[Reino Unido] O Anarquismo Moldou David Graeber. E depois Ele Moldou o Anarquismo.

Ele soprou vida nova para dentro da ideologia.

Por Shane Little | 02/09/2021

A morte prematura de David Graeber em 3 de setembro de 2020 deixou um grande vazio no anarquismo contemporâneo. Sua teoria do anarquismo, construída através de sua participação na política anarquista e discutida em seus muitos livros e ensaios, deu vida nova à ideologia, moldando a política de toda uma geração e influenciando o discurso público de uma forma que pouquíssimos intelectuais anarquistas foram capazes de fazer.

Na tradição anarquista da “teoria informando a prática” e a “prática informando a teoria”, não só Graeber foi moldado pela ideologia, como ele também a moldou.

Rumo a uma política anarquista

Embora ele tenha sido criado em um ambiente familiar político – sua mãe era uma trabalhadora sindical e seu pai lutou na Guerra Civil Espanhola – e tenha começado a se identificar como um anarquista ainda durante a adolescência, o entendimento de Graeber sobre a ideologia só começou a amadurecer a partir de sua experiência na organização do movimento antiglobalização.

Graeber foi um participante ativo no Global Justice Movement (Movimento por Justiça  Global) nos anos 90, e nos protestos anti Livre-comércio na Cidade do Quebec e em Nova Iorque no início dos anos 2000. Durante esse período, ele estudou as tendências anarquistas dentro desses movimentos, e, inspirado pela eficácia deles, começou a desenvolver sua própria interpretação do anarquismo. Centrais para essa interpretação – e também para o movimento antiglobalização por si só – estavam dois conceitos: democracia direta e política pré-figurativa.

Democracia direta é um modelo de organização social no qual todo e cada cidadão vota em todas as decisões importantes. Segundo o próprio Graeber: “É sobre criar e implementar redes horizontais ao invés de estruturas de cima para baixo como Estados, partidos ou corporações; redes baseadas em princípios de democracia consensual, descentralizada e não hierárquica. Enquanto política pré-figurativa é o ato de se comportar de modo a refletir seus valores políticos”.

Se não agora, quando?

A política pré-figurativa estava no centro do anarquismo de Graeber – ele acreditava que ela era “algo que você faz, não uma identidade”. Sua política estava enraizada na prática; era sobre demonstrar a viabilidade dos princípios anarquistas não através da teoria, mas da vivência deles no seu cotidiano. Para Graeber, não havia um conjunto particular de condições sociais necessárias para a revolução social; nós deveríamos apenas começar e desafiar o Estado a nos impedir. Ao invés de lutar por um futuro anarquista longínquo, ele argumentou que deveríamos criar o tipo de espaço anarquista que queríamos ver no presente.

Talvez os melhores exemplos disso possam ser encontrados na participação e influência de Graeber no movimento Occupy Wall Street, no qual ele adotou uma série de modelos de organização sobre os quais ele havia escrito, incluindo a democracia direta e a política pré-figurativa. Spokescouncils¹, tomada de decisão por consenso e grupos de afinidade – todos meios anarquistas de organização – foram estruturas organizacionais chave no movimento; enquanto os próprios acampamentos, que Graeber ajudou a organizar, eram essencialmente espaços anarquistas estabelecidos e operados sem uma autoridade centralizada.

Essa defesa do anarquismo baseado na prática – que ele chamou de anarquismo com “A-minúsculo” – levou Graeber a criticar as tendências mais tradicionais dentro do movimento – o anarquismo “A-maiúsculo” – como o anarco-comunismo e o anarco-sindicalismo, mas, em particular, aquelas formas que aderiram a um programa fixo, como plataformismo. Na opinião de Graeber, tais leituras prescritas da ideologia eram muito rígidas e isoladas, tornando-as pouco atraentes para a participação em massa. Seu anarquismo, pelo contrário, era lúdico e inclusivo, criando espaço para os indivíduos moldarem o mundo de acordo com suas crenças e valores políticos.

Alguns discordaram do retrato pouco lisonjeiro de Graeber do anarquismo com A maiúsculo, causando fraturas no movimento que ainda reverberam hoje em dia. Apesar disso, Graeber teve uma influência extremamente positiva no anarquismo contemporâneo. Ele não apenas teorizou como viver sem um Estado; ele demonstrou como fazer. E mais, por meio de seu trabalho intelectual, ele apresentou todas as outras pessoas, do passado e do presente, que também estavam fazendo isso.

O valor da antropologia

Assim, da mesma maneira que o ativismo de Graeber foi vital para moldar seu anarquismo, também foi sua vida acadêmica. Professor de antropologia da Escola de Economia e Ciência Política de Londres (LSE), Graeber pegou o que aprendeu em sua pesquisa e usou para enriquecer o seu anarquismo, defendendo seu lugar na academia durante o processo.

Graeber só percebeu plenamente o valor político da antropologia sendo um estudante de graduação conduzindo um trabalho de campo em Madagascar. Enquanto estava lá, ele viu em primeira mão como várias tribos locais organizavam seus negócios sem a presença do Estado. Vindo do oeste estadunidense – onde a lógica do Estado parece axiomática – essa experiência alterou Graeber profundamente. A vivência de que outra forma de organizar a sociedade era possível, para além das restrições do Estado-nação, alargou radicalmente os seus horizontes políticos, em particular a sua crença na viabilidade do anarquismo. Como o próprio Graeber colocou: “Anarquismo e antropologia andam bem juntos porque os antropólogos sabem que uma sociedade sem um Estado é possível porque existem tantas”.

Tendo compreendido o quão factível o anarquismo como uma ideologia realmente é, ao retornar para a universidade, Graeber usou essa experiência para “anarquizar” seu campo de estudo.

Seu livro, Fragmentos de Uma Antropologia Anarquista, lançou as bases para uma escola de antropologia anarquista, argumentando que o assunto é “particularmente bem posicionado” como uma disciplina acadêmica para olhar para a gama de sociedades e organizações humanas, para estudar, analisar e catalogar estruturas sociais e econômicas alternativas em todo o mundo e, o mais importante, apresentar essas alternativas ao mundo. Enquanto seus livros Direct Action (Ação Direta) and Possabilities: Essays on Hierarchy, Rebellion, and Desire (“Possabilidades”: Ensaios sobre Hierarquia, Rebelião e Desejo) forneceram as ferramentas e recursos para uma nova geração de ativistas e acadêmicos estudarem os movimentos sociais não apenas a partir dos bastidores, mas como participantes ativos dentro deles.

Para Graeber, a relação entre política e academia era simbiótica. Sua pesquisa antropológica permitiu que ele percebesse as possibilidades do anarquismo; enquanto seu anarquismo deu à antropologia a estrutura necessária para canalizar seu potencial emancipatório e anti-autoritário.

Tornando o anarquismo mainstream

A escrita de Graeber foi uma forma de sintetizar seu ativismo e antropologia em uma teoria do anarquismo e compartilhá-la com o mundo. Embora seu trabalho ao longo dos anos 2000 tenha conquistado um número relativamente pequeno de seguidores fiéis, foi apenas na última década de sua vida, quando Graeber começou a escrever textos mais amplos e menos explicitamente antropológicos, que ele se tornou um intelectual público respeitado e influente.

Seu livro Dívida: os Primeiros 5.000 Anos, publicado em 2011, tornou-se um best-seller internacional, catapultando-o para o mainstream político. Enquanto isso, On the Phenomenon of Bullshit Jobs (Sobre o Fenômeno dos Empregos de Merda), o ensaio que ele escreveu para revista Strike!, uma pequena publicação anarquista, em 2013, que abordava a – até então – futilidade implícita de grande parte do trabalho contemporâneo, foi um inesperado sucesso viral, recebendo mais de um milhão de acessos e deixando Graeber inundado com centenas de e-mails de pessoas que reconheceram sua própria experiência no que ele descreveu. A peça não apenas cimentou seu lugar no mainstream político, como, talvez ainda mais importante, demonstrou sua capacidade de compreender intuitivamente e dar voz a pessoas comuns que enfrentam a exploração rotineira sob o capitalismo.

Ambos trabalhos mostraram a notável capacidade de Graeber de expor lúcida e claramente o absurdo dos mitos sociais comumente aceitos, enquanto casualmente oferecia a política anarquista como uma alternativa viável e de bom senso. Por exemplo, em Dívida, Graeber nos mostra a natureza ridícula da dívida como sistema financeiro, traçando seu papel ao longo da história e ilustrando os impactos negativos que teve na vida social. Em resposta, ele propõe que seja substituído por “comunismo cotidiano”, atos de ajuda mútua na vida humana cotidiana, que ele mais uma vez traça ao longo da história como evidência da propensão humana de se organizar em torno de princípios de cooperação ao invés de interesse próprio.

Essa rara habilidade de traduzir ideias políticas complexas em termos divertidos e fáceis de ler ajuda a explicar como um radical intransigente como Graeber conseguiu ganhar e manter o apelo popular. Sua origem na classe trabalhadora incutiu nele o ódio ao elitismo e, com ele, o desejo de que seu trabalho fosse apreciado fora da academia. Para ele, sua escrita era “uma extensão de sua política”, um ato de cuidado estendido ao seu leitor.

Assim como intelectuais publicamente anarquistas antes dele, como Paul Goodman, Noam Chomsky, Alex Comfort e Colin Ward, Graeber conseguiu fazer as pessoas pensarem como anarquistas, mesmo sem perceberem. Juntos, eles introduziram princípios anarquistas como ajuda mútua, associação voluntária e organização social liderada pela comunidade no discurso político dominante de uma forma que os fez parecer não apenas realistas, mas também de bom senso.

Se o ativismo de Graeber fez com que as pessoas se comportassem anarquicamente, suas críticas sociais fizeram com que as pessoas pensassem dessa forma. É uma conquista que apenas um punhado de anarquistas ao longo da história podem reivindicar – e que o tornou, sem dúvida, o anarquista mais prolífico do século 21. 

Um legado de esperança

Graeber nos deixou muito cedo. É uma tragédia pensar que ele não estará aqui para nos ajudar a entender os imensos desafios políticos que temos pela frente; como uma figura Chomskiana que ainda oferece esperança e roteiros para mudanças até os noventa anos.

Dito isso, o legado que ele nos presenteou é rico em ideias e exemplos práticos que nos permitirão dar continuidade ao seu projeto de construir um mundo melhor, mais justo e mais agradável.

A compreensão e as contribuições de Graeber para o anarquismo moderno revigoraram a ideologia e serão um ponto de referência para as gerações futuras. Sua participação no ativismo moldou os movimentos sociais contemporâneos e inspirou uma geração de ativistas. Enquanto sua capacidade de viver seus valores políticos, ao invés de confiná-los às páginas de seus livros, fez dele não apenas um acadêmico notável, mas um ser humano notável.

O anarquismo baseado na prática de Graeber era, em última análise, enraizado na esperança – na crença de que você pode refazer o mundo a qualquer momento. Ele confiava que, se fornecidas com as ferramentas e recursos certos, as pessoas teriam a capacidade de tomar suas próprias decisões sobre como devemos viver.

Por meio de seu anarquismo, Graeber nos mostrou não apenas que outro mundo é possível, mas que é possível agora. Ele vive em um daqueles momentos e movimentos que nos mostram até os menores vislumbres de tal mundo.

Shane Little é um anarquista e historiador na Universidade de Loughborough.

Fonte: https://novaramedia.com/2021/09/02/anarchism-shaped-david-graeber-then-he-shaped-anarchism/

[1] Nota de tradução: Spokescouncil é um método de estruturação de assembleias (council) onde os participantes são organizados em uma roda separada por raios (spokes) de maneira a permitir a participação de um grande grupo e a discussão em pequenos grupos para trabalhar em conjunto com o consenso. https://participedia.net/method/518

Tradução > A Estrela

Conteúdos relacionados:

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2021/04/01/eua-david-graeber-apos-a-pandemia-nao-podemos-dormir-novamente/

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/10/22/eua-relembrar-david-graeber-pesquisador-desordeiro-e-amigo/

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/10/16/eua-a-vida-de-david-graeber-comemorada-no-zuccotti-park/

agência de notícias anarquistas-ana

Chuva de primavera —
Uma criança
Ensina o gato a dançar.

Issa