[EUA] Marcus Rediker: A História dos Piratas & a Reapropriação do Nosso Futuro

Conversamos com o lendário intelectual Marcus Rediker sobre como estudar “a história pelo lado de baixo” dos piratas, dos levantes de escravos e dos povos oprimidos. Falamos sobre as conexões da resistência histórica ao capitalismo com a rebelião contemporânea.

Asia Art Tours: No livro The Many-Headed Hydra [A Hidra de Muitas Cabeças], você e Peter Linebaugh discutem o conceito de “Hidrarquia”: “a organização do estado marítimo pelo lado de cima, e auto-organização dos marinheiros por baixo… uma tradição marítima radical que também era uma zona de liberdade.

O navio se tornava tanto uma máquina do capitalismo na esteira da revolução burguesa na Inglaterra quanto um espaço de resistência.” Você vê pontos em comum entre os trabalhadores do mar históricos e os trabalhadores da gigeconomy? Os marinheiros que entregavam cargas nos portos e os entregadores de comida por aplicativo experimentam uma forma semelhante de exploração ou disciplina por parte do capital? Você acredita que há potencial para “pirataria” ou algum tipo de resistência pirata pelos trabalhadores da gigeconomy?

Marcus Rediker: Sim, eu vejo semelhanças entre os marinheiros e os trabalhadores de aplicativos. Ambos têm horas de sono irregulares e estão frequentemente sob condições precárias de trabalho. Ambos têm papel central na economia capitalista. E devido a mobilidade, ambos têm dificuldades históricas de organização. E quando eles de fato se organizam, essa resistência pode ter um impacto desproporcional muito além da quantidade de pessoas mobilizadas, graças à posição estratégica deles na divisão do trabalho.

Também vejo diferenças, e a principal delas é que entre os marujos havia um poderoso senso de experiência e cultura coletiva baseados nos riscos do trabalho, o que estimulava a solidariedade. Os marujos sempre cultivaram uma forte identidade ocupacional, mesmo quando o trabalho que faziam era considerado degradante e desonroso pela sociedade em geral. Trabalhadores da gigeconomy geralmente trabalham sozinhos, o que significa que nem sempre desenvolvem relações horizontais ou estão cientes de sua força comum. O futuro das lutas trabalhistas entre os dois tipos de trabalhadores pode depender do desenvolvimento de práticas e de uma consciência de si mesmos como “trabalhadores de transporte” interligados. As ligações terra-mar entre esses trabalhadores podem produzir grande poder de controlar ou interromper os circuitos do capitalismo global.

Asia Art Tours: Na Hidrarquia há uma dependência do sistema carcerário para manter a disciplina, semelhante aos governos de nações terrestres? Como era a “cadeia” ou as tecnologias carcerárias nestes navios? É possível ver as raízes desta mesma violência carcerária nas formas modernas de disciplina trabalhista em navios de carga e de pesca?

Marcus Rediker: A Hidrarquia, como quase todas as coisas, precisa ser observada tanto pelo lado de cima quanto pelo de baixo. De cima, a Hidrarquia, que constituiu e sustentou impérios marítimos dentro de um sistema capitalista internacional, depende diretamente da disciplina e do encarceramento. Os códigos trabalhistas dos primeiros navios modernos do mundo são famosos por sua severidade e pela horrenda variedade de punições, que vão desde humilhações ao enforcamento de amotinados na verga dos navios. Historicamente, a disciplina trabalhista nos navios foi violenta ao extremo. É possível afirmar que o próprio navio tenha frequentemente servido de prisão flutuante. Isso é certo no caso dos navios negreiros, onde o encarceramento dos corpos Africanos era fundamental para a acumulação de força de trabalho e dos lucros eventuais no mundo todo.

O mesmo pode ser dito dos navios militares e mercantes, que coibiam duramente a capacidade dos trabalhadores em escapar da exploração e, de uma forma bastante real, faziam deles prisioneiros de seus capitães. Muitos navios possuíam cadeias menores dentro da prisão flutuante: por exemplo, os navios de detentos que saíam da Grã-Bretanha para a Austrália continham caixas pretos, pouco maiores que um caixão, nas quais os homens rebeldes e, com mais frequência, mulheres detentas, eram encarcerados em penas de duração variada para atenuar a resistência e restaurar a ordem social.

O navio negreiro, é claro, foi um grande experimento de desenvolvimento de tecnologias carcerárias: o uso do convés inferior como cadeia; as redes amarradas ao redor dos trilhos do navio para evitar que os escravos desafiassem a ordem e se matassem pulando no mar; os exemplos são muitos. Sempre me pareceu significativo que o verdadeiro criador do panóptico, a prisão concebida para maximizar o controle social (famosa graças à citação de Michel Foucault em “Vigiar e Punir”), tenha sido Samuel Bentham, o irmão mais famoso de Jeremy. Samuel era um construtor de navios.

Asia Art Tours: Diversas figuras que se utilizaram da luta armada – Gloria Richardson, John Brown, Huey Newton – estão ressurgindo como heróis na cultura contemporânea dos EUA. Como você vê a relevância da violência utilizada pelos piratas para resistir ao Capitalismo em relação aos esforços de resistência atuais?

E de que modo podemos observar a resposta estatal aos piratas para entender como os estados de hoje vão reagir à violência contra a propriedade privada (oleodutos, squatting, e assim por diante)?

Marcus Redike: O pirata é um americano em versão marítima e, até certo ponto um herói internacional, do povo: o fora-da-lei. Tomei emprestado conceito de “bandido social” de Eric Hobsbawn para argumentar que o pirata pode ter sido um criminoso aos olhos da lei, mas era visto de forma bem diferente pelos trabalhadores comuns. As autoridades da época lamentavam que os piratas fossem vistos como “heróis românticos” pelos trabalhadores coloniais do mar e da terra nas Américas. Os piratas utilizavam a contra-violência para combater um sistema violento do qual eles próprios haviam sido vítimas, e muitos ex-marinheiros traziam nas costas cicatrizes de chicotadas para provar. De fato, muitos marinheiros ingressaram na pirataria para tentar escapar do brutal sistema de disciplina trabalhista do mar.

Como disse o pirata John Fly na forca de Boston em 1726, instantes antes de ser executado: “Não posso mudar a mim mesmo — Não serei culpado de assassinato algum — nosso Capitão e seu Imediato nos usaram barbaramente. Nós, homens pobres, não podemos deixar que a justiça nos abata. Não há nada a ser dito aos nossos comandantes, apenas que nunca nos abusem tanto, nem nos tratem como cães.” Eles próprios consideravam a reação às opressões como uma forma de autodefesa.

Asia Art Tours: Além da ameaça material que os piratas representam para o estado e o capital, como suas práticas sociais ameaçavam a pulverização necessária à dominação dos cidadãos trabalhadores?

E, se é importante para os cidadãos trabalhadores lutar contra essa pulverização hoje, que práticas sociais da pirataria devemos procurar emular em nosso cotidiano, prática de micropolítica ou organização?

Marcus Rediker: Uma forma de pensar sobre o navio pirata é entender que ele era um modelo de e para os trabalhadores auto-organizados, diferentes dos conselhos de trabalhadores ou sovietes que sugiram mais adiante na história da classe trabalhadora. Trabalhadores assalariados e explorados se organizaram para criar um espaço de autonomia onde eles poderiam, como dizia um pirata, ser “donos da escolha” do modo de organizar suas vidas. Numa época em que os pobres não tinham qualquer direito democrático (início dos 1700s), eles elegiam seus representantes e limitavam seus poderes. Em uma época de desigualdade extrema, eles dividiam saques e recursos de uma forma surpreendentemente igualitária.

Essas práticas eram ataques diretos e subversivos à maneira como os navios mercantes e militares operavam – e as classes dominantes do Atlântico imediatamente as compreenderam dessa forma. Em retaliação, a classe dominante enforcou centenas de piratas e prendeu seus corpos em correntes na entrada marítima de cidades portuárias em uma tentativa deliberada de amedrontar marinheiros comuns e desencorajá-los a aderir à pirataria quando seus navios fossem capturados no mar. Foi uma campanha consciente para pulverizar o espaço de autonomia coletiva que os piratas haviam criado.

Os piratas tinham muitas ideias boas sobre como criar uma ordem social alternativa. Os leitores podem encontrá-las no meu livro Villainsof All Nations: AtlanticPirates in the Golden Age (2004) [Vilões de Todas As Nações: Piratas Atlânticos da Era de Ouro]. Eles praticavam a democracia e a igualdade conforme mencionei antes. Criaram um executivo duplo, estabelecendo o contramestre como detentor de poder equivalente ao capitão (que também era eleito) e encarregado de vigiá-lo para evitar abusos de poder. O contramestre, geralmente o homem mais confiável a bordo, era uma espécie de “tribuno da plebe”.

Os piratas também construíram um estado de bem-estar social em miniatura a bordo dos navios para cuidar de todos os que se machucassem no exercício do trabalho. Praticavam a solidariedade liberando pessoas presas em trabalhos terríveis. Quando se preparavam para retornar ao mar após uma farra em celebração de alguma viagem bem-sucedida, eles liquidavam os contratos de servos e os convidavam para ir junto. Os piratas foram inovadores na longa história dos ideais democráticos e igualitários, mas seus nomes, ideias e práticas nunca aparecem nos livros de teoria política.

Asia Art Tours: Por fim, como a Hidra de Muitas Cabeças pode nos ajudar a repensar questões de classe e de protesto?

Marcus Rediker: Por décadas as interpretações predominantes da história do trabalho se concentram em homens brancos artesãos ou em operários de fábrica em um contexto nacional, nas histórias da classe trabalhadora na Inglaterra, nos EUA e na França dos anos 1830. A Hidra de Muitas Cabeças oferece uma visão diferente, ao enxergar o proletariado como algo muito maior, mais amplo, e mais antigo: era composta por homens, mulheres e crianças, assalariados e não remunerados, formalmente livres e escravizados, cujos trabalhos criaram um sistema de capitalismo atlântico a partir do início do século XVII, muito antes da fábrica e além das fronteiras do Estado-nação.

A hidra não era apenas uma metáfora, mas um conceito. Que nos permite conceber a classe de uma maneira diferente, explorando as conexões entre um grande e variado grupo de trabalhadores, a heterogeneidade dentro da unidade, por todos os territórios Atlânticos. Vemos a “tripulação heterogênea” como uma força revolucionária. A classe trabalhadora multiétnica do passado, ou as muitas cabeças da hidra, se parecem muito com a classe trabalhadora de hoje. Os protestos militantes que surgiram em todo o mundo após o assassinato de George Floyd têm uma longa e inspiradora história.

Estou trabalhando em um novo projeto sobre a hidra contemporânea, outra história transnacional vista de baixo, intitulada “Hydra Rising!” [O Levante da Hidra] Uma equipe de ativistas acadêmicos, incluindo Nandita Sharma, Bridget Anderson, Cynthia Wright, Pia Klemp e Peter Linebaugh, explorará a experiência e a política móvel da classe trabalhadora migrante e seu desafio ao poder Hercúleo do capitalismo global. Pessoas em movimento, desafiando os poderes constituídos ao cruzar as fronteiras dos estados por terra e por mar, estão entre os mais importantes criadores de história do nosso tempo.

Fonte: https://asiaarttours.com/marcus-rediker-the-history-of-pirates-learning-to-steal-back-our-future/

Tradução > A.P.

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agência de notícias anarquistas-ana

Fugiu-me da mão
no vento com folhas secas
a carta esperada.

Anibal Beça