A arte e a cultura como válvula de escape para resistir à crise em Cuba

Em meio a todos os desafios enfrentados por Cuba, a arte e a cultura continuam sendo refúgios de criatividade e resiliência.

Por Livia Drusila Castro | 20/04/2024

Cuba se apaga. A bela ilha, iluminada pelo sol do Caribe, submerge em uma escuridão que vai além da ausência de eletricidade. O sonho da revolução está se dissipando como a última chama de uma vela.

As bandeiras de propaganda, emblemas do passado glorioso, agora estão desbotadas e gastas, como se o mesmo sol que as desbotou também tivesse acabado com as promessas que uma vez fizeram. Não há luz nas casas, não há comida nas lojas e as pessoas estão protestando.

Em 17 de março, as ruas de Santiago de Cuba foram inundadas por pessoas que se manifestavam contra os apagões que duravam mais de 15 horas por dia, a fome e a crise generalizada de abastecimento do país. A resposta do presidente Miguel Díaz Canel: atribuir os protestos a terroristas radicados nos Estados Unidos e aplicar uma forte repressão que deixou várias pessoas presas e algumas desaparecidas.

No entanto, em meio à escuridão, ainda há um lampejo de luz. A cultura ainda está lutando para sobreviver. Apesar das dificuldades, apesar da falta de material, apesar da falta de recursos, da inflação, dos cortes e da falta de liberdade de expressão, a arte continua viva em Cuba.

Alguns cubanos dizem que vivem “a la my love“, porque, apesar das dificuldades, tentam ver o lado positivo da vida. Daí o nome do premiado documentário Alamarilove, um filme sobre a cultura do bairro de Alamar, no leste de Havana.

Joel, protagonista da produção, conta que “todo mundo foi embora”. O regime os forçou a fugir, e agora, em Alamar, ele é o único que restou. Com 52 anos e nascido na Havana Velha, a área mais turística e bem cuidada da cidade, ele e sua família se mudaram para Alamar quando ele ainda era criança, e hoje ele ainda mora na casa onde cresceu naquele bairro.

Se você nunca o visitou, é difícil descobrir onde fica a porta de seu lar. A vegetação rasteira invadiu o pequeno caminho que leva ao seu estúdio, um cômodo baixo com pouco mais de três ou quatro metros quadrados de escuridão, sem janelas. Joel fala sobre ter ciúmes de suas coisas, mas aquele cômodo é uma armadilha para os curiosos, cheio de livros, esboços, pinturas, antiguidades, roupas, fotos e muitos papéis. Ele não pode negar que é um artista.

Ele pinta desde jovem e sua técnica se baseia no uso de materiais reciclados. Desde tábuas de madeira que ele resgatou da costa até pedaços de papel que encontrou. Mesmo quando não tinha papel, Joel pintou diretamente sobre a madeira. Ele obtém suas tintas por meio de doações de amigos e turistas que, quando o visitam, deixam-nas para que ele possa continuar criando. No passado, ele até usava pigmentos da terra, porque não havia, e ainda não há, quase nada nas lojas.

Suas pinturas, ele explica, se baseiam em suas experiências. “Pinto o que vejo na rua, é assim que vejo as pessoas”. Ele se recusa a cair no mesmo padrão que querem vender nas lojas de turismo: ele não pinta catedrais, casas cubanas ou pessoas negras dançando salsa. Melhor morrer de fome, diz ele.

O artista conta que, em algumas ocasiões, sentiu-se vigiado pela polícia e que centenas de pessoas passaram por sua casa, “desde guerrilheiros das FARC na Colômbia até membros do movimento americano Panteras Negras”. Mas ele quer ir embora, diz resignado.

A Casa Amarela: arte contestatória em tempos de crise

Uma de suas últimas exposições ocorreu na Casa Amarela. Um centro cultural localizado no Centro Habana que está em atividade há cerca de quatro anos. Juan Manuel Pérez, cinegrafista, fotógrafo e fundador dessa iniciativa, fala sobre como a pandemia abalou Cuba e afetou o movimento cultural na ilha. O nome, Casa Amarela, é uma homenagem à pintura a óleo de Vincent Van Gogh de mesmo título.

Seu projeto busca receber artistas de diferentes disciplinas e oferecer a eles um espaço no qual possam se tornar conhecidos, continuar a criar e gerar sinergias entre os diferentes membros do coletivo.

“Era por volta das 12 horas da noite quando a energia foi cortada pela última vez na Casa Amarilla”, lembra Pérez. Eles estavam no meio de um evento musical e a energia acabou. Felizmente, não foi por muito tempo e o show pôde continuar. Havana não é a cidade com mais cortes de energia, a situação é agravada nas cidades mais ao leste. Lá, muitas famílias, durante os protestos do 17M, reclamaram que a comida na geladeira estava estragando por causa dos cortes e que não podiam guardar nada na geladeira. Sem mencionar o calor de estar em casa sem poder ligar o ventilador a 40 graus.

O objetivo de Juanma Pérez com seu projeto, mais que consolidado, é criar um tipo de consciência coletiva que chame cada vez mais artistas para se reunirem em seu espaço. O centro já sediou diferentes experiências artísticas de todas as disciplinas: exposições de artistas visuais, fotografia, cineclube, dança, concertos musicais, desfiles de moda locais e oficinas para crianças. No entanto, o produtor não acha que a ideia esteja pegando. Sua percepção é que muitos dos artistas que aproveitam seu espaço não querem colaborar mais estreitamente.

Pérez acredita que a dificuldade de evolução de seu projeto se deve ao individualismo e ao ego do artista, que quer criar seu próprio projeto, e às dificuldades do país. “Se você não tem estômago cheio, fazer arte é complicado”, diz ele.

O fotógrafo é comprometido com a cultura. Desde criança, ele sabia que o cinema fazia parte dele. Há alguns meses, ele lançou o documentário Maternando en Cuba, feito em colaboração com Yindra Regueifero, atriz do grupo de teatro El Ciervo Encantado. Essa produção é baseada no testemunho de quatro mães que falam sobre suas experiências de maternidade em Cuba. Três delas dizem ter sofrido algum tipo de violência obstetrícia ou negligência durante o parto. Outra fala sobre os perigos de morar em uma casa que está inabitável desde 1964, onde até pedaços do telhado caem. Em Havana é comum encontrar escombros nas esquinas ou restos de varandas que caíram devido à falta de manutenção.

Elas falam da incerteza, da dor que sentem quando não conseguem alimentar seus filhos adequadamente, de não poder lhes dar um bom lanche ou café da manhã. Caridad, uma das mulheres, lamenta ter de dar a seus filhos um ovo cozido para comer porque não tinha mais nada. Amanda se sente impotente por causa da doutrinação nas escolas e da confusão que pode causar a uma criança o fato de lhe dizerem certas coisas que, para ela, não são verdadeiras. Um documentário que, a partir das particularidades da vida de cada mãe, explica a situação em Cuba.

Uma mistureba de disciplinas artísticas

Santa Clara é a capital da cultura cubana. A cidade tem o primeiro centro cultural LGTBIQ+ do país, o Mistureba [Mejunje]. Esse centro foi criado em 1984 e, desde então, tem se envolvido em diferentes campanhas contra a homofobia, a discriminação e a prevenção do HIV.

O espaço foi projetado para promover a arte e a cultura por meio da inclusão. Toda noite há uma atividade diferente: teatro, música ao vivo, trovadores, não importa o dia da semana. E a razão de seu nome vem do fato de que várias disciplinas artísticas são frequentemente misturadas na mesma apresentação, criando uma “mistureba”.

Por exemplo, uma noite por semana eles fazem uma apresentação que mistura teatro, música ao vivo e poesia. E os temas que eles abordam com frequência estão relacionados à colonização espanhola e ao período pós-colonial.

O criador desse centro se chama Silverio e ali todos o conhecem e o apreciam. Ele diz que o Mistureba foi um projeto espontâneo. Foi concebido para um público jovem com base no respeito à inclusão e à diversidade e gradualmente evoluiu para o que é hoje, um ícone e um exemplo a ser seguido em todo o país.

Traços Livres: um projeto comunitário que democratiza a arte

Em outras províncias, outros mais jovens que Silverio também estão lutando para manter a arte e a cultura vivas. Em Cienfuegos, o projeto sociocultural comunitário Traços Livres [Trazos Libres], criado por Santiago Hermes e Mary Cid, está comemorando seu 15º aniversário este ano. Sua sede fica no Distrito Criativo La Gloria, um lugar que se tornou o cenário de quase vinte projetos de desenvolvimento local: arte, música, dança, teatro, cursos, seminários, uma galeria multiuso…

Hermes é neto de Gumersindo Soriano, diretor do grupo Los Naranjos e precursor do estilo musical cubano em Cienfuegos, La Perla del Sur. Portanto, por herança familiar, ele tem arte em suas veias. Seu trabalho e o de sua companheira trouxeram mais de 50 fachadas de edifícios de volta à vida com diferentes murais sobre temas distintos. Uma intervenção artística que está atraindo cada vez mais pessoas. A ideia é envolver toda a vizinhança e fortalecer o senso de pertencimento entre os moradores.

Eles conseguiram colocar a arte a serviço e ao alcance das pessoas e fizeram com que caminhar por Cienfuegos se tornasse um diálogo entre o espectador, o urbanismo da cidade e as pessoas que a habitam.

Em meio a todos os desafios enfrentados por Cuba, a arte e a cultura continuam sendo refúgios de criatividade e resiliência. Apesar dos apagões e da escassez, expressões artísticas como as pinturas de Joel, os eventos da Casa Amarilla, as apresentações do Mejunje e os murais do Trazos Libres continuam a iluminar a vida cotidiana dos cubanos. Nesses espaços, válvulas de escape, a comunidade encontra descanso, uma conexão com sua identidade e uma maneira de resistir às dificuldades da vida cotidiana.

Fonte: https://www.elsaltodiario.com/cuba/arte-cultura-valvula-escape-resistir-crisis-cuba

Tradução > anarcademia

agência de notícias anarquistas-ana

Vai brotar no tempo
Tempo traz vento
Natureza canta e desencanta.

Mara Mari

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