Peter Kropotkin era um príncipe. E começo com isto para enfatizar que o anarquismo nunca foi um projeto de classe, mas que sua localização foi de outro lugar, o da emancipação humana, contra todo poder. No anarquismo, então, tivemos personagens de todas as classes sociais e de todos os papéis, desde um príncipe como Kropotkin, passando por carpinteiros como Enrique Malatesta até cozinheiras como Petronila Infantes da Bolívia.
Kropotkin estava, em muitos de seus pontos de vista, à frente de seu tempo. Ele foi uma das primeiras influências do que conhecemos hoje como o movimento abolicionista, do qual falaremos mais tarde. Mas aqui eu quero destacar seu conceito de “apoio mútuo”, um princípio que acabou transcendendo o anarquismo e impactou todo o movimento emancipatório contemporâneo. Como lembraremos, em 1859 Charles Darwin publicou seu livro A Origem das Espécies, que, se por um lado era uma refutação crucial da teoria criacionista religiosa, por outro lado era a pedra fundamental do que mais tarde seria conhecido como “darwinismo social”, que explicava a evolução das espécies, chamada “seleção natural”, baseada na luta entre os indivíduos, a sobrevivência dos mais aptos e fortes, que se tornou um dos princípios do capitalismo moderno. Para refutar esta teoria, como naturalista, Kropotkin fez uma série de estudos na Sibéria onde mostrou que a cooperação entre espécies, que ele chamou de ajuda mútua ou apoio mútuo, era um fator crucial para a adaptação e sobrevivência de diferentes tipos de animais. O Apoio Mútuo é hoje, e devemos celebrá-lo, um conceito que não é mais exclusivo dos anarquistas.
Em 1877, em Paris, ou seja, há 145 anos, Kropotkin fez um magnífico discurso em Paris que resume a base do que conhecemos hoje como abolicionismo penal. Resumi grosso modo duas de suas principais ideias: a prisão não “reabilita” a pessoa, mas a degrada muito mais, e o sistema prisional não dissuade outras pessoas de cometer atos considerados como crimes. Kropotkin, como muitos outros, foi um adversário da pena de morte.
Gostaria de citar apenas dois parágrafos deste discurso, que parece ter sido escrito ontem:
“Quaisquer que sejam as mudanças feitas no regime prisional, o problema da reincidência não diminui. Isto é inevitável; deve ser assim; a prisão mata todas as qualidades que tornam um homem melhor adaptado à vida comunitária. Ele cria o tipo de indivíduo que inevitavelmente retornará à prisão para terminar seus dias em um desses túmulos de pedra gravados com “Casa de Detenção e Correção”.
Para a pergunta “O que pode ser feito para melhorar o sistema penal”, há apenas uma resposta: nada. É impossível melhorar uma prisão. Com exceção de algumas melhorias insignificantes, absolutamente nada pode ser feito, exceto demoli-lo”.
O modelo prisional foi reproduzido tanto pelos governos capitalistas quanto socialistas. E as consequências foram as previstas por Kropotkin. No caso da América Latina, as prisões são as grandes universidades do crime. E também ratificam a premissa de que a chamada “justiça” tem um preço, em dinheiro ou em lealdade ou submissão ideológica. Entretanto, já sabemos muito bem o que significam os chamados “sistemas de administração da justiça” nos países capitalistas. A pergunta que quero fazer hoje é por que não falamos, com a mesma ênfase, sobre a função disciplinar das prisões em países autodenominados progressistas ou de esquerda. Sob o capitalismo, a pobreza é punida, enquanto sob o socialismo, a dissidência política é punida.
Gostaria de lembrar que a União Soviética, o “grande farol do socialismo mundial”, tornou-se literalmente o túmulo do anarquismo russo. O próprio funeral de Kropotkin em 1921 foi a última manifestação pública de anarquistas naquele país. 100.000 pessoas compareceram ao funeral, no qual o regime de Lenin renegou sua promessa de libertar provisoriamente prisioneiros políticos anarquistas a fim de assistir a esta demonstração pública de pesar. Qualitativamente, de acordo com os princípios anarquistas, o socialismo realmente existente em seus dispositivos de opressão não se diferenciou do capitalismo realmente existente.
Os anarquistas latino-americanos, pelo menos os que conheço, fazem um grande esforço para demonstrar solidariedade com seus iguais, dentro da prisão, com os prisioneiros políticos anarquistas. E, claro, isso é bom. Também por denunciar, seguindo Kropotkin, as falsidades, limitações e aberrações de nossas prisões, chamando seus prisioneiros de “prisioneiros sociais”, e isso também é louvável. Quando em países como a Colômbia sob o governo de Iván Duque ou o Chile sob o governo de Sebastián Piñera houve manifestações em massa contra o governo, os anarquistas não hesitaram em se solidarizar com as revoltas e fazer campanha pelos presos políticos por participarem dos protestos. E isto eu não critico, como eu mesmo o faço. Entretanto, o pouco ou nada que fazemos, e este é o ponto central da presente conversa, é empatizar quando protestos populares ocorreram em países autodenominados socialistas da região. E estou falando especificamente de Cuba, Nicarágua e Venezuela. Por que esta falta de solidariedade?
Cuba marcou recentemente o primeiro aniversário dos protestos de 11 de julho de 2021, a mais importante rebelião popular dos últimos anos na ilha. De acordo com o site justicia11j.org, a partir deste escrito, 1.512 pessoas foram presas pelo crime de expressar sua insatisfação com o estado cubano em espaços públicos. 677 dessas pessoas ainda estão na prisão e 630 já foram julgadas. Em Cuba, o lugar do punk é ocupado pelo movimento independente, não estatal, do rap. Maykel Castillo, rapper e um dos autores da canção “Patria y Vida”, foi recentemente condenado a nove anos de prisão pelos supostos crimes de “difamação de instituições e organizações, heróis e mártires”, “ataque”, “insulto” e “desordem pública”. Há apenas alguns dias, o rapper David D’Omni também foi preso. Os episódios de repressão na ilha são inumeráveis. Mas eles são incompreensivelmente silenciados, não apenas pelo movimento anarquista continental, mas também pelo movimento anarco-punk. Um espaço assim seria inimaginável na ilha. Não sei se você sabe que durante muitos anos a esquerda rejeitou o rock com a mesma ferocidade que a direita. Em 1963, Fidel Castro fez um discurso no qual descreveu os roqueiros, que naquela época eram um fenômeno emergente que estava começando a infectar a juventude cubana, como “pimentinhas preguiçosas”, “filhos da burguesia”, com “calças muito apertadas” e “shows femininos”. Naquele dia o caudilho deu uma ordem que foi seguida pela esquerda na América Latina: “A sociedade socialista não pode permitir tais degenerações”. As histórias na região eram dramáticas, mas em Cuba muitos roqueiros, homossexuais e outros dissidentes lumpens foram perseguidos e presos, por muito tempo, pelo suposto crime de “periculosidade social”.
Na Nicarágua houve uma rebelião popular durante 2018, que foi brutalmente reprimida e resultou em 400 mortos, mais de 1.200 feridos e mais de 700 pessoas presas. A partir de hoje, de acordo com o Mecanismo de Reconhecimento de Prisioneiros Políticos da Nicarágua, 180 pessoas que participaram dos protestos permanecem em detenção. Além disso, mais de 700 organizações sociais foram proibidas no país.
Na Venezuela, que é a situação que melhor conheço, de acordo com o Foro Penal existem atualmente 236 presos políticos, 222 dos quais homens e 14 mulheres. Nos protestos de 2017, que foram nossa última rebelião popular, que durou 4 meses e, de acordo com os dados do próprio governo, houve 9.436 protestos, o que significa uma média de 78 protestos diferentes a cada dia. Nesses protestos, 146 manifestantes foram mortos e, como na Nicarágua, centenas de pessoas foram presas, muitas delas submetidas a tratamentos desumanos, cruéis e degradantes, inclusive tortura. No caso venezuelano, muitos dos detidos por manifestação foram entregues ao sistema de justiça militar. Ou seja, foram os tribunais militares que os julgaram pelos supostos crimes de “traição” e “associação para cometer um crime”, estabelecendo penas de prisão.
Minha mensagem hoje é que continuemos a denunciar o horror das prisões nos países capitalistas, mas não silenciemos o que lhes acontece, e seu uso disciplinar também, em países autodenominados progressistas ou socialistas. Espero que nenhum de vocês faça eco ao argumento marxista de que os protestos nestes países, ou estes prisioneiros políticos, são fomentados pela CIA, como se não houvesse razões suficientes para a agitação coletiva. Esta é uma estratégia histórica do marxismo para desviar as críticas. Não esqueçamos que o próprio Karl Marx acusou Miguel Bakunin de ser um espião ao serviço do czar russo, o que na época equivalia a dizer que ele era da CIA.
Nós, anarquistas, sempre defendemos nosso próprio projeto. Meu apelo é que abandonemos as muletas marxistas, que parecem ter colonizado boa parte do atual movimento anarquista latino-americano, para enfrentar o desafio de avançarmos em nosso próprio caminho.
Muito obrigado por sua paciência.
Palestra de Rafael Uzcátegui no Tianguis Cultural del Chopo, Cidade do México, Jornada Anticarcerária, sábado, 16 de julho de 2022.
Fonte: http://acracia.org/kropotkin-tenia-razon-carceles-y-presos-politicos-en-los-paises-socialistas/
Tradução > Liberto
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!