Notas sobre anarcofeminismo | Direitos reprodutivos, Estado e anticlericalismo

Atravessamos uma pandemia, mas nem por isso, há paz para meninas, mulheres e crianças. Quem leu o livro “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, consegue perceber a assustadora semelhança de situações recorrentes, ao analisar a crescente onda da extrema direita fanática e religiosa que assombra o mundo.

Vimos em agosto de 2021, imagens de pessoas fugindo da capital do Afeganistão. Esta, há 20 anos, ocupada pelos Estados Unidos e agora, sendo tomada pelo Talibã. Neste contexto, centenas de mulheres afegãs contaram seus maiores temores: da segurança de suas vidas, do controle dos seus corpos, do cerceamento de seus direitos básicos de ir e vir, de estudar, de viver, e por fim, de não serem consideradas minimamente humanas.

Isso não significa, em hipótese nenhuma, que a ocupação era boa, e não é este o cerne da questão. Mas sim, de que independente do lugar do mundo, a capacidade de acabar com o mínimo de humanidade para mulheres, sejam cis ou trans é uma realidade tão latente que grita aos nossos olhos.

O capital anda lado a lado com o controle, seja ele através do medo, seja pela busca de uma salvação imediata às custas dos que não aceitam seu status quo. Patriarcado, religião e capitalismo fazem uma dança macabra em que as maiores vítimas não são homens.

No Brasil, em 2020, a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves do governo Bolsonaro, interferiu em julgamento, afim de impedir o aborto de uma menina violentada e grávida de 10 anos. Não bastasse esse absurdo, em nosso país mulheres não podem colocar métodos contraceptivos como o DIU sem a autorização de seus parceiros ou seus pais. Enquanto nos horrorizamos com o que ocorre no Afeganistão, no Brasil aproximadamente 88 mil meninas e meninos com idades entre 10 e 14 anos estão em uniões civis e/ou religiosas. Somos o primeiro lugar na América Latina e o quarto lugar no mundo em incidência de casamento precoce.

Em Israel, mulheres e crianças palestinas são sistematicamente perseguidas e em 2016, o rabino – chefe do exército isralense Eyal Karim, defendeu o estupro de mulheres.

A religião tem como ponto de partida a opressão, e essa opressão é fortemente arraigada para o controle e submissão da mulher. Tanto o Talibã quanto o atual governo brasileiro são formados por fanáticos religiosos.

Não importa se o estado seja teocrático ou não, a existência desse controle é a forma direta de punição tratada para criar um eterno estado de medo e vigilância, e também de poder.

A onda neofascista vem colada ao evangelismo, com um forte apelo à submissão feminina e deturpação do termo feminismo. Enquanto a violência doméstica aumentou no Brasil e no mundo durante a pandemia, o discurso religioso é de manter a relação a todo custo, e aceitar a violência até o assassinato ocorrer. Damares e sua trupe não são aliadas na luta, são opressoras, e aceitam migalhas dentro do teatro dos horrores para se sentirem minimamente humanas.

Todas as religiões oprimem, o patriarcado é a fonte de toda essa verborragia que coloca a culpa dentro do corpo a partir do nosso nascimento. E não importa se ela está pautada em visões monoteístas. Emma Goldman tratava da importância das relações não se pautarem pela via religiosa, Maria de Lacerda Moura, denunciava sobre o horror do clero e sua ligação com o fascismo e versava sobre a importância do anticlericalismo em nossa sociedade, construída com o sangue da catequização.

Praticamente 100 anos depois, estamos nós, aqui, debatendo novamente os mesmos assuntos, porque estamos presas à dominação religiosa. É mais do que necessário lançar luz ao assunto para que possamos romper as correntes e exigir avanços reais sobre o direito aos nossos corpos. Enquanto Argentina e México aprovam a discriminalizam o aborto, nós andamos na contramão rumo à Gilead.

Para além da questão do aborto, a religião está intimamente ligada à recusa da ciência e pudemos ver na prática e sentir em nossas peles o que um estado guiado pela religião pode causar em meio a uma crise sanitária. As igrejas se mantiveram lotadas mesmo durante o pior momento da pandemia, contribuindo diretamente para o caos que se instalou. Se na teoria a religião diz pregar o amor, a compaixão e a solidariedade, os fatos podem provar que a prática é bem diferente.

Dos mais famosos casos de escândalo do Vaticano aos mais discretos casos de abuso sexual dentro de casa, faz-se de extrema urgência que nós, mulheres de luta, anarquistas, sigamos firmes utilizando nossos corpos para criar políticas contrárias e sejamos a mudança. Promovendo conversas sobre educação sexual com as meninas, meninos e mulheres ao nosso redor, agindo contra a escravidão moral e social enraizada em nossos comportamentos, vivendo nossos amores livremente, criando uma rede de apoio efetivamente livre da moral religiosa e, principalmente, combatendo a presença da Igreja no campo da educação e da formação de crianças e jovens.

O anticlericalismo é uma luta muito importante para nós anarquistas, tornando-se ainda mais urgente para nós mulheres. Somos nós os agentes da mudança e estamos certas de que a religião existe apenas para manter as pessoas mansas, a fim de serem mais facilmente exploradas, tanto no campo das ações quanto no campo das ideias. É não pactuar com os erros e os crimes sociais e governamentais históricos, sendo cúmplices da reação clerical e da superstição dogmática dos que apagam as mais tímidas fagulhas da chama da razão humana e sepultam toda e qualquer forma de questionamento que leve à livre expansão da consciência.

Por isso fazemos um chamado: não seja mansa, seja a mulher que a Igreja diz profana, diz maldita, seja bravia, seja indomesticável, SEJA INSUBMISSA.

CAFI – Coletiva Anarco Feminista Insubmissas

agência de notícias anarquistas-ana

Lua tão distante —
Paira por um só momento
sobre a rua torta

Mônica Monnerat