriamente anarquistas: Neno Vasco, José Oiticica, Gigi Damiani, Afonso Schmidt, Raymundo Reis.

Para quem se interessar por esse compilado de Leuenroth, existe uma pequena seleção dele no livro A poesia anarquista brasileira [1], de Yara Aun Khoury, publicada pela editora Monstro dos Mares. Ou simplesmente clica aqui e baixa uma versão em PDF [2].

Os esteios

Para efeitos de generalização, a que esse artigo é afeito, incluo por conta própria, e à deriva de Leuenroth, uma nova leva de poesia anarquista: aquela produzida por quem tem afinidades sinceras aos ideais libertários, mas não está vinculado a nenhuma organização. São simpatizantes, apoios  -   eu os chamo aqui de esteios.

Esteio é algum material, em geral madeira ou ferro, feito para escorar alguma coisa que pode cair, como a parede de uma casa ou a coluna de uma greve. É também como se nomeia alguém que ajuda, apoia, ampara outrem.

A inclusão dessa nova leva tem uma razão bastante pragmática: acredito que no eco das vozes desses poetas esteios estão os gritos de muitos poetas engajados; nas suas entrelinhas está o encanto revolucionário, e através delas ele chegará a mais olhos, despertará chamas impensáveis, inspirará gente distante. Através desses poetas, a ideia anarquista avança fronteiras inéditas se nutrindo do que o próprio anarquismo se nutre: do apoio mútuo, da solidariedade e da diversidade.

Por isso me parece que o conceito de poesia anarquista deve se permitir abarcar esses três campos: temático, quando se fala de temas caros à revolução libertária; engajado, quando é abertamente anarquista; e esteio, quando é simpatizante à causa. Estes três campos, é claro, não formam um volume único e homogêneo, contudo todos os três são capítulos de uma mesma obra.

Brossa

Gostaria de exemplificar meu argumento em prol da inclusão dos poetas esteio trazendo à luz um grande nome da poesia universal: Joan Brossa, o maior expoente do vanguardismo catalão dos meados do século passado.

Com apenas 18 anos, Brossa lutou a Revolução Espanhola ao lado das forças republicanas, mormente compostas por anarquistas e comunistas. Anos depois ele conhece o poeta Josep Foix, importante nome do surrealismo literário catalão. Como é de praxe, as vanguardas artísticas dessa época  fizeram com Brossa o que fariam com todo jovem artista daquele tempo: explodiram sua cabeça.

Brossa transitou pelo surrealismo, futurismo e dadaísmo e acabou por transcender todas elas.   Mergulhou na poesia escrita, depois na poesia visual, na poesia cênica e por fim na antipoesia. Seu trabalho chegou ao Brasil, provavelmente, pelas mãos de João Cabral de Melo Neto.

Cabral, além de imenso poeta, foi o embaixador brasileiro em Barcelona em 1947, em Londres em 1950 (dois anos depois ele é afastado e tem que retornar ao Brasil para responder a um inquérito que o acusava de subversão), em 1956 volta para Barcelona e de lá vai para Madrid e Marselha (em 1961 ele volta ao Brasil para ser ministro do Jânio Quadros, cargo que perde em 1964 com o golpe militar), parte então para Genebra, depois Berna, Assunción, Dakar e, por fim, seu último cargo de embaixada fora do país é na cidade do Porto.

Cabral se embebedou da poesia de todos os países em que trabalhou. Um pouco dessa trajetória ele escreveu em poemas, que foram compilados no livro Literatura como turismo, publicado pela editora Alfaguara e organizado por sua filha, Inez Cabral. Entre os principais responsáveis por essa bebedeira de Cabral estava Joan Brossa. Eles ficaram amigos e se influenciaram mutuamente de maneira irremediável.

Foi pelo meio campo feito por Cabral que Brossa conheceu a vanguarda Concreta brasileira, e a vanguarda concreta brasileira conheceu Brossa . Esse foi um gravíssimo acontecimento sísmico tanto para a vanguarda de lá quanto para a de cá.

A poesia anarquista, por fim, quando encarnada num poeta esteio da qualidade de Brossa, consegue viajar para longe, para onde a poesia engajada, publicada nos jornais militantes, sequer poderia imaginar. Esta é sua beleza e seu potencial.

Jr. Bellé

(Mais textos e poemas em @jr.belle e belle.noblogs.org)

[1] https://monstrodosmares.com.br/produto/a-poesia-anarquista-brasileira/

[2] https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3667

agência de notícias anarquistas-ana

Escorre pela folha
a tarde imensa,
pousada em gota d’água.

Yeda Prates Bernis