Cassiana: “Experimentar o teatro, experimentar o anarquismo. Mexer e remexer. E ver no que dá.”

Teatro e anarquismo realizado na Ilha de Florianópolis (SC)

por Ominha e Flávio Solomon | 23/11/2018

Anarquismo e teatro são formas de resistência contra o Estado terrorista. Cassiana dos Reis Lopes desenvolve um trabalho sobre o tema. Conheça um pouco mais deste seu trabalho na entrevista a seguir.

Pergunta > No momento, você realiza uma pesquisa de doutorado em teatro na UDESC, campus Florianópolis. Qual é o tema da sua pesquisa? Quais são as possíveis relações da sua pesquisa com o anarquismo?

Resposta < Em minha pesquisa busco procedimentos e maneiras na arte/teatro de resistir ao terrorismo de Estado. Por estar ainda no início do doutorado, não tenho muitas respostas, mas sim uma efervescência de perguntas. O anarquismo atravessa a pesquisa no sentido da crítica ao que acredito ser a raiz do problema do terrorismo de Estado, o próprio Estado, e nas práticas de resistência e sobrevivência que o anarquismo vivenciou e vivencia em tempos e contextos de totalitarismo, a questão é como trazer isso para a arte.

Pergunta > Neste semestre, você ofereceu um curso livre e completamente gratuito com o título “Teatro e Anarquismo: princípios e provocações cênicas”. Quais eram os objetivos do curso? Quais pessoas envolveram-se?

Resposta <Ofertar um curso livre é uma possibilidade de estágio docência da pós-graduação sugerida pelo CEART (Centro de Artes) na UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina). Vi que essa seria uma ótima oportunidade de desenvolver minha pesquisa compartilhando minhas questões.

No início do curso fui bem explícita dizendo que eu não tinha um objetivo fixo, traçado, uma conclusão pronta para as relações entre teatro e anarquismo, pois minhas pesquisas anteriores não abrangiam esse tema, tinham mais relação com arte de intervenção (ou arte-ação) na rua. Por isso a importância das pessoas que estavam ali para fomentar a discussão, para tentar colocar em prática algumas ideias, para pensarmos juntos.

Por ser ministrado na UDESC, no Centro de Artes, eu havia planejado um curso voltado a pessoas que tinham bastante proximidade com a arte, mas o que percebi depois, e tive que fazer algumas adaptações, foi que em sua grande maioria eram alunos da UFSC que já tinham alguma relação com militância estudantil e/ou curiosidade sobre o anarquismo.

Pergunta > Como foi o envolvimento da turma com o curso livre? Você pode descrever um pouco das provocações cênicas?

Resposta < Eu estava ciente dos riscos de frustração da oficina por não ter um objetivo fechado, apesar de ter uma estrutura básica formada, e por eu não ter pesquisa anterior em teatro anarquista. Por sorte, as pessoas que participaram do curso abraçaram a proposta e pudemos ter uma excelente experiência coletiva, que, por sinal, terá continuidade, pois surgiu, dos próprios participantes, a ideia de formarmos um grupo de teatro que continuará investigando essas relações com o anarquismo. O grupo já tem nome: Grupo Organizado de Teatro Aguacero (G.O.T.A.).

De início eu havia pensado nas formas de provocações artísticas que o teatro pode criar inserido na sociedade, dependo da linguagem teatral, dos processos de criação da obra, da circulação do trabalho, etc.

No decorrer do curso percebemos que como a improvisação de algumas cenas, alguns jogos teatrais e às vezes simples aquecimentos e alongamentos nos provocavam ao debate, a descobertas corporais, a pesquisar sobre a história do teatro, a agir de acordo com outra lógica.

As provocações estão em diferentes níveis e aspectos. Também uma auto-provocação do tipo “e aí? o que eu vou fazer com tudo isso que estamos discutindo e fazendo aqui?”.

Pergunta > Na primeira semana de novembro, na UFSC e na UDESC, um campo amplo de pesquisadoras e pesquisadores acadêmicos sobre o anarquismo realizaram o “Iº Colóquio Pesquisa e Anarquismo: perspectivas em debate”. O povo participante realizou intervenções sobre o evento. Quais trabalhos foram apresentados? Como foram recebidos no Colóquio?

Resposta < No penúltimo dia do curso livre pensamos coletivamente se seria interessante participar do colóquio, e se sim, o que faríamos. A resposta foi afirmativa a primeira questão, então passamos para o segundo passo.

Um dos pontos que estávamos refletindo nesse período era sobre a importância da obra artística dialogar com o contexto em que estaria sendo apresentada. Nesse sentido pensamos em textos, ações e músicas que tivessem direta relação com o anarquismo e sua história. O grupo se reuniu em outro momento para fechar algumas questões e ensaiarem juntos.

Antes das conferências da noite, durante os quatro dias do colóquio, o grupo apresentou uma pequena ação artística: a proposta de cantarmos todos juntos “las barricadas“; a leitura da carta de uma anarquista presa política argentina, na época da ditadura militar desse país; a cena de programa da “Palmirinha” em que ela explica como se faz um “coquetel” e termina por servir e explodir um casal da alta burguesia; e o jogo de futebol com “cabeça de fascista”[1], com referência a uma música cantada em manifestações (a adaptação da música ficou: Hei anarquista qual é sua missão? Acabar com o capital e fazer revolução. Hei anarquista, o que que você faz? Eu faço coisa que fascista aí não faz. Hei anarquista, você é pacifista? Não! meu sonho é jogar bola com cabeça de fascista!).

As ações tiveram ótima receptividade por parte de todos do colóquio e foram elemento importante para constituir um evento que é acadêmico, mas que não se limita a isso.

Pergunta > Em agosto foi lançado o livro “Greve de Inquilinos“, pela Ambiente Arejado Publicações e Entremares, escrito pelo jornalista e anarquista Neno Vasco. Você esteve envolvida numa proposta de encenação do texto. Relate um pouco da experiência e quais saídas vocês encontraram para os problemas de um texto escrito em 1907?

Resposta < A obra “Greve do Inquilinos” foi utilizada como inspiração para a montagem da peça “Greve das Inquilinas” por parte de um grupo de teatro que estamos montando no bairro onde vivo. Discutíamos sobre como poderíamos construir esse grupo: se iríamos fazer exercícios cênicos ou montagens. Quando lemos essa peça de teatro nos interessou principalmente por dialogar com as questões de moradia do nosso bairro. Porém, vimos que, pelo fato da obra ser escrita em determinada época, a figura masculina é muito forte entre os personagens, além disso, na história um dos homens se veste de mulher para seduzir o dono do imóvel. Como o grupo é formado exclusivamente de mulheres, identificamos que a obra trata a mulher com certos estereótipos que não gostaríamos de reproduzir. Decidimos, então, criar outras formas possíveis de burlar o pagamento do aluguel, sem perder o humor característico da peça original.

Em “Greve das Inquilinas“, a peça se passa no nosso bairro, em um espaço cênico muito pequeno em que cabem duas atrizes e uma cadeira, para demonstrar a realidade (uma realidade que se exagera em cena) de alguns imóveis. A proprietária seguidamente bate na porta das inquilinas pedindo aumento do valor do aluguel (“afinal já está chegando a temporada”) e cobrando por despesas de concerto do encanamento do imóvel. As músicas que cantamos são as mesmas da obra, porém parodiamos o ritmo de músicas brasileiras, como samba e funk. Nossa peça é simples, curta, está em estágio inicial, não tem grandes pretensões, mas foi ótima para nos fortalecermos enquanto grupo, produzirmos algo realmente nosso e dialogar artisticamente com nosso bairro. Queremos continuar trabalhando na peça para incluirmos mais pessoas e apresentarmos em outros lugares que dialoguem com sua temática.

Pergunta > Olhando o passado do anarquismo e a sua inserção social no Brasil, é possível identificar uma forte presença do teatro entre operários e operárias anarquistas na Primeira República (1889-1930). No período Vargas até 1964, o teatro e o anarquismo centrou em dramaturgos como Pedro Catallo, no contexto da ditadura civil-militar (1964-85), ocorreu junto ao Centro de Cultura Social em São Paulo e, por fim, a tal da “Nova República”, da qual ainda não temos um estudo e documentos disponíveis. Porém, acredito que o teatro tem recebido como objetivo de pesquisa o amplo campo do anarquismo como espaço de resistência e organização, mas o teatro acaba ignorado. Em seu ponto de vista, qual poderia ser o local do teatro junto ao anarquismo?

Resposta < Acredito que existem dois movimentos que se complementam: o anarquismo no teatro e o teatro no anarquismo.

Quanto ao anarquismo no teatro, podemos pensar nas obras que tem como temática a história do anarquismo, recuperando uma memória do anarquismo, ou lutas sociais anarquistas, os princípios anarquistas presentes em ensaios e montagens de obras, ou em peças que tratam de algumas figuras anarquistas importantes, como o lindo trabalho de Cibele Troyano, que tive oportunidade de ver no Colóquio de Pesquisa e Anarquismo, com a obra “Emma Goldman: Uma Vida Libertária“.

Mas como pensar o teatro no anarquismo? Vejo grande abertura dos anarquistas para arte em geral. Na história do anarquismo se vê teóricos e artistas discutindo sobre arte, com diversidade de perspectivas, mas sua importância nunca foi questionada.

O teatro foi muito utilizado como propaganda dos ideais anarquistas, para reforçar princípios, e apresentado, em geral, para um público já anarquista ou que já tinha inserção política. Precisamos refletir sobre qual seria nosso público hoje em dia. Que formato tem esse teatro. O que queremos com esse teatro.

Pensar na relação entre teatro e anarquismo pode desembocar em diversos caminhos e muitos deles ainda estão por ser construídos.

Essa é uma provocação (voltando ao título do curso).

É um convite a experimentar o teatro, experimentar o anarquismo. Mexer e remexer. E ver no que dá.

[1] https://archive.org/details/jogar-bola-com-a-cabeca-de-fascista

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https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/09/07/florianopolis-sc-curso-livre-teatro-e-anarquismo/

agência de notícias anarquistas-ana

Estrela cadente —
Já não tenho mais vaidades
só contemplação.

José Alberto Lopes