[Portugal] Há um século: O meu tributo a Malatesta

Poucos são os que conhecem o nome deste anarquista italiano (Errico, de baptismo, traduzido às vezes em português como Enrico, Eurico, etc.) mas ele figura com destaque em todas as histórias deste movimento político radical que despontou na Europa oitocentista e ainda se prolongou com alguma influência em certos países até à II Guerra Mundial, e sobreviveu depois, a espaços.

Malatesta nasceu em 1853 na província de Caserta (no Sul da Península), de uma família de proprietários rurais que lhe pôde proporcionar estudos. Chegou a frequentar Medicina mas a acção política e revolucionária falou mais forte e a elas se entregou inteiramente. Para sobreviver, recorreu a diversos empregos que a sua cultura permitia realizar (traduções, revisão de provas tipográficas, livreiro, vendedor, etc.) mas durante o seu longo exílio em Inglaterra trabalhou como electricista. Em situação de detenção domiciliária, veio a falecer a 22 de Julho de 1932 na cidade de Roma, onde sobrevivia com a ajuda dos camaradas, depois que uma squadra fascista havia destruído a sua oficina tipográfica.

Conhecendo ainda a acção de alguns heróis do Rissorgimento Italiano, como Mazzini, foi rapidamente para o nascente movimento operário-socialista que Malatesta se inclinou, privando ainda com o intemerato russo Bákunine (então refugiado entre a Suíça e a Itália), um nome que só por si assustava as Casas Reinantes e os Impérios, e entrando com outros jovens idealistas (entre outros, Cafiero, com quem esgotaram as respectivas heranças paternas para financiar as preparações revolucionárias) nas fileiras da International Workingmen Association onde já pontificava Karl Marx mas coexistiam várias outras tendências, entre as quais a dos franceses do anarquista Proudhon. E quando a disputa se agudizou depois da Comuna de Paris (1871) e do congresso de Haia (1872), Malatesta foi dos que recusou a extinção da Internacional e, pelo contrário, enveredou pela expansão da corrente anti-autoritária em todos os países onde isso parecia possível, como Portugal.

Redactor panfletário e jornalista inflamado, publicou diversos opúsculos destinados à propaganda entre o povo (Fra Contadini, etc.) e travou diversas polémicas, dentro e fora do seu movimento: em 1897, com o camarada Saverio Merlino sobre se o “partido anarquista” deveria ou não concorrer nos pleitos eleitorais; no congresso anarquista internacional de Haia, em 1907, com o francês Pierre Monatte, sobre se o sindicalismo (revolucionário) se bastaria a si próprio para a almejada revolução social; em 1916 (embora cheio de pena sincera), contra o seu amigo Kropótkine, que defendia o direito da guerra defensiva da França democrática perante os intentos do “militarismo prussiano”; e em 1926, contra os russos da “tendência de Archinov”, que preconizavam um modelo de organização própria de tipo “anarco-bolchevista”, com direcção centralizada e “responsabilidade colectiva”. Em todos estes confrontos, Malatesta representou sempre a parte radical e intransigente contra as cedências ao “realismo” e a abdicação daqueles princípios anti-autoritários que interiorizara desde jovem – anti-eleitoralismo, anti-estatismo, anti-teologismo, crença numa revolução emancipadora para todos os oprimidos – princípios estes que muitos outros assumiram como dogmas de uma ideologia que seria capaz de resistir às evoluções do mundo e da ciência (e foram capazes de sacrificar por isso as suas vidas).

Consequente com aquelas palavras, participou pessoalmente em diversas tentativas insurreccionais no seu país: em 1874 em Bolonha e em 77 no Benevento; em Ancona em 1898 e de novo em 1913; e Turim (em parte também Milão) em Setembro de 1919 (com ocupações de fábricas que paralisaram a nação), onde colaborou com o comunista Gramsci e impulsionou a criação da Unione Anarchica Italiana, redigindo um Patto de Alleanza exemplar que foi o seu estatuto orgânico fundador, e lançando o jornal Umanità Nova, que ainda hoje existirá. Esta actividade ininterrupta valeu-lhe inúmeras prisões, exílios e deportações al confino, sendo (segundo o historiador Berti) uma das personalidades mais perseguidas pela polícia daquele tempo. Mas nunca defendeu ou apoiou os atentados individuais praticados por certos anarquistas.

Depois veio a “marcha sobre Roma” (1922), o Fascismo, e o já idoso Malatesta lá foi, de trouxa aviada, homiziado para uma daquelas ilhas do Sul onde agora chegam os desesperados migrantes saídos da Líbia.

Este tempo de forçada inacção deu-lhe a oportunidade de reflexão pessoal, de análise do movimento em que acreditava e da toda a época que conhecera. Conseguiu publicar ainda a revista Pensiero e Volontà e colaborar em outros periódicos italianos e estrangeiros. E aqui podemos encontrar abundantes exemplos de como o seu pensamento político se terá tornado menos radical e mais atento às realidades sociais, económicas e políticas deste período “de entre guerras”. Face à complexidade, que já entrevia, das sociedades modernas industrializadas, recomendava ele então aos seus correligionários que, num processo de mudança social, “só devemos destruir aquilo que saibamos, e possamos, substituir por coisa melhor”.

Nunca renegou o seu passado de activista e revolucionário, mas Malatesta abria-se agora à compreensão de novas dimensões da acção social, que o futuro mostrou se terem tornado ainda muito mais imbricadas e profundas do que ele (e qualquer outra pessoa culta do seu tempo) poderia algum dia ter imaginado. A um dos que o conheceu e sendo dos mais sérios e consequentes seguidores da sua linha de pensamento, Umberto Marzocchi, ouvi-lhe um dia esta frase, que admito pudesse ter sido dita pelo seu mestre, face a certas críticas mais insidiosas vindas do seu próprio meio: “forse, abbiamo sbagliatto, ma con quanta bonna fede…

É a este carácter de lutador por boas ideias para uma sociedade mais livre e igualitária, mas, simultaneamente, de observador atento às evoluções que o mundo ia conhecendo, que eu presto o meu tributo de respeito e reconhecimento.

E por aqui termino estas evocações centenárias.

JF / 22.Julho.2022

(para quem queira aprofundar o conhecimento sobre esta figura histórica sugiro: Max Nettlau, Errico Malatesta, 1922; E. Malatesta, Pensiero e Volontà, 1936; Vernon Richards, Malatesta: Vita e Idee, 1968; Pier Carlo Masini, Storia degli Anarchici Italiani, 1969; Gino Cerrito, Il ruolo dell’organizazione anarchica, 1973; Paolo Finzi, La nota persona, 1990)

Fonte: https://aideiablog.wordpress.com/2022/07/22/ha-um-seculo-4/

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