Sempre fomos um bando de gatos-pingados, poucas pessoas com a paciência necessária para seguir fazendo livros durante muitos anos. Nesse conjunto de poucas editoras anarquistas e anárquicas, quase todas as pessoas se conhecem e eventualmente já realizaram projetos em comum, compartilharam mesas em alguma edição da Feira Anarquista de São Paulo ou trombaram nos colóquios, congressos e conferências no tempo em que tudo isso ainda era possível. Quem torna os livros anarquistas possíveis no Brasil conhecia o Ernesto Kramer e todas nós ficamos tristes com a notícia do seu falecimento.
Nós da Editora Monstro dos Mares estivemos juntos com o idealizador da PrintLeaks em algumas poucas oportunidades, mas elas sempre foram intensas, de boas conversas, ideias, trocas, e umas pitadas de mal humor que acompanha qualquer pessoa que dedica sua vida aos livros, leituras e a tarefa da publicação. Nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2019 estivemos no Tendal da Lapa, derretendo no final de semana próximo ao feriado do dia 15 de Novembro, a cidade sempre naquele climão de Fórmula Um. Mas estar na feira proporciona esses encontros, conhecer quem são as monas, minas e manos que tocam os projetos, compartilham ideias, fazem os conteúdos circularem. Também é descobrir novas ideias, coletivos, grupos, bandos e bandas, saber o que está acontecendo. E, entre todas as efervescentes ideias, estamos nós, as pessoas que fazem livros, zines, cadernos costurados, camisetas, pôsteres e tantas outras atividades. Geralmente somos sempre as mesmas pessoas, as mesmas editoras, as mesmas caras de sempre que se entregam nessa “coisa” de anarquia/anarquismos faz um tempão.
Ernesto estava em vários lugares, ele já esteve com pessoas em Florianópolis fazendo papel reciclado, num sítio em Caxambu nas Minas Gerais, em São Paulo e em todo lugar. Sua vontade de fazer as coisas acontecerem estava sempre adiantada, articulando ideias pro hoje, semeando e distribuindo edições com um ótimo acabamento, costurados e com papéis ecológicos. Antes da pandemia, ele publicou o livro da netinha que, sorridente, distribuiu autógrafos na X Feira Anarquista de São Paulo. Já durante o pandemônio, dedicou-se em traduzir a obra de Murray Bookchin e publicou-a através de financiamento coletivo, no qual se apresentou de forma muito sincera, como lhe era de costume, para todas as pessoas que desejavam conhecê-lo e conhecer o projeto da PrintLeaks.
Como forma muito singela de homenagem, memória, carinho e conforto a todas as muitas amizades, parentes e pessoas que o conheciam, vamos compartilhar a apresentação que ele escreveu para as pessoas que não o conheciam na oportunidade da campanha de financiamento coletivo e para que possamos sempre guardar a lembrança desse amigo:
Quem sou Eu?
Sou um “véio” [hahaha] com 77 anos e meio neste planeta. Viajei muito, morei em vários países e, como consequência, só posso assumir a condição de apátrida. Passei a metade da vida fora do Brasil. Tenho estudos em Ciências da Comunicação, Psicologia Evolutiva e Ciências Políticas e Econômicas [este último focado em “socialismo libertário”]. Fora do ambiente acadêmico não paro de estudar e aprender sobre assuntos que me interessam ou considere necessários num momento dado.
Fiz tantas coisas na vida que até passaria vergonha se faço um currículo. Desde ocupações mais simples e brutas, até altos cargos em empresas multinacionais. Minha carteira de trabalho está virgem até hoje. Sempre tentei trabalhar por conta e não depender de salário e patrão.
Chutei o balde e me dediquei à produção de artesanato, cerâmica e bijuteria.
Isso, até aparecer na minha frente um computador. Literalmente pirei. Desde então se passaram 23 anos dedicados à produção de livros artesanais.
Sempre, desde criança gostei de ler e isso derivou na vontade de escrever. Não foi até fins dos anos ’80 que comecei a gostar do que e como escrevo. Não me interessam romances nem poesias. O foco são assuntos que possam contribuir, de alguma forma, à evolução da humanidade. Os livros que publico na minha editora PrintLeaks refletem isso.
Cresci aprendendo quatro línguas. Uma do país onde fui criado, outra em casa, e mais duas que eram obrigatórias no sistema educacional desse país. Nas viagens aprendi outras quantas. Esqueci a maioria por falta de prática.
Hoje sou fluente em espanhol, inglês, alemão e português. Se me topar com alguém da Noruega não passo vergonha. Confesso, nunca estudei português.
Quando comecei a receber um salarinho duma pensão [LOAS] do INSS comecei a encarar a ocupação atual como complemento de renda. Só que neste momento esse complemento está zerado.
A Editora PrintLeaks
A minha história de editor de livros começa em fevereiro de 1997, com meu primeiro computador.
Até esse momento usava máquina de escrever e fiquei deslumbrado com o msWord. Editei quatro livros meus e recebi dez encomendas de pessoal que soube o que estava fazendo.
Inventei “Edições Universo Separado” e as encadernações não podiam ser mais primitivas. Nada sabia disso e a incipiente internet não oferecia a quantidade de informações que hoje tem. Fui evoluindo no meu trabalho junto com a internet. Sou autodidacta, como em tantas outras coisas.
Quando apareceu a WikiLeaks mudei o nome para PrintLeaks [vazou, eu imprimo].
Em todos esses anos até hoje meu foco foi publicar livros de outras pessoas por encomenda. Virei especialista no que chamo de “MicroTiragens”, sem colocar um mínimo para a quantidade de livros. A maior parte das edições são entre dez e trinta livros, com poucos chegando a quarenta ou cinquenta. Mas se quiser só um exemplar também faço.
Os livros que publico por conta e iniciativa pessoal são relacionados com o ‘nicho’ libertário. São temas sobre anarquismo, humanismo, anarco-humanismo, questões ambientais e de gênero, raça, feminismo, mais alguns fora desses temas, só porque acho bacanas,
Para vender minha produção participo de algumas feiras de livros, obviamente relacionadas com a temática escolhida. Destaco a Feira Anarquista que já aconteceu dez vezes no Tendal da Lapa, São Paulo. Sou assíduo desde a terceira, quando apresentei 16 títulos, e na última coloquei 44 títulos na banca.
Também botei banca na Avenida Paulista durante três anos, até mudar a Caxambu. Naquele tempo de sampa também fazia cadernos de anotações, meus “Notebooks Analógicos”.
Trabalho sozinho e me chamo de “Coletivo D1”. Minha oficina é um quarto onde tenho uma editora, uma gráfica e uma oficina de encadernação. O trabalho não é simples, não é só editar, imprimir e encadernar. A maioria dos livros que publico acho em PDF e com frequência em outras línguas. Tem que ser convertidas em arquivos editáveis e também faço as traduções, muitas desde o espanhol, mas também do inglês.
Digo que faço dois tipos de artesanato: o tradicional analógico e o eletrônico.
Desde que apareceu o papel reciclado dou preferência. Só por encomenda uso outros tipos de papéis. Os livros são vincados, as folhas furadas, os miolos costurados e colados, a montagem final, tudo feito a mão.
Dei vários cursos e oficinas sobre encadernação artesanal e produção de livros artesanais.
Em matéria separada vou mostrar o local onde trabalho e como faço os livros.
A Tradução de “A Ecologia da Liberdade”
Descobri Murray Bookchin faz uns 5 anos atrás, justamente a través de seu livro “The Ecology of Freedom” que leva o sugestivo subtítulo “O Surgimento e a Dissolução da Hierarquia”.
Este livro me impactou, pois desenvolve o tema “Ecologia e Sociedade”, no qual sigo interessado. Até poderíamos dizer que apresenta a evolução do pensamento ecossocial na história da humanidade, desde tempos pré-bíblicos até a atualidade.
Mas seria errado considerar isso como sua única contribuição ao tema. Nos entrega muito mais do que isso quando se refere à hierarquia, ao patriarcado, ao rol da mulher na história, ao desenvolvimento do capitalismo e muito mais. Sempre com uma visão libertária dos assuntos tratados.
Sua erudição, claramente fruto de profundos estudos, complicou esta tradução. Chega a usar palavras e expressões que não são achadas em nenhum dicionário, ou tão desconhecidas que exigem pesquisa mais profunda. Sem a internet teria tido muitos problemas para realizar esta tradução.
Desde aquele tempo quando li por primeira vez pensei que esse livro teria que ser traduzido. Mas nesses anos todos estava muito envolvido num Campeonato Nacional de Procrastinação.
Finalmente um inimigo macabro veio na minha ajuda. Devido ao Covid-19 estou isolado onde moro. É uma mini-chacrinha na roça, perto de Caxambu, no sul de Minas Gerais, circuito das águas. Nada a fazer mais que cuidar dumas poucas galinhas que destruíram o começo duma horta.
Aproveitei a oportunidade e fiz a tradução do inglês para o português.br. Foi um trabalho empolgante devido ao texto que estava relendo. Dediquei mais de doze horas diárias a este trabalho. Também fiz uma pré-edição que revela um livro de 500 páginas, com fonte tamanho 11. Neste momento o amigo Zé Henrique está revisando o texto, sem tanta pressa, já que não preciso disso até finalizar esta campanha.
Ernesto Kramer
monstrodosmares.com.br
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Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!