Agência de Notícias Anarquistas - ANA
Browse: Home / 2016 / Agosto / 09 / [Chile] AFP’s, Reformas, Reformismo e Anarquismo

[Chile] AFP’s, Reformas, Reformismo e Anarquismo

By A.N.A. on 9 de Agosto de 2016

chile-afps-reformas-reformismo-e-anarquismo-1

 

No passado domingo, dia 24 de julho, uma maré humana encheu a Alameda sob uma só consigna: Não à AFP. Na capital do saque se vislumbrou tempestades anunciando um novo ciclo proletário de protestos. Já não é apenas por “educação gratuita e de qualidade”, mas pela supressão do regime das AFP, sistema de pensões herdadas do pinochetismo, e aprofundado pelos partidos da esquerda neoliberal. No diversificado  protesto, que somente em Santiago reuniu mais de trezentas mil pessoas, não faltaram colunas, grupos e individualidades anarquistas e anarcossindicalistas.

Nesse contexto, no seio do movimento anarquista surgem interessantes debates: se não queremos mais as AFP’s, que sistema de pensões sustentar? Participar e fortalecer o movimento contra as AFP’s é atentar contra os princípios anarquistas? Se tal movimento é reformista, é uma contradição que o movimento libertário dele participe?

Para abordar tais questionamentos de maneira integral, consideremos importante dialogar a partir dos matizes da terminologia vinculada. Para tal efeito, usaremos e abusaremos das palavras de Errico Malatesta e Emilio López Arango.

Para Malatesta o anarquismo sempre foi reformista. Aclara, contudo, que seria mais certeiro qualificar o anarquismo como um movimento reformador (para diferencia-lo do reformismo político vulgar). A revolução, nos explica, no sentido histórico da palavra, significa a reforma radical das instituições, executada rapidamente por meio da insurreição violenta do povo contra o arraigado poder e privilégio. Nesse sentido, o anarquismo não poderia se r outra coisa senão reformista. O anarquismo é revolucionário porque não quer apenas melhorar as instituições que existem agora, mas destruí-las completamente, abolir todas e cada forma de poder do homem sobre o homem e todo o parasitismo, de todo tipo, sobre o trabalho humano. Todavia a revolução não pode ocorrer a pedido. Devemos, então, permanecer como espectadores passivos, esperando que o melhor momento se apresente?

Tudo na história como na natureza ocorre gradualmente. Quando uma represa arrebenta é porque ou a pressão da água cresceu em demasia para que a represa a contenha, ou pela desintegração gradual das moléculas do material de que é feita a represa. De igual modo, as revoluções estalam mediante crescente pressão das forças que buscam a mudança social, e esse ponto se alcança quando o governo existente pode ser derrocado e quando por processos de pressão interna das forças do conservadorismo se debilitam progressivamente.

Mas nunca iremos reconhecer – e é aqui aonde nosso “reformismo” difere daquele tipo de “revolucionismo” que termina surgindo das urnas de votação – as instituições existentes. Haveremos de levar a cabo todas as reformas possíveis no mesmo espírito em que um exército avança sempre arrebatando em seu caminho o território ocupado pelo inimigo. E sempre haveremos de permanecer hostis a todo governo – seja o monarquista de hoje ou o republicano ou bolchevique de amanhã [1].

Com os parágrafos anteriores podemos reforçar a diferença entre o caráter reformador do anarquismo e do reformismo vulgar do parlamentarismo democrático-representativo. Mais que reformista ou propiciador do reformismo, o anarquismo é, para o anarquista italiano, reformador em um sentido revolucionário e libertário. Tal direção anárquica não significa, em embargo, o triunfo garantido do movimento. Em efeito, quando as classes oprimidas formam movimentos de ação direta por uma conquista determinada , ante o temor de que tal investida se transforme em um movimento que venha a destruir a base da sociedade burguesa, ou pelas mesmas necessidades de desenvolvimento do capitalismo, tais demandas usualmente são expressas pelos códigos das instituições burguesas. A maioria das vezes atendendo aos interesses da classe dominante.

No entanto, exigir e construir as bases necessárias para erigir tais conquistas não é em si mesmo reformismo ou revolucionário. Será um ou outro segundo o meio/formas que se empreguem para se aplicar à demanda. Se se protesta mediante métodos proletários libertários (ação direta, protestos, assembleias, anarcossindicalismo) pelo acesso à saúde ou pelo fim das AFP’s, não será necessariamente reformismo. Se o fazemos apresentando-nos como parte de uma candidatura para alcançar tal medida, desde as alturas do poder, será reformismo.

Complexando tais distinções práticas e terminológicas, Emilio López Arango, nos coloca um necessário exercício crítico do reformismo. Para o histórico militante da FORA, o reformismo não se expressa unicamente nas mudanças que sofre a estrutura jurídica do Estado, mas na transferência da riqueza e dos privilégios detidos por uma minoria. Os senhores feudais e a nobreza proletária se viram obrigados a dar espaço em sua mesa para a classe burguesa, dona do poder político. A revolução do século XVIII deu um golpe de morte no feudalismo. Mas o problema social ficou de pé ; com essa transferência de poderes e títulos de propriedade. Poderia o proletariado, mediante um ato de força que lhe deu a máquina capitalista, eliminar de um só golpe todas as diferenças de classe e de casta? Não seria mais provável que, aplicando o método histórico dos marxistas, se criaria em seus seios novos privilegiados e novos governantes, que seriam necessariamente os chefes políticos e os funcionários sindicais? [2]. Assim, o reformismo não apenas se expressa na política proletária ou da socialdemocracia, mas também nos setores que propõe a ditadura do proletariado. O reformismo não está no fato natural de que os obreiros reclamem melhoras econômicas, mas na subordinação da ideologia socialista aut oritária a um programa que tende a perpetuar o regime do salariado [3].

Ademais, das táticas socialistas democráticas dos marxistas ditatoriais, para López Arango, o reformismo também se expressa nos setores sindicalistas apolíticos ou nos companheiros que advogam práticas “livres de dogmatismos”. Tais posturas, ao rechaçar todo compromisso com um “dogma”, deixam sentado o conceito fatalista do marxismo, pois confiam ao desenvolvimento industrial das nações e a prevalência cada vez mais absorvente do capitalismo a tarefa de criar nos povos e nos indivíduos as aptidões necessárias para preparar e realizar a revolução [4]. Tal atitude dos sindicalistas apo líticos e dos companheiros que se deixam levar pelos movimentos sem uma análise teórica anarquista das condições existentes, podem ser arrastados com maior facilidade para o espectro da ideologia dominante. Se na autogestão obreira não se incorpora integralmente o anarquismo – nos adverte Murray Bookchin – a gestão acaba por prevalecer sobre a auto (de si, para si); a administração tente a assumir o controle sobre a autonomia do indivíduo. Graças à influência exercida pelos valores tecnocráticos sobre o pensamento do homem, a individualidade – que reveste uma importância fundamental na concepção libertária de organização, de vida em todos seus aspectos – tende a ser substituída com um jogo sutil, porém inexorável, pelas virtudes de eficazes estratégias administrativas. Como consequência, se vai promovendo a autogestão não com a finalidade libertária, mas com metas funcionais, e isso ocorre incluso entre os sindicalistas mais comprometidos [5].

Retornando à López Arango, cabe destacar que este considera que seria um grande erro sustentar que todas as conquistas do proletariado são estéreis e que nada representam na marca do progresso. Acaso é o mesmo – questiona o autor – trabalhar dez ou doze horas que limitar a jornada a seis ou oito horas de trabalho? (…) Rechaçar esse positivo melhoramento nas condições materiais do salariado com o argumento de que perdura o sistema capitalista mesmo que a jornada de trabalho caía para quatro ou duas horas, supõe defender a teoria da miséria como fator da revolução. De outro lado, é possível evitar o esforço que reclama a luta cotidiana contra a exploração capitalista, conservando todas as energias para dar o golpe de misericórdia ao capitalismo quando se esgote a paciência dos trabalhadores? Pode-se acumular em alguma parte a energia que se perde a espera do grande acontecimento? Ou será que a inércia constitui um caudal de forças ignoradas que se concentram em algum ponto da terra e que explodem a mágica conjuração de um gênio desconhecido pelos homens?

A realidade nos demonstra que toda conquista fundamental está condicionada por conquistas parciais. Não de pode chegar a revolução social dando um salto ao infinito sem partir de um dado ponto e seguir uma determinada trajetória de esforços e realizações. Um programa totalmente anarquista, que não extrai nenhuma experiência do presente, que não se manifesta em nenhum propósito atual, termina sendo uma negação, ao passo que defender a tese empírica do “tudo ou nada” equivale a negar a possibilidade de que os trabalhadores realizem por si mesmos sua emancipação econômica e soci al [6].

Notas:

1 – Errico Malatesta: Anarquismo e Reformas, Tradução para o castelhano por: @rebeldealegre

2 – A oposição ao marxismo no movimento obreiro – Emilio López Arango

3 – O valor das conquistas imediatas – Emilio López Arango

4 – Emilio López Arango: Reformismo apolítico (1924)

5 – A autogestão, quando não existem indivíduos capazes de se gerirem autonomamente, corre o risco de se transformar em qualquer coisa que seja exatamente seu oposto: uma hierarquia baseada na obediência e no mando. A abolição das classes não compromete minimamente a existência dessas relações hierárquicas. Estas podem subsistir no interior da família, entre os sexos e entre os diferentes grupos de idade, bem como entre grupos étnicos e no interior dos organismos burocráticos, o mesmo que nos grupos sociais administrativos que pretendem realizar a política de uma organização ou de uma sociedade libertária. (Autogestão e novas tecnologias: a imaginação contra a máquina – Murray Bookchin)

6 – O valor das conquistas imediatas – Emilio López Arango

Fonte: http://noticiasyanarquia.blogspot.com.br/2016/07/afps-reformas-reformismo-y-anarquismo_26.html

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

Tangerina cai
e a casca ferida exala
gemidos de dor.

José N. Reis

Compartilhe:

Posted in América Latina, Arte, Cultura e Literatura, Economia, Educação, Geral, Movimentos Políticos & Sociais | Tagged Chile

« Previous Next »

Sobre

Este espaço tem como objetivo divulgar informações do universo anarquista. Notícias, textos, chamadas, agendas…

Assine

Leia a A.N.A. através do feed RSS ou solicite as notícias por correio eletrônico através do endereço a_n_a[arroba]riseup.net.

O blog também possui sua versão Mastodon.

Participe

Envie notícias, textos, convocatórias, fotos, ilustrações… e colabore conosco traduzindo notícias para o português. a_n_a[arroba]riseup.net

Categorias

  • América Latina
  • Arte, Cultura e Literatura
  • Brasil
  • Discriminação
  • Economia
  • Educação
  • Espaços Autônomos
  • Espanha
  • Esportes
  • Geral
  • Grécia
  • Guerra e Militarismo
  • Meio Ambiente
  • Mídia
  • Mobilidade Urbana
  • Movimentos Políticos & Sociais
  • Mundo
  • Opinião
  • Portugal
  • Postagens Recentes
  • Religião
  • Repressão
  • Sexualidades
  • Tecnologia

Comentários recentes

  1. Raiano em [Espanha] Encontro do Livro Anarquista de Salamanca, 8 e 9 de agosto de 202526 de Junho de 2025

    Obrigado pela traduçao

  2. moésio R. em Mais de 60 caciques do Oiapoque repudiam exploração de petróleo na Foz do Amazonas9 de Junho de 2025

    Oiapoque/AP, 28 de maio de 2025. De Conselho de Caciques dos Povos Indígenas de Oiapoque – CCPIO CARTA DE REPÚDIO…

  3. Álvaro em Mais de 60 caciques do Oiapoque repudiam exploração de petróleo na Foz do Amazonas7 de Junho de 2025

    A carta não ta disponível

  4. Lila em “Para os anarquistas, é a prática que organiza a teoria.”4 de Junho de 2025

    UM ÓTIMO TEXTO!

  5. Lila em [Espanha] IX Aniversário do Ateneu Llibertari de Gràcia4 de Junho de 2025

    COMO FAZ FALTA ESSE TIPO DE ESPAÇO NO BRASIL. O MAIS PRÓXIMO É O CCS DE SP!

Copyleft © 2025 Agência de Notícias Anarquistas - ANA. RSS: Notícias, Comentários