“O teatro é sempre necessário. É a forma de arte mais completa para dar as respostas a qualquer conjuntura.”

Na entrevista a seguir, a atriz e anarquista Cibele Troyano, que mora em São Paulo, fala da sua reaproximação com os espaços anarquistas depois das jornadas de luta de Junho de 2013, do monólogo “Emma Goldman, uma Vida Libertária” e muito mais. Confira!

por Flávio Solomon | 06/12/2018

Pergunta > Cibele Troyano, é com uma alegria rebelde que faço a breve conversa, mesmo por meio da frieza digital. O objetivo é saber um pouco da sua aproximação com o teatro e o anarquismo. Por favor, para iniciar, caso tenha algum leitor que a desconheça, você poderia se apresentar?

Resposta < Sou já uma senhora de 63 anos, que ama teatro. Trabalho como atriz, dou aulas e oficinas. Gosto muito de cantar e de vez em quando brinco de ser cantora. Quanto às minhas ideias, pra mim não existe nenhuma proposta política que supere a anarquista.

Pergunta > Em sua vida, o que surgiu primeiro: o teatro ou o anarquismo?

Resposta < O Teatro. Comecei na escola com 15 ou 16 anos. Quando eu era jovem vivíamos em plena ditadura e só fui conhecer as ideias anarquistas um pouco mais tarde.

Pergunta > Em que momento o anarquismo entra em sua vida e passa a ser uma alternativa política?

Resposta < Desde muito jovem as questões sociais me sensibilizam. Sempre achei também que as coisas podem ser diferentes do que são. Então passei a procurar uma maneira de estar com outras pessoas que tivessem as mesmas preocupações que eu. Descobri as ideias anarquistas com Maurício Tragtenberg, que foi meu professor na faculdade de ciências sociais, lá pelos idos de 1973-76. Mas só fui conhecer os anarquistas de carne e osso em 1985. O Jaime Cubero foi visitar uma cooperativa de técnicos de teatro que tinha sido organizada pelo meu companheiro e o convidou para uma reunião. Quando ele me contou fiquei super entusiasmada! Então havia anarquistas em São Paulo! Eles não eram uma relíquia do passado! Desde então comecei a participar das reuniões de reconstrução do Centro de Cultura Social de São Paulo, junto com a velha guarda: Jaime Cubero, Martinez, Chico Cuberos e tantos outros. Fazíamos as reuniões na sapataria do Jaime, depois que as portas se fechavam. Comecei a ler muito e a compreender melhor as ideias anarquistas. O Centro de Cultura foi reaberto logo depois e começamos a fazer atividades e grupos de estudo. Lembro com muita alegria de nosso “cinema na praça”: passávamos filmes ao ar livre numa praça do Brás (bairro de São Paulo). Vinha tanta gente assistir! Na mesma praça havia um cinema que passava filmes pornográficos e o dono do cinema ficou fulo com a gente, pois ele ficou sem público. Fizemos festas culturais, jornais e revistas, muita coisa mesmo.

Pergunta > Os diálogos entre o anarquismo e o teatro no contexto da ditadura civil-militar (1964-1985) e no processo de “redemocratização” acabou esquecido, inclusive pela militância anarquista. Você recorda de trabalhos nesta área? O que foi feito?

Resposta < Puxa, não tenho conhecimento sobre isso. Não me lembro de nada marcante.

Pergunta > Em outra conversa, você comentou que o ator Marco Ricca encenou um monólogo sobre o Bakunin, em 1989. Você assistiu a peça? O que recorda do monólogo?

Resposta < Assisti. A peça contava a história de Bakunin e foi um trabalho em que o Marco desabrochou como ator. O diretor era Val Foli e fez o Marco desafiar seus próprios limites. Ele se pendurava em cordas, fazia mil malabarismos corporais. Era muito bom. Naquela época o Ricca era próximo das ideias anarquistas.

Pergunta > Levantando informações sobre a sua carreira de atriz, foi possível encontrar momentos lindíssimos de você cantando. É perceptível o quanto a música é forte na sua trajetória. Você chegou a montar espetáculos com músicas rebeldes, que questionavam todas as formas de opressões? Pode comentar um pouco sobre este trabalho?

Resposta < Não cheguei a montar nenhum show exclusivamente com músicas desse tipo. Como “cantatriz” fiz um espetáculo em homenagem a uma compositora paulista chamada Miriam Batucada. As canções dela são uma espécie de crônica sobre a vida de São Paulo. Ela é uma espécie de Adoniran Barbosa de saias. Ela também compôs lindas canções de amor, mas não eram canções de protesto.

Pergunta > Em 2017, centenário da revolução russa, ao lado da solidária Beatriz Tragtenberg, você realizou a peça “Horrores e Errores da Revolução Russa na visão crítica de Maurício Tragtenberg“. Como foi produzir um trabalho com a Bia? Qual foi a recepção das pessoas que assistiram?

Resposta < Tenho a maior admiração pela Bia. Foi um presente poder estar ao lado dela nesse trabalho. Há muito tempo que planejávamos fazer alguma coisa juntas, pois não há muitas atrizes anarquistas em São Paulo. Então ela me convidou para montarmos um espetáculo baseado no livro do Maurício Tragtenberg, com quem ela foi casada, sobre a Revolução Russa. Escrevemos o texto, ensaiamos, botamos cenário e figurinos e estreamos no Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), dentro de um evento que discutia a Revolução Russa. Ficou muito bom! Pena que só fizemos uma vez. Mas o texto está aí pra quem quiser ler. Tenho a impressão de que o público gostou, mas que os marxistas ficaram meio ressabiados… O texto não poupou críticas a Lenin e Trotski!

Pergunta > Na peça com Beatriz, você assume a dramaturgia como uma crônica teatral. O que seria uma crônica teatral?

Resposta < A ideia de definir a peça como uma crônica foi da Bia. Achei muito legal, pois a peça foi composta de pequenas cenas que se sucediam em ordem cronológica. Começava no tempo dos czares com a Bia vestida de princesinha Anastácia e terminava com uma cena sobre a revolta dos marinheiros de Kronstadt em 1921. O epílogo era um encontro entre Emma Goldman e Louise Michel. Cada cena falava sobre os fatos verídicos da revolução e continha a nossa visão crítica dos fatos, com muita ironia e sarcasmo. Como pede uma crônica.

Pergunta > Falando em montagem, no ano de 2007, a Revista Verve publicou um texto teatral de sua autoria, segundo consta, foi uma proposta de aula-teatro. O que seria uma aula-teatro? O que tem de teatro e o que tem de aula na proposta?

Resposta < Em 2007 a Revolução Russa completava 90 anos e o pessoal do coletivo Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) me convidou para fazermos um trabalho sobre os escritos de Emma Goldman sobre a Revolução Russa. O nome “aula-teatro” foi criado por eles. O texto tem vários autores. Aliás, ele já estava estruturado quando eu cheguei, mas o considerei pouco teatral. Então eu escrevi algumas cenas e dei um monte de ideias. Eles concordaram com tudo e o Edson Passetti dirigiu lindamente. Fez um espetáculo com figurino, luz, sonoplastia e tudo mais. Eu “roubei” o conceito de aula-teatro pra batizar o outro trabalho que fiz sobre a Emma em 2013. Escrevi um texto contando a vida dela desde o nascimento até sua expulsão dos Estados Unidos quando ela tinha mais ou menos 50 anos. Considerei que o texto não chegava a ser um texto teatral, como manda o figurino. Mas não queria que isso me impedisse de apresentá-lo. Daí a definição de “aula-teatro”. Não é um texto com dramaturgia bem acabada, mas também não é uma palestra. É uma mistura dos dois.

Pergunta > Você tem uma paixão pela militante anarquista Emma Goldman. Quando a incendiária Emma entrou em sua vida?

Resposta < Nos anos 1980 eu entrei numa livraria e vi esse livrinho. Comprei e me apaixonei. Descobri o telefone da autora, fui à casa dela e lhe pedi mais material sobre a Emma. Ela me deu dois calhamaços em inglês e em francês – eram duas versões do livro “Vivendo a Minha Vida“. Desde então eu batalhei muito pra montar um super espetáculo sobre a Emma. Mas não consegui. Só fui realizar meu sonho 30 anos depois.

Pergunta > Como foi o processo de escrita dramatúrgica da peça “Emma Goldman, uma Vida Libertária“?

Resposta < Eu tinha muito material sobre ela. Conhecia sua vida de cor e salteado. Já tinha pedido a vários amigos dramaturgos para escrever um texto. Mas nunca deu certo. Eu andava meio afastada do movimento anarquista. Com as manifestações de 2013 eu descobri uma quantidade inesperada de coletivos e grupos. Então em 15 dias eu sentei com um caderninho e fui escrevendo. Pensei: essa história e essas ideias têm que ser conhecidas! Fui arrumando, separando os fatos que achava mais significativos e teatrais. Quando ficou mais ou menos pronto eu entrei em contato com a organização da Feira Anarquista de 2013 e me ofereci pra apresentar. Fiz a primeira apresentação muito insegura. Acho que não ficou nada boa. Mesmo assim, um professor que assistiu me convidou pra fazer uma apresentação pra 150 alunos de uma escola pública. Foi muito legal! A moçada adorou. Daí eu me animei: refiz o texto, pensei numa trilha, pedi pra um amigo gravar a trilha pra mim e ele acabou sugerindo outras canções muito legais. Separei algumas imagens e meu filho montou um pequeno vídeo pra passar no final, com uma canção de fundo composta por meu companheiro. Achei que estava bem melhor. Daí pedi pra um diretor de teatro dar uma olhada. Ele ensaiou comigo umas três vezes, me deu várias dicas, mas falou que eu precisava de um texto melhor. Voltei a falar com alguns dramaturgos, mas ninguém se interessou. Mostrei o que eu tinha pra mais dois diretores e alguns amigos, que me ajudaram bastante. Daí resolvi apresentar assim mesmo, com o texto que eu tinha conseguido escrever. Com todos os seus problemas dramatúrgicos. Uma aula-teatro. Já fiz diversas apresentações, para públicos bem diferentes e vou em frente.

Pergunta > Quais as dificuldades e potencialidades de assumir o papel de dramaturga, diretora e atriz na peça “Emma”?

Resposta < As de dramaturga eu já contei. A de me auto-dirigir foi um desafio assustador. A cada apresentação eu pedia para o público opinar sobre o trabalho e eu ia anotando o que não estava bom e corrigindo. Gravei um áudio comigo falando e fui corrigindo a prosódia. Até agora ainda estou no processo de aperfeiçoamento. Há pouco tempo um amigo sugeriu que eu colocasse em cena dois “mancebos” pra pendurar os chapéus. Fiz isso e ficou bem melhor. Ainda tem muito pra arrumar. Vou fazendo isso no processo, mas não me arrependo de estar me expondo, mesmo sabendo que tem muito pra arrumar. Acho que a idade avançada tem esse privilégio: tudo fica mais urgente.

Pergunta > A sua visão de Emma tem circulado em diferentes cidades, muitas vezes em lugares e espaços organizados pela militância anarquista. Como estes espaços tem recebido a montagem?

Resposta < Os anarquistas já têm mais ou menos um conhecimento prévio sobre a Emma, então costumam gostar bastante. Quando apresento em espaços anarquistas eu tenho a alegria de saber que apesar deles conhecerem muitos dos fatos e ideias apresentadas na peça, eles curtem a maneira como elas foram organizadas na aula-teatro. É muito gostoso!

Mas eu me sinto mais feliz ainda quando apresento em espaços não anarquistas. É impressionante! Muitas pessoas entram em contato comigo querendo saber mais sobre a Emma e sobre o anarquismo. Outros vêm me dizer que não a conheciam e ficaram apaixonados. Outro dia um grupinho de jovens me falou: “Que legal! Nós entendemos tudo!” Uma outra vez, um menino de 14 anos de uma escola pública onde apresentei me disse: “Obrigado, eu nunca vou esquecer esse tesouro!”

A peça já foi vista por mais de 2000 pessoas. Acho que foi minha maior realização como atriz.

Pergunta > Eu tenho realizado uma mesma pergunta para muitas pessoas, gostaria de ter uma visão sua: quais os possíveis diálogos entre o anarquismo e o teatro na atual conjuntura?

Resposta < O teatro é sempre necessário. É a forma de arte mais completa para dar as respostas a qualquer conjuntura. O anarquismo é a única corrente política capaz de fazer uma crítica radical sobre as questões presentes no Brasil e no mundo e a que tem as mais eficazes soluções para elas. Cabe a nós, artistas e libertários fazermos essa ligação e fomentarmos esse diálogo.

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no ar

Akemi Yamamoto Amorim