Uma conversa com a ativista, que a partir do feminismo se converteu em uma figura notável das lutas sociais bolivianas.
Por Gisela Kozak Rovero | 21/04/2021
A feminista María Galindo (1964) é uma figura notável das lutas sociais bolivianas. É fundadora do coletivo Mujeres Creando, em funcionamento desde 1992, e cultiva a performance, o ativismo de base, o documentário e a rádio. Entre seus livros, se destacam Nenhuma mulher nasce para puta (2007), em coautoria com a argentina Sonia Sánchez, e Não há liberdade política sem liberdade sexual (2017). Atualmente desenvolve um projeto audiovisual sobre as múltiplas arestas da prostituição, cujo sonoro nome é “revolução puta”.
Graduada em psicologia e comunicadora de ofício, Galindo é uma feminista oposta à economia de mercado global e à democracia liberal, uma ativista utópica que propõe a reinvenção radical do mundo. Com elegância, foge às questões típicas do século XX, ao estilo de sim, a propriedade privada dos meios de produção tem que acabar, mas também questões instigantes do século XXI, relativas ao politicamente correto, vigilância da arte, literatura, cultura e pensamento vistos somente em termos de memorial de queixas. O avanço registrado pelas mulheres desde o século XIX até agora lhe parece uma concessão não comparável com as condições das europeias ou indígenas antes da modernidade, ainda que reconheça, por exemplo, que o voto e a educação pública, gratuita e autônoma deram voz e presença às descendentes de mulheres pobres bolivianas. Não concede maior relevância aos índices de equidade de gênero que demonstram que existem diferenças substantivas entre uma mulher pobre da Venezuela e seu par na Alemanha, mas aceita que tais diferenças existem. Em todo caso, sublinha, o capitalismo neoliberal é único e funciona igual em todos os países; por exemplo. Nem Angela Merkel pode se opor ao poder farmacêutico transnacional. Tampouco reconhece diferenças relevantes entre as condições da população LGBTQ* em países como Rússia ou Irã e as condições de seus pares nas democracias liberais.
María Galindo é uma rebelde absolutamente moderna, com uma personalidade e inteligência fora de série, concebíveis dentro de uma tradição de liberdades individuais, mas que somente vê sentido a sua luta desde posturas que derrubam o indivíduo para compreendê-lo como um sujeito de comunidade. Se confessa insubornável e responsável das consequências de seu exercício político inclassificável, as quais enfrenta sem queixas. Seu verbo é preciso e poético, incendiário e empático.
A obediência nos torna felizes ou nos torna livres?
Ambas as coisas. Na Bolívia a luta social se legitima desde a glorificação da dor, da morte, da imolação, pois deste modo adquire respeito, sentido e reconhecimento. Proponho uma contracorrente poética que assuma a luta a partir da alegria, que seja um lugar para ficar, uma ação infinita que inclua prazer e felicidade. No movimento Mujeres Creando fazemos um culto ao desfrute, e da felicidade uma palavra volúvel que adquire novos sentidos, em oposição a um feminismo necrófilo e “comemortas”, incapaz de celebrar a vida das assassinadas no lugar de sublinhar o que Rita Segato chama de espetáculo patriarcal de sua morte violenta, um espetáculo sem dúvida moralizante. Nós insistimos em falar não do dia após, mas no dia anterior de seu fim. O que estavam fazendo, planejando uma festa, um divórcio, terminando uma relação, trabalhando? Devemos nos opor à patrimonialização, uma prática que exalta o heroísmo e o martírio, muito própria da América Latina, ao que eu chamo de continente sem nome. Não patrimonializemos nossas mortas, reivindiquemos a esperança e a vida das vivas enquanto seguimos em nosso empenho de impedir os feminicídios e que se faça justiça.
Você é muito crítica com as convencionalmente chamadas ciências sociais e as humanidades, apesar do auge de correntes de esquerda como a teoria decolonial, os estudos culturais, os diversos feminismos críticos com a tradição ilustrada e, inclusive, a teoria queer. Quais são as suas diferenças com a academia?
Antes de tudo, o monopólio da produção de conhecimento que a academia pretende exercer sobre o conjunto da sociedade, o qual contradiz outras formas de tal produção fundantes e imprescindíveis para nos compreender, como a que se constrói a partir da luta. Se impõe a ideia de que as universidades criam a teoria e de que o ativismo, o lugar da prática, deve se nutrir da teoria surgida nas instituições acadêmicas. Em Mujeres Creando estamos gerando conhecimento permanentemente, de fato, recebemos doutorandos e terminamos por monetizar nossas entrevistas com estes e estas como uma forma de enfrentar o simples extrativismo epistemológico. Me refiro a uma prática na qual a academia, como instituição legitimada pela sociedade, submete a um processo de tradução a seus próprios termos os movimentos sociais mais diversos e, em especial, às comunidades indígenas. Sem dúvida, reconheço o valor da universidade pública e gratuita como conquista do movimento operário da primeira metade do século XX, quando os estudantes me ligam – na Bolívia, o co-governo entre estudantes e professores está arraigado – sempre atendo. Além disso, tenho sido professora universitária eventualmente, mas tenho ficado muito incômoda, na realidade, me dedico a uma série de ofícios para ocupar um lugar que não tem nome.
Sujeito do feminismo para María Galindo: “aliança insólita e proibida entre mulheres”. São índias, putas e lésbicas? Não se trata de um sujeito muito limitado a um tipo de mulher? O que opina dos consensos e qual é o limite? Em sua experiência como ativista de base, não teve que negociar com lideranças evangélicas?
Sobre a aliança insólita e proibida entre mulheres se trata de uma definição poética e metafórica para questionar a construção de movimentos identitários. As identidades respondem a um paradigma neoliberal que fragmenta a compreensão das lutas sociais e esquece a interconexão vital entre estas. Trata-se de discursos fragmentários em função de identidades fragmentárias que se convertem em clientes do sistema, do Estado ou das instituições privadas. É uma simplificação absoluta pensar que uma indígena é igual a outra indígena, que as mulheres são iguais entre si ou que as trans igualmente o são. Sou lésbica, e lógico que passei pelo movimento identitário, mas é necessário transcender este marco. Quanto ao tema dos consensos, é necessário trabalhar constantemente com alianças éticas, não ideológicas. Por exemplo, quando se faz o ativismo a favor da legalização do aborto, o único limite para estabelecer consensos é coincidir neste objetivo. Assim funciona a respeito do antirracismo, a tríade trabalho manual-intelectual-criativo, a exigência da prestação de contas, a proibição da transfobia ou a defesa de um parque nacional. Não temos que pensar da mesma forma, no caso específico do feminismo, ou as diferenças são inevitáveis ou desejáveis. Devemos fazer um espaço comum de alianças insólitas. O limite de tais alianças é um limite prático não pré-determinado, não está escrito na Bíblia nem em uma espécie de Decálogo, como Os dez mandamentos. O limite do consenso é imposto pela prática, além do mais, o consenso – a ideia de que todos e todas tenhamos que chegar a um acordo – não constitui o único instrumento para construir, atuar e se mover.
Qual é a sua visão sobre os governos de esquerda, entre eles o de Evo Morales na Bolívia?
Enfrentei durante o governo de Evo Morales três processos judiciais, dos quais saí livre. Enfrentei, igualmente, ao interinato de Jeanine Añez, enquanto Evo Moralez e seus colaboradores próximos saíram fugidos da Bolívia. Evo foi prisioneiro dos limites que lhe impuseram os militares e a polícia. No geral, os governos de esquerda também têm sido cúmplices do capitalismo global extrativista, ecocida, patriarcal e colonizador, incapazes de transcender as dinâmicas de poder próprias do Estado nacional e do capitalismo neoliberal global. No caso do governo de Nicolás Maduro, trata-se de uma narco-oligarquia demagógica, e é terrível que a resposta diante da migração venezuelana seja a xenofobia generalizada na América do Sul, comparável com a existente na Europa a respeito de refugiados e migrantes em geral. Cuba trata-se de um regime socialista proxeneta – tema ao qual me referi, junto a Sonia Sánchez, em Nenhuma mulher nasce puta – com fontes de divisas tão questionáveis como o turismo sexual. É incrível que a Federação de Mulheres Cubanas negue, me atrevo a dizer que neuroticamente, esta realidade.
Você tem sido muito dura com seus possíveis aliados de esquerda na Bolívia. Para mostrar, sua conversação com Alvaro García Linhera quando era vice-presidente da Bolívia, publicada em Não há liberdade política se não há liberdade sexual.
Sim, todos os dias me pedem que eu perca aliados em altas esferas do poder, mas no meu celular tenho os números de muitos funcionários do governo de Morales e de Arce, não sou ortodoxa e estou sempre aberta à política como luta infinita e cotidiana, por que aconteceu me relacionar com fiscais, juízes, policiais. O ponto é que não me interessam as relações de clientelismo, estou consciente de que há gente que precisa receber uma cesta de comida para sobreviver, mas não devem se submeter a nenhum governo ou instituição por uma razão como esta. Reivindiquei a Alvaro García Linhera sua conformidade com uma ficção de poder absolutamente incapaz de propiciar as mudanças necessárias para o país. Vivem para as pesquisas e a popularidade, não para fazer política de verdade.
Você se referiu em seus livros e declarações sobre a existência de um bloco popular conservador na Bolívia e, desde então, em outros países da América Latina. Muito pouca gente se atreveria a dizer algo assim, mas na realidade descreve uma situação de amplas camadas dos setores populares que podem ser qualificados como homofóbicos e antifeministas e tem expressões organizadas, por exemplo, ao redor das igrejas evangélicas pentecostais.
É preciso uma renovação do léxico com o qual falamos sobre o movimento popular, já que está sacralizado e, portanto, não é suscetível de crítica. Você pode criticar um governo, mas não pode criticar um movimento de mulheres camponesas. Temos que nos questionar e uma prova do que eu digo é a vitória de Jair Bolsonaro no Brasil, com uma ampla base de apoio religioso. Também aconteceu no Equador com Lenín Moreno, e mais, durante o governo de Evo Morales se deu uma personificação jurídica a uma quantidade importante de denominações cristãs fundamentalistas. Em minha opinião trata-se de uma guerra ideológica equivalente à segunda extirpação de idolatrias.
Diante do autoritarismo no auge que significam os fundamentalismos, por não falar das direitas e esquerdas que se definem pela aniquilação real ou simbólica do adversário (o inimigo, para ser exata), não seria necessário defender conquistas da democracia liberal como o pluralismo político e os direitos humanos, avanços sociais como a educação e a saúde públicas? A esquerda tem produzido monstruosidades como o stalinismo ou a revolução bolivariana, cuja atitude anti-ilustrada, que despreza o conhecimento, a ciência, a tecnologia, devastou a Venezuela.
Não aceito que as alternativas sejam a democracia liberal ou o mundo que você descreve. As conquistas da democracia liberal se circunscrevem a uma minoria do mundo. Quanto aos termos como esquerda e direita ou conservador e progressista, são insuficientes, uma simplificação que não nos serve mais. Sob a aparente dicotomia esquerda e direita só se esconde uma mesma lógica em relação com o que chamamos “natureza” e com respeito às mulheres. Os feminismos, ecologismos e povos indígenas são o que representam os alvoreceres das novas bases para a compreensão deste mundo. Eu não falo de esquerda e direita, mas de descolonização e despatriarcalização, termo usado pelo governo da Bolívia, mas que eu formulei. Proponho a desestruturação da família heterossexual branca de classe média, que é o modelo ao qual todos devemos nos submeter, também a divisão do trabalho e do binarismo sexual.
Sou uma lésbica casada e monogâmica. Por que você é tão dura com quem escolhe esta opção?
Lamento se das minhas declarações ou livros se puderam deduzir algo assim. Não se deve impor nenhum modelo de convivência, como ocorre com a família heterossexual, um dispositivo de colonização perfeito que separa as mulheres e reduz os horizontes ao bem-estar de seu entorno mais imediato. Devemos ir além. Reivindico as soberanias do corpo, nos atrever a nos enganar, entender que o Estado nacional está chegando a sua crise. Proponho falar e escrever sobre outros horizontes, sobre geografias em lugar de nações: a andina, a caribenha, a amazônica. É hora de abandonar a submissão a genealogias históricas e epistêmicas euro centradas – feminismo da primeira, segunda e terceira onda, por exemplo – para buscar saberes e genealogias alternativas ao socialismo e ao liberalismo, de origem ilustrada, que nos libertem de um futuro onde se vislumbre um mundo arrasado pelo ecocídio capitalista. Não tenho as respostas de como construir um mundo não racista nem classista, liberado da homofobia e da transfobia, que acolha como iguais aos animais e as plantas. Não as tenho porque temos que construí-las.
Tradução > Caninana
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