[França] Prisioneiro político anarquista começa greve de fome

O veterano de Rojava Libre Flot acusa as autoridades de incriminá-lo injustamente por sua participação na guerra contra o ISIS.

Em 8 de dezembro de 2020, 9 anarquistas foram detidos pela DGSI, a unidade antiterrorista da polícia francesa, em várias localidades pela França. Foram acusados de fazer parte de “uma associação criminal que planejou um ataque terrorista”.

Todos exceto um foram liberados (dois sem acusações), alguns após meses em prisão preventiva. Eles aguardam julgamento e foram colocados sob controle judicial. Os acusados, sendo que não são todos que se conhecem, estão sob vigilância há um longo período, incluindo vigilância digital como com a implantação de escutas em veículos, e vigilância física.

O que ainda está encarcerado aguardando julgamento, Libre Flot, é mantido em regime de isolamento com acesso limitado a visitas. A razão oficial apresentada para justificar sua detenção contínua em tais condições enquanto todos os outros acusados foram liberados é porque as autoridades e o tribunal o identificam como o líder do “grupo”.

Anteriormente, em fevereiro, o recurso de Libre Flot para ser liberado antes do julgamento foi negado por um juiz.

Sua carta (abaixo) é o anúncio do começo da sua resistência em greve de fome.

Por que estou em greve de fome

Por mais de 14 meses tenho refutado esta acusação infame e difamatória de associação terrorista. Faz mais de 14 meses que a DGSI me explicou que não fora detido pelo que queriam que eu acreditasse, nomeadamente meu envolvimento com as forças curdas contra o Estado Islâmico (Daesh) em Rojava.

Faz mais de 14 meses, durante os quais nada validou a tese elaborada inteiramente pela DGSI, mesmo que por pelo menos 10 meses tenham me seguido, rastreado, gravado 24 horas por dia em meu veículo, minha casa, espiado até mesmo minha cama.

Por mais de 14 meses, entendi que são minhas opiniões políticas e minha participação nas forças curdas YPG na luta contra o Daesh que estão tentando criminalizar. Faz mais de 14 meses que 7 pessoas que não se conhecem são acusadas de serem parte de uma associação criminosa.

Faz mais de 14 meses que respondo perguntas investigativas de um juiz que usa as mesmas técnicas tortuosas da DGSI: manipulação, descontextualização, omissão e invenção de palavras e fatos, em uma tentativa de influenciar as respostas.

Por mais de 14 meses fui sujeito às provocações do juiz que me investiga e que, enquanto estou definhando nas prisões da República, dá-se o direito de me dizer que este caso é uma perda de seu tempo na luta contra o terrorismo. Ainda pior, ele se permite o mais inaceitável insulto ao se referir aos bárbaros do Estado Islâmico, [colocando-nos] como “amigos do Daesh”. Mesmo que verbal, isso continua um insondável ato de violência. É inadmissível que esse juiz garanta a si mesmo o direito de me insultar nesse nível, tentar me difamar e, assim, cuspir na memória dos meus amigos, amigas e camaradas curdos e curdas, árabes, assírios e assírias, turcomenos e turcomenas, armênios e armênias, turcos e turcas e de outras nacionalidades que perderam a vida pela luta contra essa organização. Ainda estou ultrajado por isso.

Faz mais de 14 meses de uma investigação tendenciosa, na qual, contrário ao seu papel, o juiz investiga apenas para a promotoria e nunca para a defesa. Ele não considera algo que vá além do cenário preestabelecido e serve apenas para validar uma personalidade falsa completamente construída pela DGSI que, longe de me representar, apenas reflete as fantasias paranoicas dessa polícia política. Assim, sou constantemente apresentado como um “líder carismático”, mesmo que qualquer modo de funcionamento não-horizontal seja contrário aos meus valores igualitários.

Por mais de 14 meses, sou mantido na então chamada prisão preventiva sem julgamento (sic), sob as piores condições possíveis: o regime de isolamento (veja as cartas de março e junho de 2021) é considerado “tortura branca” e tratamento desumano ou degradante por várias entidades de direitos humanos. Faz mais de 14 meses que estou enterrado, morando em uma solidão infernal e permanente, sem ter com quem falar, apenas para poder contemplar o declínio das minhas capacidades intelectuais e a degradação do meu estado físico, e isso sem ter acesso a acompanhamento psicológico.

Depois de fornecer à administração da prisão argumentos falsos para assegurar que eu seria mantido na solitária, o magistrado examinador do caso requereu a recusa do meu apelo para soltura, assim como o promotor nacional antiterrorista. Para isso, quase copiaram e colaram o relatório da DGSI de 7 de fevereiro de 2020, a base de todo o caso, cujo veredito não fora demonstrado e do qual não sabemos de onde vem a informação. Temos o direito de nos perguntar qual foi o propósito dos grampos, da vigilância, das gravações de som e desses dois anos de investigação e instrução judicial, uma vez que os fatos que demonstram a falsa construção da DGSI foram ocultados.

O National Anti-Terrorist Prosecutor’s Office (PNAT) [Escritório da Promotoria Nacional Antiterrorista] e o juiz que investiga estão constantemente a incutir confusão e criar uma amálgama com terroristas islâmicos, mesmo que saibam muito bem que lutei contra o Estado Islâmico, notadamente durante a libertação de Raqqa, onde os ataques de 13 de novembro foram planejados.

O juiz diz temer que eu possa informar pessoas imaginárias da minha situação, mesmo que seja pública, notadamente porque a DGSI ou o PNAT vazaram a informação no primeiro dia. Ele, assim, diz prevenir qualquer pressão sobre as testemunhas, vítimas e suas famílias, mesmo que não haja testemunhas ou vítimas, uma vez que não há ação. É ubíquo. Ele também mencionou seu medo de um esforço orquestrado entre os réus e seus cúmplices, mesmo que todos os réus tenham sido libertados, que ele tenha questionado ninguém além de mim desde outubro de 2021, e que esperei pacientemente até que tenha terminado de me interrogar para apresentar o pedido de soltura. Poderia ser cômico em outras circunstâncias notar o uso de fatos anódinos como: gozar do meu direito de liberdade na França e na Europa, meu estilo de vida, minhas opiniões políticas, minhas práticas esportivas, meu gosto musical, seja por rap ou música curda.

O magistrado examinador ataca a minha mãe por se referir a ela como não sendo uma garantia válida pela simples razão de que ela não preveniu seu filho, que tinha 33 anos de idade na época, de se juntar às forças curdas da YPG na luta contra o Daesh. Mais uma vez, é a minha participação nesse conflito que está sendo criminalizada. Ele também critica o uso de aplicativos encriptados (WhatsApp, Signal, Telegram…) que milhões de pessoas na França usam. Finalmente, deprecia todas as outras opções de garantias (trabalho, acomodação…) sem ter algo para as repreender, mesmo que a equipe da SPIP (Serviços de Integração Penitenciária e Liberdade Condicional) tenha proferido uma opinião favorável, como é seu trabalho.

Como então podemos entender que, após ordenar essas investigações de viabilidade que significam a possibilidade de me soltarem com uma tornozeleira eletrônica, o juiz de liberdades e detenção, apesar do relatório, recusa-se a colocar em prática [seus resultados]? Muitos de nós percebemos que neste caso inteiro a “justiça” viola suas próprias leis e é sujeita à agenda política da DGSI.

Aprendi recentemente pela boca do diretor de detenção da Prisão Yvelines  (Bois d’Arcy), que agradeço pela franqueza, que minha alocação e manutenção na solitária foram decididos no primeiro dia por pessoas muito poderosas e que, independente do que eu diga, ou que ele diga ou faça, nada será feito sobre isso, que está acima dele, que o processo nem mesmo será lido e que continuarei em regime de isolamento e, em todo caso, nada poderia mudar antes das eleições presidenciais.

  • Já que estão tentando criminalizar ativistas que lutaram com os curdos contra o Daesh,
  • Já que a então chamada prisão preventiva é usada para punir opiniões políticas,
  • Já que esta história existe com o propósito único da manipulação política,

Já que hoje só me resta a perspectiva da destruição lenta do meu ser, eu me declaro em greve de fome desde domingo, 27 de fevereiro de 2022, às 6 horas. No momento, posso apenas pedir a minha soltura enquanto espero demonstrar o lado difamatório dessa acusação vergonhosa.

Libre Flot

Fonte: https://freedomnews.org.uk/2022/02/28/france-anarchist-political-prisoner-begins-hunger-strike/

Tradução > Sky

agência de notícias anarquistas-ana

folhas no quintal
dançam ao vento
com as roupas do varal

Carlos Seabra