[EUA] O “Primeiro Mundo” tem que parar de vitimismo: raízes coloniais da crise moderna de refugiados

Os maus tratos a refugiados nas fronteiras polonesas e bielorrussas têm chegado ao conhecimento do mundo inteiro. Não há muita análise dos jornalistas além do quão vergonhoso é usar as pessoas mais desesperadas do mundo como peças de xadrez para resolver disputas políticas.

Essas crises de refugiados que os países de “primeiro mundo” choram sobre quando refugiados aparecem em suas fronteiras não apenas acontecem; é importante entender suas origens. Elas são um resultado dos mesmos governos da Europa, América do Norte e assim por diante, que definiram fronteiras durante períodos de colonização.

Chamá-los de “primeiro mundo” e “terceiro mundo” essencialmente significa “áreas ricas” e “áreas pobres”no mundo como determinado por fronteiras e conquistas históricas. Obviamente, todo país no mundo tem suas próprias elites políticas e econômicas, mas a estabilidade relativa do primeiro mundo é um legado do colonialismo. Seu senso de superioridade origina-se do sofrimento historicamente infligido aos outros e foram eles que criaram as fronteiras que desencadeiam crises de refugiados.

Qualquer discussão de uma crise de refugiados deve reconhecer que está enraizada no eurocentrismo e nos terríveis séculos das conquistas europeias – o legado vivo do colonialismo. Vamos observar cinco das maiores crises mundiais de refugiados: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sule Myanmar. Essas são as maiores diásporas de refugiados do mundo, e todas são enraizadas na intervenção ocidental e na dominação europeia.

Síria

Logo antes da queda oficial do Império Otomano em 1922, forças britânicas e francesas planejavam secretamente como dividir seus territórios agora em declínio, previamente conquistados. Esse plano foi chamado de Acordo de Sykes-Picot e,a partir dele,a maior parte das terras árabes sob o controle do Império Otomano foram divididas em esferas de influência britânicas ou francesas após a Primeira Guerra Mundial.

A Síria especificamente se tornou membro da “Liga das Nações” francesa,um termo mais sofisticado para ser uma colônia dessa potência europeia. Em 1920, a França oficialmente tomou o controle da Síria e do Líbano. Os franceses formalmente tomarem o poder desencadeou revoltas internas no país, incluindo a Grande Revolta Síria entre 1925-1927.

Seguindo a Segunda Guerra Mundial, a Síria se tornou uma então chamada nação independente; os franceses deixaram sua antiga colônia na desordem. Múltiplas facções beligerantes locais e pessoas de vários antecedentes culturais tinham sido abarrotadas dentro das fronteiras artificiais de uma nação inventada, a Síria, por governantes britânicos e franceses desenhando linhas em um mapa. A retirada da França deixou um vácuo no poder, o qual alternou entre partidos políticos diferentes até 1970, quando Hafez al-Assad, o ministro de defesa militar na época, aplicou um golpe de Estado. Ele permaneceu com poder total até 2000, quando seu filho Bashar al-Assad o substituiu como governante do país. Bashar continua no poder.

Em março de 2011, em meio à Primavera Árabe, um grupo de estudantes na cidade de Dara’a foram presos e torturados por grafitar mensagens antigoverno.Isso resultou em uma indignação generalizada em um clima já tenso de divisão social e desespero econômico. A resistência das bases antigoverno escalou e se desenvolveu em uma luta mais militante de várias populações já opostas ao regime de Assad. Uma insurreição se tornou rapidamente uma guerra civil, graças ao bombardeio de cidades inteiras a mando de Assad.

Com a Rússia apoiando totalmente o Estado atual e os EUA buscando intervir sem o envio do exército, a guerra civil sírias e tornou uma complicada guerra por procuração com raízes na Guerra Fria. Os EUA se mexeram para armar qualquer um que estivesse contra al-Assad, de soldados curdos das linhas de frente à Al-Qaeda e ISIS/ISIL/Daesh. À medida que a Daesh cresceu em poder, os EUA decidiram que cooperar com Assad era preferível, uma decisão feita às custas dos soldados curdos que tinham trazido a luta aos terríveis autocratas da Daesh mais efetivamente do que qualquer grupo militar do mundo.

O poder de Assad se apoiava na habilidade de sua família em suprimir dissidências ao distribuir opressão e/ou benefícios entre as várias populações da Síria. Com a perda desse poder, e com investimentos ocidentais na guerra civil como uma guerra por procuração, um país já sobrecarregado por sanções econômicas ocidentais se tornou um desastre humanitário extremo. Mais de 320 mil pessoas morreram na Guerra Civil Síria desde 2011 e mais de 13 milhões estão em necessidade urgente de socorro. No momento,mais de 6 milhões de sírios estão internamente desalojados, com outros 6 milhões morando como refugiados no estrangeiro. Assim como o crescimento da Daesh pode ser atribuído à invasão americana ao Iraque, Assad pode ser atribuído à intromissão de poderes coloniais na região. As pessoas que moram na então chamada Sírias ofrem com as consequências dede ambos um histórico colonial e uma guerra por procuração contemporânea entre nações ocidentais.

Afeganistão

Historicamente o Afeganistão enfrenta a ira de ambos os Impérios Britânico e Russo. A crise atual no Afeganistão, contudo, é em decorrência da intervenção americana e mais jogos relacionados à Guerra Fria.

O Taliban era uma força de guerra religiosa, fundamentalista e autoritária que não apoiava a Revolução Saur, a posse do governo pelo partido comunista afegão em 1978. O Taliban foi e é fascistoide (e certamente antidemocrático), mas, nos anos 1980, seu anticomunistmo serviu aos interesses americanos. O governo americano proveu ao Taliban armamento e outros recursos para o auxiliara derrotar ambas as forças comunistas internas e a invasão militar soviética que apoiou o governo do partido comunista.

O Taliban então estabeleceu um Estado islâmico de extrema direita que ironicamente caiu após 2001, em decorrência da invasão pelas mesmas forças americanas que o estabeleceu. O Taliban foi acusado de fornecer abrigo seguro para Osama Bin Laden; na perseguição simbólica de um único homem, os Estados Unidos invadiram o país e tentaram instituir um governo mais amigável a ambos interesses americanos na região e à geral “guerra ao terror” pós-11 de setembro.Isso falhou miserável e repetidamente por décadas.

Muito da força do Taliban e da sua trajetória de governo pode ser atribuído ao apoio americano e à intromissão histórica na região por forças ocidentais. Independentemente de se as forças locais tiveram um papel ou não, o contexto maior da situação catastrófica no Afeganistão é enraizado nas conquistas britânicas e russas, na Guerra Fria e na invasão americana. A mão do ocidente é encontrada mais uma vez nesta crise.

Os números reais são provavelmente mais altos, mas, de acordo com a Agência da ONU para Refugiados, há ao menos 2.6 milhões de refugiados afegãos registrados no estrangeiro, com pelo menos 3.5 milhões internamente desalojados.

Myanmar

A crise Rohingya continua sendo uma das mais intensas situações de refugiados do mundo. Torturas, assassinatos em massa, destruição de vilarejos e violência sexual são ameaças constantes ao grupo étnico Rohingya em Myanmar, com o governo deliberadamente fechando os olhos. Os Rohingya permanecem como uma minoria muçulmana não-reconhecida em Myanmar e enfrentam excessos das bases e violência de estado por ambos fascistas budistas e operações da Junta. Hoje estão perto de um milhão de refugiados Rohingya registrados mundialmente.

A área agora conhecida por Myanmar estava sob controle colonial britânico de 1886 a 1948. A nação de hoje de Myanmar, como muitas outras ex-colônias britânicas, foi desenhada por poderes estrangeiros em mapas. Suas fronteiras contêm múltiplos grupos étnicos e religiosos. Durante a Segunda Guerra Mundial, os britânicos escolheram armara população Rohingya em Myanmar para lutar contra os que os próprios britânicos acreditavam ser simpáticos aos Japoneses.

Seguindo a independência birmanesa em 1948, essas divisões sociais que ganharam forças bélicas durante a Segunda Guerra Mundial permanecem inflamadas e raivosas até hoje. Myanmar poderia ser considerada uma das mais longas guerras civis na história moderna e,enquanto denunciamos as divisões sociais que a religião inflige na humanidade, temos também que reconhecer que a crise atual está enraizada na manobra política do Império Britânico contra o Império Japonês.

Os Rohingya continuam a enfrentar abusos incessantes e violência da junta militar do governo de Myanmar e seus apoiadores autoritários budistas. Embora elementos étnicos e religiosos de longa data e diferenças históricas tenham seu papel nessa crise, o governo britânico e sua interferência social na região deram seu pontapé inicial e a propagaram.

Sudão do Sul

O Sudão do Sul é a terceira maior crise mundial de refugiados após o Afeganistão e a Síria. O Reino Unido e o Egito governam os atuais Sudão e Sudão do Sul desde 1899-1956 como um Estado colonial duplo sob um governo imperial chamado Sudão Anglo-Egípcio. Desde que o Egito se tornou uma marionete política e militar do controle colonial britânico, contudo, é realmente o Reino Unido dando as ordens.

Como em muitos dos casos acima, a Grã-Bretanha tomou o poder por uma política de “dividir e conquistar”. Os britânicos investiram pesado em áreas árabes, primariamente no norte do país, enquanto desconsiderava regiões predominantemente negras. Os britânicos deliberadamente investiram em regiões árabes, não apenas como parte de um pogrom racista amplo,mas especificamente para desumanizar grandes segmentos de pessoas sudanesas e estabelecer uma estrutura de poder social que permanece ativa. As facções beligerantes contemporâneas do Sudão do Sul, as atrocidades como Darfur e as especificidades de quem tem poder militar podem facilmente ser traçados de volta aos britânicos.

Venezuela

Embora a Venezuela seja historicamente um sujeito na conquista espanhola, sua crise contemporânea é um resultado de intervenção americana. Enquanto não apoiamos Chavez ou Maduro de forma alguma, as sanções incansáveis dos EUA no país foram o que causou um dos países mais ricos em recursos do mundo a enfrentar pobreza e escassez em níveis tão extremos.

Após a morte de Hugo Chavez, atribulações sociais em resposta à tomada de poder de Maduro foram recepcionadas com repressão intensa pelo estado venezuelano. Alegadamente em resposta a isso, Barack Obama assinou sanções brutais à Venezuela em 2014. Contudo, considerando a repressão vista em países como Bahrain ou Arábia Saudita,que acontecem sem penalização americana, elas provavelmente foram uma cortina de fumaça para punir diplomaticamente a  Venezuela por sua nacionalização das enormes reservas de petróleo do país pelo governo “socialista”.

Independentemente do que afirme a mídia americana, Chavez e Maduro terem removido a possibilidade de indústrias americanas lucrarem na região é sem dúvida o que causou essas sanções. Obviamente Cuba e o Irã têm tarifado melhor sob sanções similar e se, provavelmente, em alguma extensão,as dificuldades atuais são decorrentes da corrupção e estupidez pura do regime de Maduro, mas não há como negar que a tentativa da esquerda autoritária de mudar a estrutura social da Venezuela iniciou uma campanha massiva de sabotagem econômica e inflação da miséria pelos Estados Unidos. É estimado que há 6 milhões de refugiados venezuelanos pelo mundo.

Em Conclusão

O que é importante com esses cinco casos é que vemos que a crise atual tem origem no legado eurocêntrico no mundo. A crise climática impulsionando os surtos de migração mais recentes pode ser atribuída primariamente a interesses norte-americanos e europeus, ou às nações industrializadas que provêm seus excessos.

As divisões que causam tantas guerras civis que levam a tantos deslocamentos podem ser rastreadas a táticas deliberadas de dividir e conquistar de governos coloniais, bem como o colapso do Império Otomano e a delimitação cruel e arbitrária de fronteiras por potências européias após as Guerras Mundiais. As divisões entre a Índia e o Paquistão, ou entre Israel e a Palestina, estão entre os conflitos mais proeminentes que resultaram dessas práticas.

É inevitável que aqueles nos lados menos afortunados dessas “fronteiras” imaginárias arriscarão tudo para escapar de seus destinos desafortunados. Americanos deixando o Afeganistão, a colonização perpétua e destruição do Haiti e o sistema capitalista neoliberal global (que é eurocêntrico em sua essência original) são responsáveis pelo desespero que vemos nas fronteiras do sul dos Estados Unidos, em volta da União Europeia, Austrália e basicamente em todos os lugares do planeta neste ponto.

Como anarquistas, ter uma perspectiva radical é o que nos diferencia de outras correntes políticas. Ao invés de tentar jogar os jogos de poder por regras estabelecidas e divisões, buscamos destruir o jogo por completo. Ser “radical” quer dizer pegar algo por sua raiz.

O homem branco não é nativo nos EUA, na América do Sul ou na Austrália. Ele veio como um invasor. Hoje, nacionalismo ignorante cega xenofóbicos nas bases do que a direita política chama de “invasão” de refugiados. Para aqueles que historicamente têm se beneficiado com a crise e/ou são responsáveis por ela, rejeitar aqueles que tentam escapá-la é um ato genocida.

É estranho se referir a milhões de refugiados que sofrem com esse cenário, essas vítimas do primeiro mundo, como “frangos vindos a cantar de galo”, mas o que mais se tem para dizer quando os Estados-nação mais ricos do mundo fingem que eles, o primeiro mundo, são as vítimas?

Fonte: https://itsgoingdown.org/the-first-world-can-fuck-off-playing-victim-colonial-roots-of-modern-refugee-crises/

Tradução > Sky

agência de notícias anarquistas-ana

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José Marins