Breves reflexões sobre o papel de uma revista anarquista¹

Por Thiago Lemos Silva

Ao longo de minha trajetória como militante anarquista, sempre tive uma ligação muito forte com o mundo editorial. Aliás, foi justamente por meio dele que tomei contanto com o anarquismo, quando chegou até as minhas mãos um fanzine anarco-feminista que levava o sugestivo título de Barbie Destroçada. Aquele material foi um verdadeiro “balão de oxigênio”  para mim, que vivia na “atmosfera asfixiante” da Patos de Minas de do início do século XXI. O impacto que aquela experiência exerceu sobre mim foi tão profundo que de leitor passei rapidamente a editor, me unindo a um grupo de outras pessoas que havia recém-descoberto o anarquismo para criar o nosso próprio fanzine, que ganhou o nome de Eidos Info-Zine.

De lá para cá, tive a oportunidade de participar de projetos que possuíam diferentes formatos, tais como blogs, sites, jornais e revistas, que enriqueceram e ampliaram significativamente a minha visão, seja como “consumidor”, seja como “produtor” de publicações libertárias. Dentre o vasto e heterogêneo campo editorial anarquista, sempre tive uma predileção pelas revistas, ainda que comparativamente esse tenha sido o formato de publicação com o qual menos tive contato. Essa predileção se deve, em larga medida, aos meus interesses em questões de cunho reflexivo a respeito da teoria e da história do anarquismo, algo que encontra maior vazão e acolhida em uma publicação dessa natureza.

Historicamente, as revistas sempre cumpriram um papel importante para o anarquismo: a formação intelectual da militância. Seja no passado mais distante, no seu formato impresso, seja no presente mais próximo, no seu formato eletrônico, esse tipo publicação sempre almejou colocar ao alcance do público textos de maior folego teórico, abarcando gêneros tais como o artigo, o ensaio, a monografia. A partir das revistas, é que os leitores conheceram e amadureceram os pontos fundamentais da ideologia, que chegou até eles por meio da pena e do teclado de autorias como Mikhail Bakunin, Lucía Sánchez Saornil, Lorenzo Komboa, Silvia Cusicanqui, dentre tantas outras. Esses homens e essas mulheres, no entanto, nunca foram tomados como totens sagrados, que erigiram algum dogma inquestionável, foram antes, acompanhantes de viagem que ofereceram ferramentas para que a militância pudesse transformar os diferentes tempos e lugares quando e onde viveram.

Foi a partir das revistas também que a militância forjou sua sensibilidade. Junto aos artigos, ensaios, monografias e demais gêneros textuais cuja fisionomia se aparenta, esse formato de publicação também abriu espaço para outros gêneros que não podem ser tomados apenas como formas de “propaganda dirigida”. Esses gêneros contemplavam desde a poesia até o romance, passando pelo conto e a dramaturgia, publicando autorias, profissionais e amadoras, tais como Louise Michel, Neno Vasco, Pedro Cátalo, Ursula Le Guin, só para mencionar alguns nomes. Com objetivos semelhantes, porém com funções diferentes, esses gêneros sempre tiveram como finalidade mais sensibilizar do que persuadir a militância, mostrando que o processo formativo passa tanto pelo intelecto quanto pelo afeto.

Essas duas dimensões, indissociáveis uma da outra, foram traduzidas por Mercedes Comaposada há oitenta e cinco anos, mas permanece de uma atualidade tremenda: “a propaganda não consiste no falar e escrever muito, mas no falar e escrever bem e substancialmente”; pois é preferível “a propaganda parca e bem editada à descuidada e profusa”. Na visão da principal responsável pela linha editorial de Mujeres Libres, tais princípios dialogavam diretamente com a finalidade da revista que visava “educar socialmente as mulheres, mas também refinar-lhes o gosto, acostumá-las à seleção”. Não por acaso, a sentença final que encerra o seu raciocínio ganhas ares de manifesto: “que proclamemos os gozos do espírito!”²

Para finalizar, gostaria de reforçar o papel imprescindível que revistas como Redes Libertárias cumprem nos tempos que correm, dado o grau generalizado de confusão que envolve as nossas elaborações teóricas bem como as nossas realizações práticas. Em se tratando desse tema, é verdade que nossa vida nunca foi fácil, no entanto, ela se torna cada vez mais difícil na medida em que os “meios mal chamados de comunicação”³, como sabiamente captou Luce Fabbri, produzem e viralizam interpretações equivocadas, quando não deliberadamente falseadas, envolvendo o nosso campo político-ideológico. A situação é tão absurda que hoje um jovem que recorre à internet em busca da definição do que é um anarquista arrisca se deparar mais com os pensamentos de um ultra-neoliberal como Milton Friedman do que com um socialista libertário como Nestor Makhno.

Trabalhemos, portanto, para transformar radicalmente esse quadro!

[1] Versão em português de artigo originalmente publicado em espanhol no número 0 da Revista Redes Libertárias, que veio a luz em dezembro de 2023.

[2] COMAPOSADA, Mercedes. La Federacion Nacional de Mujeres Libres. Barcelona, Mar. 1938.

[3] FABBRI, Luce. Uma utopia para o século XXI. Revista Espaço Feminino. Uberlândia. 1997.

Fonte: https://redeslibertarias.com/2024/01/17/breves-re%ef%ac%82exiones-sobre-el-papel-de-una-revista-anarquista/

agência de notícias anarquistas-ana

pousada na lama,
a borboleta amarela,
com calor, se abana

Alaor Chaves