[França] Carta para Ghouta

Houve uma revolução na Síria, é essa a evidência que toda a geopolítica de café, todas as conspirações imundas de teclado negam há anos. Esta covardia de tasca que se espalha sem dificuldades desde o topo do Estado até ao coração de uma certa extrema-esquerda, não será mais esquecida do que a dignidade dos habitantes de Ghouta insurgente.

Querida Ghouta,

Escrevo-te com o coração cheio de vergonha. A vergonha de pertencer a duas comunidades, covardes ou cegas, que te abandonaram.

Para começar, faço parte deste país que se chama França. Este país que se quer aquele dos direitos do Homem e da fraternidade. Este país que tem uma história em comum com a tua e da qual te conseguiste libertar pela força. Portanto, um país que te conhece bem. No entanto, em 2008, este país convidou o teu tirano Bachar ao seu desfile do 14 de Julho. Este mesmo Bachar que, um ano depois, armou os seus aeroportos com armas químicas prevendo a tua rebelião. A França também é um país de tradições. A prova é que já abrigava – e ainda abriga – o tio criminoso contra a Humanidade, Rifaat al-Assad, o açougueiro da prisão de Palmyra e autor do massacre de Hama. Lembras-te, este massacre ocorreu em 1982. Quatro anos depois, o presidente francês entregava-lhe a Legião de Honra por “serviço prestado à nação”.

Deste país que é meu, esperava que te ajudasse, quando te revoltaste. Porque de agora em diante, já não podemos fingir que não conhecemos o verdadeiro rosto de Bashar al-Assad. Sublevaste-te, querida Ghouta, pela tua liberdade, pela tua dignidade, e, agora, estás em pé, depois de 40 anos de submissão aos Assad. Foste maltratada, torturada, espancada, gaseada, bombardeada, estuprada e esfolada pelo regime, mesmo assim, aguentaste-te e ficaste em pé. Com o sabor da liberdade na boca, já não te podias sujeitar ao tirano. Porque não se regressa dessas coisas. E doravante para ti, era a liberdade ou a morte. E estávamos tão orgulhosos! Ghouta livre, Ghouta digna, Ghouta em pé! E vivemos contigo a esperança de te ver finalmente livre do açougueiro de Damasco e seus shabihas. Não precisavas de ninguém para te reconstruíres e repuxar a barbárie. Mas o regime atacou com força, e quando a nuvem de gás sarin te atingiu no verão de 2013, choramos contigo. Essas imagens de ti, das tuas crianças agonizantes, convulsionadas, sufocando rasgaram lágrimas nos nossos corações. A nossa raiva era ilimitada e Bachar acabara de cruzar a linha vermelha. Então esperaste. Depois de contares as tuas 1300 mortes, refugiaste-te nos edifícios e esperaste que chegássemos. Nós, que prometemos intervir se Bachar fosse longe demais. Pensavas: “Os franceses vão chegar!”. Esperaste vezes sem conta. E nunca chegamos. Esperávamos poder alcançar-te para te tirar das garras do carrasco, mas não o fizemos. E odiamo-nos por isso. Odiamos todos os que tornaram possível essa traição. Com um nó na garganta não conseguíamos aceitar que fosses abandonada ao teu destino. Com um nó no estômago e raiva no corpo, levantaste-te e continuaste a lutar e organizaste-te para viver apesar do estado de sítio permanente. Do nosso lado, continuamos a defender-te aqui em casa.

Mas o campo político ao qual pertenço não conseguiu se destacar na ocasião. Este campo, que defende os valores da igualdade, da liberdade dos povos, da autodeterminação, da democracia, este campo não soube ver em ti a encarnação de todas as ideias que defendia. Aquele que não te conhece, apenas vê as bandeiras, os símbolos e as palavras. Não percebe que o teu léxico não é o mesmo que o nosso, mas que o teu coração e as tuas ideias são-nos comuns. Não percebe que estás apaixonada pela liberdade e que tudo o que queres é viver com dignidade. Esta esquerda que não te conhece, assustou-se e virou-te as costas. Comparou-te àqueles contra os quais lutaste e expulsaste: os membros do Estado Islâmico. Ultrajou-te, ignorou-te e sujou-te. Quando a tua irmã Alepo caiu, uma certa esquerda até ironizou sobre o seu destino. No entanto, esta esquerda hipócrita apaixonada por si mesma, de que mais precisa? Esta esquerda que tem constantemente a revolução na ponta da língua, não viu que havia uma revolução popular autogerida, muito real, debaixo dos seus olhos, o teu único erro foi ignorar o campo lexical dela? E, no entanto, não havia nada mais libertário que os teus comitês locais, os teus tansiqiyya al-malhalliyya, que a autogestão de todas as tuas infra-estruturas, que os teus civis organizados perante a escassez, que as tuas associações de mulheres para se ocupar dos órfãos, que as tuas escolas finalmente livres de escrever os seus próprios programas, que as tuas liwa e katiba que libertam as tuas aldeias e cidades de Al-Nusra e Daesh à patada? Mas não. Essa esquerda, esconde-se por detrás do anti-imperialismo e da Realpolitik. O seu anti-atlantismo primário e idiota, este anti-imperialismo dos idiotas úteis ou consciente do cúmplice Putin, é apenas a marca de uma tomada de posição estúpida e viscosa, esquecendo que um povo que se levanta contra o seu tirano não conhece outra posição do que aquela da dignidade e não faz caso das ninharias dos poderosos. A Realpolitik desta esquerda e o seu inimigo de direita é apenas um péssimo álibi para o crime que cometeu, não só ao abandonar-te ao teu destino, mas também ao mostrar uma complacência hedionda com os aliados do teu carrasco. Como pode ser tão insensível ao ponto de deixar morrer a tua revolução nessas condições atrozes quando, ao mesmo tempo, elogia um partido que conheces, oriundo da tradição estalinista e de que conservou todos os reflexos? E, enquanto essa esquerda vocifera contra ti, tu que, no entanto, conseguiste o que a esquerda sempre sonhou, o nosso presidente brinca com os lápis de cor que roubou ao Obama. Diverte-se a traçar linhas imaginárias de todas as cores e a fazer grandes declarações absurdas e desprovidas de sentido. Traça linhas vermelhas com o teu sangue derramado todos os dias, mas que ignora desde que permaneça devido às balas, barris, tortura e fome. O gás, muito querida Ghouta… Ele espera o gás! Mas como deves-te rir dessa falsa promessa, tu que esperaste em vão quando o sarin devastou as tuas aldeias, sufocou as tuas crianças! Quando choraste por Zamalka e os seus habitantes… Mas este Macron, ele, o “intratável” sapo que quer ser tão grande quanto o boi, não defende o internacionalismo, a revolução popular e a autogestão. Pensando bem, isto é uma meia verdade. Mas espero que a posteridade condene fortemente a mediocridade de uma certa esquerda francesa e europeia de que tenho uma terrível vergonha por tanto mentir aos outros e a si mesma.

Enquanto agonizas sob as bombas, preparamo-nos a comemorar os 7 anos de tua revolução. Sete anos atrás, apenas algumas pessoas loucas saíram à rua para protestar em silêncio, de velas nas mãos, numa praça damascena em apoio às primaveras árabes. Sete anos depois, a tua Síria está devastada. E em breve virá o mês de Março. Celebraremos os 7 anos da tortura das crianças de Deraa e as primeiras fossas comuns da revolução. Enfim, Assad, ele, irá festeja-lhos. Na sua montanha de cadáveres. 500 mil mortes. Absurdo. Levantaste-te contra a tirania pela liberdade e a dignidade, tornando-te um exemplo para o mundo inteiro. Tristemente, nem todo o mundo estava preparado para este exemplo.

Hoje, estás sozinha sob as bombas. Mas não totalmente. Estamos aqui. Nós, os poucos que continuamos a esperar a tua vitória. Estamos dispersos, mas estamos aqui. Seguimos a tua vida diária de perto. Escutamos-te, observamos-te. Nos teus vídeos, querida Ghouta, vemos as tuas mulheres, homens e crianças que emergem dos escombros depois de um bombardeio. As ruínas, o grito das mães, as lágrimas das crianças, a ânsia dos socorristas que os levam para o hospital em breve por sua vez bombardeado. Temos medo contigo, choramos contigo, gritamos de raiva contigo. Não desviamos o olhar, é o que nos resta, é apenas o que temos. Ficaremos em pé erguidos contigo. Até ao fim, onde quer que vás. Perseguiremos Bachar até a morte para que um dia, ele pague pelo que fez a Khan Cheikhun, Aleppo, Daraya, Homs, Deraa, Idleb, Zabadani, Raqqa e a todas as outras. Desde 2011, recolhemos provas de sua barbaridade para que um dia ele possa ser condenado. Escrevemos livros para que a tua luta sobreviva às bombas e aos gases e que os sírios possam continuar orgulhosos do que fizeste e que ninguém possa esquecer. Ghouta magoada, Ghouta gaseada, Ghouta bombardeada, Ghouta de luto. Mas Ghouta rebelde, digna, livre e em pé! Tu, Ghouta, que não te vergas e que sabes que, de qualquer maneira, não tens hipótese de sobreviver a uma rendição. Porque o “Regime” não perdoa. Ele tortura, executa, massacra. Talvez desapareças. Essas pessoas, esses rostos nesses vídeos, em breve, talvez já não sejam. Bombardeadas, gaseadas ou degoladas, afinal, qual a diferença? Felizes são os mortos porque já não sofrem. E se isso acontecer, teremos que viver com tudo isso. Assim como todos os espectadores silenciosos que se tranquilizam com “isso é complicado” e “não podemos fazer nada”, mas logo dirão entre o queijo e a sobremesa, que tudo isso era terrível e que Bachar é um ser odioso. Veremos Assad viver, ele, sim. Pavonear-se, regozijar-se, de braço dado com Putin, com Khamenei nas sombras, e o Hezbollah como guarda-costas. É possível desviar o olhar de ti sem se odiar? Porque nos proteger das imagens que nos envias se não somos melhores que as linhas de cor que se movem com os ventos?

Caros sírios, queridos habitantes de Ghouta, Idleb e Afrin, vemos vos combater e morrer, mas não vamos desviar o olhar. Honrar-vos-emos até ao fim e comemoraremos a vossa coragem e dignidade. Não esqueceremos e não vamos perdoar. Isto não vos trará reconforto nem sobrevivência. Mas isto impedir-nos-á de nos odiar e de compartilhar a indiferença dos cínicos e dos bastardos. Sois o orgulho dos homens e das mulheres que lutam pela liberdade e dignidade. Sois as nossas consciências feridas, mas uma coisa é certa: só queremos um futuro convosco, apenas convosco.

Houria Ghouta. Houria Souria.

Sarah Kilani, 21 de Fevereiro de 2018

Fonte: https://lundi.am/Lettre-a-la-Ghouta

Tradução > Gisandra Oliveira

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