Há já algum tempo que cada vez mais meios de comunicação do Estado espanhol falam do fenómeno libertário. Nas redes sociais esse uso é ainda mais intenso. E gostaria que falassem sobre a criação e expansão das novas organizações libertárias de hoje, ou o avanço das organizações anarco-sindicalistas vencendo greves e obtendo melhorias para a classe trabalhadora. Mas não é o caso.
Falam de Javier Milei, fenômeno político argentino (por assim dizer), como um libertário. Não, ele não é anarquista. Ele é o enésimo defensor ferrenho da propriedade privada, a sua própria, claro: roubar nomes e conceitos do anarquismo não parece ruim para eles, como ultraliberais que são.
Então… ser anarquista e ser libertário não significam a mesma coisa? Bakunin era um libertário? Do que estamos falando então?
Em nosso ambiente, a palavra libertário refere-se a ideias anarquistas, e na grande maioria das vezes elas são consideradas sinônimos. Nas palavras de Carlos Taibo, os libertários assumem posições que, embora não necessariamente anarquistas, aderem a princípios básicos relacionados com a democracia direta, a tomada de decisões por assembleia ou a autogestão. O adjetivo anarquista, por outro lado, é utilizado para descrever a posição e o movimento que se identificam com a doutrina anarquista, entendida num sentido muito mais concreto (Repensar la anarquía, 2013).
Em inglês, a palavra libertarian (libertário) surgiu no final do século XVIII, quando William Belsham, escritor e historiador político inglês, escreveu sobre o libertarianismo no contexto da metafísica. Muitos autoproclamados libertários (ultraliberais, que doravante chamarei de libertários*) agarram-se a este fato para justificar o uso desse nome, mas a realidade é que o uso do conceito por este tipo de liberais só tem alguma continuação, e é extremamente fraco, no ambiente dos Estados Unidos da América.
A primeira vez que ele se autoproclamou anarquista foi Proudhon. Em sua obra Qu’est-ce que la propriété? (1840), em comparação com a consideração depreciativa anterior da palavra; ele identificou-o com a ideologia e o movimento que levariam ao limite as possibilidades de igualdade e liberdade abertas após a Revolução Iluminista.
Mais tarde, e num sentido político, no século XIX, a palavra libertário (do francês libertaire) foi citada por Joseph Déjacque numa carta de maio de 1857 [1] , dirigida a Proudhon. Ele usou a palavra libertário em vez da palavra liberal, porque não concordava com Proudhon, que descrevia como “meio anarquista, liberal e não libertário”. Esta afirmação de Déjacque a respeito de Proudhon deve-se ao conservadorismo e à misoginia deste último. Déjacque também foi o promotor do jornal anarquista Le Libertaire, principal nome que diferentes publicações anarquistas têm mantido.
O termo francês ganhou destaque como eufemismo para o anarquismo na década de 1890, especialmente no setor editorial, devido à aprovação da “Lois scélérates”, já que essas leis proibiam as publicações anarquistas na França. Estas leis foram adotadas na França durante a Terceira República com o objetivo de reprimir o movimento anarquista. Desde a década de 1930, em território espanhol falamos de “movimento libertário” para falar de organizações anarquistas e seus militantes.
A conexão entre anarquismo e a palavra libertário é mais do que clara. O uso da palavra libertário pelos liberais tem sido historicamente mínimo, mas os libertários* a reivindicam como sua. Como é que o conceito libertário deixou de ser um movimento anticapitalista para se tornar um defensor do mais selvagem capitalismo de mercado livre?
O termo anarcocapitalista, ou o que poderíamos considerar como direita libertária*, é um conceito posterior ao anarquismo, já que seu prefixo, “anarco”, é a apropriação da ideologia de supressão do Estado. O anarcocapitalismo quer o capitalismo extremo, sem instituições públicas ou coletivas. Na verdade, pode-se dizer que falar de anarcocapitalismo é um oxímoro, uma vez que o anarquismo é incompatível com o próprio capitalismo.
Os liberais de extrema direita, os anarcocapitalistas e os autoproclamados libertários*, assumiram o conceito de libertário desde a década de 1950. Por trás desta apropriação está a Escola Económica Austríaca da qual Murray Rothbard foi um pioneiro. Neste texto não vamos nos aprofundar na Escola Austríaca, nas brigas que ocorreram dentro dela, porque bastam para alguns capítulos, com correntes como o paleoconservadorismo, o minarquismo e tantos outros derivados. Em suma, Rothbard, na década de sessenta do século XX, aproximou-se da Nova Esquerda dos Estados Unidos num contexto de mobilizações contra a Guerra do Vietnam, de onde tirou a palavra libertário para definir o seu projeto político e social, fundando o Partido Libertário em 1971. A partir daí, primeiro nos Estados Unidos, libertário* passou a ser utilizado com o novo significado, que nada tem a ver com o original. É verdade que a palavra em inglês, libertarian, foi usada no mundo anglo-saxão no século XIX, mas ligada ao significado de anarquismo individualista.
Isso distorceu completamente o conceito de libertário. Entre os paradoxos desses libertários*, pode-se observar que muitas vezes, suas reais propostas coincidem com políticas de extrema direita, para além da retórica que utilizam em busca da liberdade. Ludwig von Mises, um liberal e pensador-chave dos libertários* atuais, por exemplo, apoiou a extrema direita devido ao risco de perder privilégios capitalistas [2]. Friedrich August von Hayek, outro pilar destes libertários*, apoiou claramente o regime de Pinochet no Chile; e a visita de Milton Friedman a este ditador é bem conhecida, embora para muitos libertários* Friedman fosse apenas um neoliberal, não suficientemente radical [3]. Por último, devemos fazer referência ao economista benicarlando Juan Ramón Rallo, que, autodefinido como um “liberal libertário* [4]”, apoiou o programa económico do partido de extrema direita Vox [5], embora mais tarde, como é habitual para ele, distanciou-se disso. A isto devemos acrescentar que, por detrás deste aumento de figuras libertárias*, muitas vezes através do financiamento por think-tanks de origem anglo-saxónica [6].
Portanto, é um erro usar a palavra libertário para definir estes ultraliberais. Se estivéssemos falando do contexto dos Estados Unidos, de qualquer forma, teríamos que usar libertarian, mas não libertário. Insisto, esses ultraliberais não são libertários. Utilizam um conceito de liberdade com o qual querem ampliar as “liberdades” de quem tem, do proprietário, dos poderosos, das classes dominantes, em detrimento da liberdade das classes oprimidas, da classe trabalhadora.
É por isso que insisto: não use a palavra libertário para se referir a esses ultraliberais. Eles estão nos antípodas daquilo que o anarquismo propõe. E, companheiros e companheiras da América Latina, não deixem que as elites econômicas dos Estados Unidos lhes imponham o que chamar a estes ultraliberais. Não vamos deixar que essas pessoas se apropriem de mais termos, porque é uma pilhagem semântica. Que no final a palavra liberdade se tornará sinônimo de que os exploradores fazem o que querem.
Às coisas pelo nome: ultraliberais, ponto final.
[1] De l’être-humain masculino e feminino. Carta para PJ Proudhon. 1857 https://fr.wikisource.org/wiki/De_l%E2%80%99%C3%8Atre-Humain_m%C3%A2le_et_femelle_-_Lettre_%C3%A0_P._J._Proudhon
[2] Von Mises, L. (1927) Liberalismo
[3] Astarita, R. 11/12/2022 Milei e os “Austriacos”, fascismo e ditaduras https://www.sinpermiso.info/textos/milei-y-los-austriacos-fascismo-y-dictaduras
[4] https://twitter.com/juanrallo/status/1245442654764236802?lang=bg
[5] Rallo, JR (4/12/2019) Vox: o melhor dos programas econômicos https://blogs.elconfidencial.com/economia/laissez-faire/2019-04-12/vox-el-mejor-de – os-programas-econômicos_1938754/
[6] Fang, L. (25/08/2017) Esfera de influência: como os libertários americanos estão reinventando a política latino-americana https://theintercept.com/2017/08/25/atlas-network-alejandro-chafuen -the- libertários-americanos-américa-latina/
Fonte: https://www.cnt-sindikatua.org/es/component/k2/anarquia-en-argentina
Tradução > Liberto
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agência de notícias anarquistas-ana
A noite flutua
e as rosas dormem mimosas
aos beijos da lua.
Humberto del Maestro
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!