“Tentar preservar o anarquismo no seu passado é acabar com ele”

Em sua passagem pelo Brasil, o anarquista português Mário Rui Pinto, da Barricada de Livros, concede entrevista à ANA. Confira a seguir.

Agência de Notícias Anarquistas > Como surgiu a Barricada de Livros?

Mário Rui Pinto < A Barricada de Livros é um projeto editorial que tem como objetivo divulgar figuras, grupos ou visões do anarquismo que, por qualquer motivo, caíram no esquecimento ou foram marginalizadas.

O projeto é individual, porque corresponde a um velho sonho meu finalmente concretizado, e é coletivo porque diversas e diversos compas participam nele desde o início ou em determinados livros.

ANA > Mas por que esse nome, “Barricada de Livros”? (risos)

MRP < Entre vários nomes possíveis, foi este o escolhido por mim e pela minha companheira da altura. Pareceu-nos bastante bem apropriado para uma editora que se assume como anarquista…

ANA > E quais livros já lançaram?

MRP < O primeiro livro – Preferi roubar a ser roubado! – saiu a 31 de Maio de 2017. Desde esta data já foram editados 10 livros, dois dos quais em co-edição com o jornal A Batalha. Os Cangaceiros, Anarquistas e orgulhosos de o ser, Escrito(s)-a-vermelho, Terra e Liberdade, O Dia Antes da Revolução e Outros Contos, são alguns dos títulos editados.

ANA > E qual é o livro “sucesso de vendas”, o mais procurado?

MRP < Todos os livros têm tido uma boa receptividade, dentro e fora do movimento anarquista, mas o mais procurado foi precisamente o primeiro, “Preferi roubar a ser roubado”, que já esgotou. Também um livro de poesia de um compa português, Miguel Serras Pereira, intitulado “À Tona do Vazio & Reprise” já esgotou.

ANA > E como funciona o processo de produção editorial, de seleção dos títulos, autores?

MRP < A seleção dos autores tem sido minha, mas consensual com outras pessoas que fazem parte da Barricada desde o início. Quem faz o primeiro esboço do Prefácio (onde se enquadra o pensamento do autor), da Biografia (de cada autor ou grupo) e da Pesquisa Histórica (quando esta existe) sou eu, mas depois estes textos são postos à disposição do coletivo que se cria para a edição de cada livro. Daqui resultam críticas, sugestões, correções, que são incorporadas nos textos finais que se tornam textos coletivos. Também a escolha dos textos dos autores editados a incluir nos livros é coletiva. A tradução dos textos vai sendo feita pelos membros do coletivo que se criou para cada edição. Há um compa que faz desenhos, para os livros que os têm, outros e outras fazem o grafismo, capas, etc.

ANA > Os livros da “Barricada” estão disponibilizados em livrarias, ou somente em lojas virtuais? Em eventos libertários…

MRP < Em Portugal, são vendidos em feiras do livro anarquista ou feiras de editoras alternativas, em livrarias pertencentes ao movimento ou pertencentes a compas e em livrarias de amigos e amigas, normalmente simpatizantes do anarquismo, que eu considero que tratam o livro como um bem cultural e não como um mero produto de supermercado. Também são vendidos de forma direta, através da página do facebook. Aqui no Brasil, para além da venda direta, são vendidos nas feiras do livro anarquista de São Paulo e Porto Alegre e através das lojas virtuais do Centro de Cultura Social e da Biblioteca Terra Livre, em São Paulo, e da biblioteca do NELCA de Guarujá. Ainda são vendidos em Espanha, apenas na Galiza, através de uma distribuidora anarquista galega.

ANA > Quais as limitações e dificuldades em manter uma editora anarquista, pequena?

MRP < Até à data, não tenho tido limitações ou dificuldades. As tiragens são relativamente pequenas, mas suficientes para o custo unitário de cada livro ser aceitável. Os livros vão se pagando, a distribuição é feita por mim ou por compas (como aqui no Brasil), é apenas uma questão de controlar os custos e de não entrar em loucuras do tipo distribuição comercial ou direitos de autor.

ANA > Há novos projetos editoriais sendo desenvolvidos para o próximo ano? Poderia compartilhar um pouco deles conosco?

MRP < Há um livro que já está na sua fase final e que também vai ser editado cá e lá. Trata-se de uma antologia do Tomás Ibáñez. Quanto aos restantes projetos prefiro falar quando estiverem também em fase final.

ANA > Na sua opinião, por que vemos poucos textos de literatura (romances, contos, poesia e ensaios) no panorama editorial anarquista internacional? Percebemos que a maioria dos livros lançados nos últimos anos são abordagens de fatos históricos… Isso não é ruim, mas… (risos)

MRP < Não sei, talvez porque as editoras anarquistas se debrucem mais sobre questões relacionadas com a teoria. A Barricada já publicou três livros de poesia (dois deles numa co-edição com o jornal A Batalha) e outro de contos, mas nos quais o anarquismo é determinante, seja pelos autores, seja pelo conteúdo. Também não sei se a maioria dos livros lançados nos últimos anos são abordagens de fatos históricos. Talvez no Brasil, mas não são em Itália, por exemplo.

ANA > Como você vê o panorama atual das editoras anarquistas em Portugal? Na Europa…

MRP < Em Portugal, para além da Barricada de Livros, existem pelo menos mais duas editoras anarquistas com uma produção regular: A Batalha (que edita também o jornal com o mesmo nome, um jornal centenário, fundado em 1919) e a Letra Livre. O coletivo que edita o jornal Mapa começou também a editar livros. Existem também indivíduos ou grupos que editam pequenos livros, brochuras ou zines de forma mais artesanal e ocasional. São também editadas de forma regular duas revistas: A Ideia e a Flauta de Luz.

Na Europa, apenas posso falar do que se passa em Espanha, em França ou em Itália. Existem muitas editoras anarquistas, mas também editoras que editam livros de/sobre anarquismo. Destaco sobretudo uma editora italiana, Elèuthera, à qual estou ligado, e que é retratada num dos capítulos do livro “Viver a Utopia”.

ANA > Qual o seu livro anarquista preferido e por quê?

MRP < Tenho vários, mas, por questões “sentimentais”, saliento dois: “O Anarquismo” do George Woodckok, que foi o livro que me fez descobrir o anarquismo e o célebre romance da Ursula K. Le Guin “The Dispossessed”, traduzido no Brasil como “Os Despossuídos” e em Portugal como “Os Despojados”. Para além da sua grande qualidade literária, é um romance que, em termos de anarquismo, está lá tudo.

ANA > A “Barricada” participou de eventos editoriais anarquistas no Brasil (Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre, Feira Anarquista de SP…) recentemente. Poderia falar um pouco dessa relação com o Brasil, como começou, se está presente desde o início do projeto, se há projetos de parcerias…

MRP < A minha relação pessoal com o Brasil iniciou-se à cerca de 25 anos, quando comecei a vir para cá, sempre conjugando férias (na altura ainda por períodos pequenos) e anarquismo. Procurava passar férias em locais onde viviam anarquistas que já conhecia de nome e que desejava conhecer pessoalmente. O primeiro anarquista que conheci foi o Carlos Baqueiro em Salvador. Nessa viagem também conheci a Cleuzete e o já falecido Tavares. Depois, Rio de Janeiro, Florianópolis, etc. Nos últimos anos, esta relação intensificou-se com viagens mais prolongadas a partir da vinda para a Feira do Livro Anarquista de São Paulo. Acho que neste momento tenho um conhecimento muito alargado do panorama do anarquismo aqui.

Esta relação está presente, como seria de esperar, desde  o início do projeto. Desde o início em 2017 que os livros são vendidos aqui e que estou presente na feira do livro de São Paulo. Este ano alargou-se à de Porto Alegre. Há um projeto de parceria para a co-edição de um livro com o Centro de Cultura Social e penso que a experiência da edição brasileira do Viver a Utopia irá continuar, pelo menos com o próximo livro.

ANA > Poderia falar um pouco da participação da “Barricada” na Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre? Gostou do evento?

MRP < Sim, gostei muito. Fui recebido com muita fraternidade por uma galera que me fez lembrar os e as anarquistas com quem faço coisas em Lisboa, Porto e Setúbal. Exatamente o mesmo tipo de anarquistas e a mesma visão do anarquismo. Falar com eles e elas foi como se estivesse a falar com o pessoal de lá. Para além de que o conceito da feira é muito semelhante ao da de Lisboa.

ANA > Também fale um pouco da Feira Anarquista do Livro de Lisboa, um balanço…

MRP < A feira de Lisboa tem sido sempre um espaço de reencontros e de divulgação. A deste ano não fugiu a esta regra, realizada num espaço que se veio a revelar muito agradável, ao ar livre, e com a questão adicional de ter sido feita depois de um ano de ausência, devido a confinamentos e outras restrições sanitárias.

ANA > E como o anarquismo se insere na sua vida?

MRP < O anarquismo entrou na minha vida quando eu tinha 15 anos, ainda no tempo do fascismo. Entrou de forma inconsciente, instintiva, porque na altura eu não sabia nada, nem conhecia a palavra. Só quando descobri numa livraria o livro O Anarquismo do George Woodckok, me apercebi do que era, na realidade, este conjunto de ideias e a sua história. Com o fim do fascismo, a 25 de Abril de 1974, tive o privilégio de conhecer os velhos anarco-sindicalistas que tinham sobrevivido a este regime e que reapareceram à luz do dia. A partir daí, nunca mais parei.

ANA > Olhando para sua trajetória anarquista, sua experiência, acha que o anarquismo mudou muito? Os anarquistas, as novas gerações…

MRP < Sim, claro, o anarquismo tem de mudar, tem de estar em constante evolução, senão morre como aconteceu ao marxismo. A sua constante evolução é uma das suas grandes forças. Querer fechá-lo dentro de muros, querer agarrá-lo a um passado glorioso, mas passado, é matá-lo.

ANA > Qual a sua visão do momento atual do anarquismo em Portugal?

MRP < O movimento anarquista em Portugal atual é o resultado de uma evolução histórica marcada por 48 anos de fascismo e pela ascensão do Partido Comunista. Cometeram-se alguns erros depois da queda do fascismo, muitos deles motivados pela ausência de bases teóricas sólidas, mas não vale a pena lamentarmo-nos. É um movimento relativamente pequeno, sem qualquer organização formal, mas esta realidade não impede a organização de tudo aquilo que outros movimentos de maior dimensão também fazem: ocupações, feiras do livro, manifestações, encontros, edições, etc. Existem vários locais em Lisboa, Porto (sobretudo) e Setúbal. São editados dois jornais (A Batalha e Mapa) e duas revistas (A Ideia e Flauta de Luz) de grande qualidade.

ANA > Nos dias de hoje, num mundo tão complexo, qual a modernidade do anarquismo?

MRP < O anarquismo segue sendo atual precisamente por causa da sua permanente evolução. Ao contrário do marxismo, que ficou fechado em textos fundacionais escritos por uma só pessoa (como o próprio nome indica) ou pela ação política de ditadores (Lenin, Estaline, Trotsky, Castro, etc.), o anarquismo não depende de nenhum pai ou mãe fundadora, tem incorporado os contributos de dezenas de homens e mulheres ao longo da sua história. Ao contrário do marxismo, os textos clássicos fundacionais do anarquismo são apenas isto: textos fundacionais. A partir deles, o anarquismo tem evoluído constantemente, tem-se adaptado à complexidade do mundo. O Tomás Ibáñez defende que as ideias anarquistas sempre existiram, provavelmente com outro nome que não anarquismo (há quem defenda que o taoismo filosófico foi o anarquismo do seu tempo), e continuarão a existir, provavelmente adotando outro nome daqui a uns tempos. Tentar preservar o anarquismo no seu passado é acabar com ele.

ANA > Para terminar, você poderia deixar algum recado aos leitores da
ANA? Obrigado! E longa vida à Barricada!

MRP < Para os leitores e as leitoras da ANA deixo apenas uma mensagem: continuem a ler e a apoiar a ANA. É um site de divulgação importante e fundamental. Obrigado.

FB: https://www.facebook.com/Barricada-de-Livros-107364059947250/

agência de notícias anarquistas-ana

é quase noitinha
o céu entorna no poente
um copo de vinho

Humberto del Maestro

One response to ““Tentar preservar o anarquismo no seu passado é acabar com ele””

  1. politicas da performance arte

    Sou sucinto. Sem querer envolver-me em assuntos relacionados com práticas editoriais. Na verdade, o leitmotiv “anarquismo”, hoje bastante generalizado, vem sendo muito útil para aqueles elementos transfugas da ultra-esquerda, dos marxismos enragés, e outros orfãos militantes sem espaço de intervenção, poderem encontrar uma posição correspondente a um segundo fôlego “espontaneísta”, a fim de realizarem no cenário anarquista, o que consideram ser a acção política. Pois, alguma coisa terá de mudar no anarquismo, com o intuíto de proporcionar o invento de novas formulas mais abrangentes, para este poder absorver a panaceia afecta aos diversos tipos de “comunistas” sem partido. Leio opiniões de alguns anarquistas publicadas, que vão nesse sentido, embora discorde radicalmente delas, e assisto à discussão pelo lado perfilhado por Malatesta. No conjunto da entrevista, pretendo destacar apenas duas questões: Primeiro, relativamente à pergunta,”Olhando para a sua trajectória, sua experiência, acha que o anarquismo mudou muito? Os anarquistas, as novas gerações…”; gostaria de ver desenvolvida a resposta, a fim de o leitor perceber melhor a visão pessoal do próprio MRP. Ou seja, neste panorama de mudança em que os anarquistas de hoje existem, feita a correcção dos erros do passado, quais as matérias que devem processar através das suas ideias, isto dentro do “evolucionismo” ideológico do anarquismo. Segundo, quanto à pergunta, “Qual a sua visão do momento actual do anarquismo em Portugal?”; Haverá muito para acrescentar à análise do desastre orgânico do anarquismo em Portugal, precisamente, nos últimos 47 anos? Durante este período vincadamente marcado pela perspectiva da democracia liberal. Nesta terra onde tudo tende a confundir-se, pergunto se a problemática teórica exposta no postulado reunido com a obra “Deus e o Estado”, de M. Bakunin, e a réplica ao referido livro, feita por Carl Schmitt, em “Teologia Política”, está derradeiramente inadequada ao nosso tempo? O anarquismo tal como é concebido, e por vezes, praticado, deixou de ser a verdadeira antítese da arquitectónica do pensamento autoritário? Fico-me por aqui.