[Israel] “Eu me recuso a participar de uma guerra de vingança”: carta de um objetor de consciência israelense

Tal Mitnick, de 18 anos, recusou-se a se alistar no exército israelense. A seguir, sua carta pública.

“Esta terra tem um problema: duas nações criaram um vínculo inegável. Mesmo com toda a violência do mundo, não poderíamos apagar o povo palestino ou seu vínculo com essa terra, assim como o povo judeu ou nosso vínculo com essa mesma terra não podem ser apagados. O problema aqui é uma forma de supremacia, a crença de que essa terra pertence a apenas um povo. A violência não pode resolver esse problema, seja por parte do Hamas ou por parte de Israel. Não há solução militar para um problema político. É por isso que me recuso a me alistar em um exército que acredita que o problema real pode ser ignorado, sob o pretexto de uma guerra civil, com um governo que apenas perpetua o luto e a dor.

No dia 7 de outubro, a sociedade israelense passou por um trauma sem precedentes na história do país. No decorrer de uma terrível invasão, a organização terrorista Hamas assassinou centenas de civis inocentes e sequestrou outras centenas. Famílias foram assassinadas em suas casas, jovens foram massacrados em uma rave e 240 pessoas foram sequestradas na Faixa de Gaza. Após o ataque terrorista, iniciou-se uma campanha de vingança não apenas contra o Hamas, mas contra todo o povo palestino: bombardeios indiscriminados de bairros residenciais e campos de refugiados em Gaza, total apoio militar e político à violência dos colonos na Cisjordânia e perseguição política em uma escala sem precedentes dentro de Israel. A realidade em que vivemos é violenta. De acordo com o Hamas, mas também de acordo com as FDI [Forças de Defesa de Israel] e a classe política, a violência é a única solução. Seguir a lógica do “olho por olho, dente por dente”, sem pensar em uma solução real que traga segurança e liberdade a todos nós, só leva a mais mortes e sofrimento.

A violência não nos protege

Recuso-me a acreditar que mais violência nos garantirá mais segurança, recuso-me a participar de uma guerra de vingança. Cresci em um lar onde a vida é sagrada, onde o diálogo é valorizado, onde a comunicação e o entendimento sempre vêm antes da violência. No mundo corrupto em que vivemos, a violência e a guerra são uma forma indireta de aumentar o apoio ao governo e silenciar os críticos. Devemos reconhecer que, após semanas de operações terrestres em Gaza, no final foram as negociações e um acordo que permitiram o retorno dos reféns. Que foi a ação militar que causou a morte de outras pessoas. Por causa da mentira criminosa de que “não há civis inocentes em Gaza”, até mesmo os reféns que agitavam uma bandeira branca e gritavam em hebraico foram mortos a tiros. Não consigo imaginar quantas situações semelhantes não foram investigadas porque as vítimas nasceram no lado errado da cerca.

As pessoas que disseram ‘nenhuma negociação com o Hamas’ estavam simplesmente erradas. Ponto final. A diplomacia e uma mudança de política são as únicas maneiras de evitar mais destruição e morte em ambos os lados.

A violência à qual o exército recorre, inclusive nos últimos anos, não nos protege. O ciclo de violência é de fato um ciclo: a violência do exército, como a de qualquer exército, sempre traz mais derramamento de sangue. Na prática, ele nada mais é do que um exército de ocupação que busca se manter como tal. A verdade é que ele abandonou o povo do Sul e o país como um todo. É importante fazer a distinção entre as pessoas comuns e os generais ou egoístas que estão no topo desse sistema: nenhum de nós, pessoas comuns, decidiu financiar o Hamas, nenhum de nós decidiu perpetuar a ocupação e nenhum de nós decidiu deslocar tropas para a Cisjordânia alguns dias antes da invasão, porque os colonos decidiram construir uma sukkah [local de culto judaico construído temporariamente para o feriado de Sucot] em Huwara. E agora, depois de uma política de longa duração destinada a implodir, somos nós que estamos sendo enviados para matar e ser mortos em Gaza. Não estamos sendo enviados para lutar pela paz, mas em nome da vingança. Eu havia decidido me recusar a me alistar antes da guerra, mas agora que ela começou, estou ainda mais convencido de minha decisão.

A mudança virá de nós

Antes da guerra, o exército protegia os assentamentos, mantinha o cerco assassino à Faixa de Gaza e preservava o status quo do apartheid e da supremacia judaica sobre a terra entre o rio Jordão e o mar. Desde o início da guerra, não vimos nenhum apelo por uma mudança genuína de política na Cisjordânia e em Gaza, pelo fim da opressão generalizada do povo palestino e do derramamento de sangue, ou por uma paz justa. Pelo contrário, estamos testemunhando o aumento da opressão, a disseminação do ódio e a expansão da perseguição política fascista em Israel.

A mudança não virá dos políticos corruptos daqui, nem dos líderes do Hamas, que também são corruptos. Ela virá de nós, o povo de ambas as nações. Acredito de todo o coração que o povo palestino não é um povo mau. Assim como aqui, onde a grande maioria dos israelenses quer viver uma vida boa e segura, ter um lugar onde seus filhos possam brincar depois da escola e pagar as contas no final do mês. O mesmo acontece com os palestinos. Na véspera de 7 de outubro, o apoio ao Hamas na Faixa de Gaza estava em uma baixa histórica de 26%. Desde o início da violência, esse número aumentou consideravelmente. Para que as coisas mudem, precisamos criar uma alternativa – ao Hamas e à sociedade militarista em que vivemos.

Essa mudança ocorrerá quando reconhecermos o sofrimento suportado pelo povo palestino nos últimos anos e o fato de que ele é resultado da política israelense. Esse reconhecimento deve ser acompanhado de justiça e da construção de uma infraestrutura política baseada na paz, na liberdade e na igualdade. Não quero participar da continuação dessa opressão e do derramamento de sangue. Quero trabalhar diretamente para encontrar uma solução, e é por isso que me recuso a entrar para o exército israelense. Amo este país e seu povo, pois é de onde venho. Eu me sacrifico e trabalho para que este país seja um país que respeite os outros, um país onde possamos viver com dignidade.

Tal Mitnick, 26 de dezembro de 2023.”

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O rio de verão —
Que alegria atravessá-lo
De sandálias à mão.

Buson