Entrevista com a capitã dos barcos de resgate Iuventa e Sea Watch 3
por Maria Luca | 19/08/2019
Ao amanhecer de 16 de agosto, Atenas estava melancolicamente vazia, tranquila e quieta. Não se conduziam automóveis para o trabalho, nem cheiravam os fornos. Só pela manhã os ônibus começaram uma procissão na cidade deserta. Mas no número 26 da rua Notara, onde o governo tem a intenção de plantar árvores de acordo com o informe de Kathimerini. Por que não dirimir as disputas políticas e midiáticas do verão profundo, quando? A vida floresce apesar das ameaças e do calor insuportável. Um grupo de refugiados e solidários falam em um inglês quebrado mas, sobretudo, com sorrisos abertos e abraços apertados com Pia Klemp.
Assim como Carola Rackete, a luta contra a criminalização da solidariedade está estampada em seu rosto. Pia Klemp foi capitã no barco de resgate Iuventa e Sea Watch 3, realizando muitas missões de resgate no Mediterrâneo. Segundo a lei racista de Salvini, ela e outros nove foram acusados de “facilitar a imigração ilegal” e ameaçados com até 20 anos de prisão. Se vê que a estratégia da União Europeia para manejar a miséria radica em selar a fronteira, financiar a máfia líbia para estabelecer um comércio de escravos moderno, deportações e deportações ilegais de refugiados, e a Frontex [Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira] joga um papel principal
É o abuso e a criminalização da solidariedade. Para as elites europeias, com um Salvini em primeira linha, é ilegal querer escapar da guerra, do autoritarismo e da pobreza. É ilegal ajudar aos que lutam por suas vidas. O que acontece se os crimes que se realizam diariamente no deserto, na topografia do horror que é a Líbia hoje, na fronteira de Evros, no Mar Mediterrâneo, estão contra todas as convenções internacionais de direitos humanos? Vivemos em um estado de exclusão prolongado e inquebrantável, onde o poder confirma seu poder golpeando com suas leis.
E quão diferente é a visão do governo da Nova Democracia? Desde seu primeiro dia no cargo, o novo governo estabeleceu como máxima prioridade a evacuação de estruturas únicas que operam no contexto da auto-organização, da liberdade e da coexistência sem receber um só euro de subsídio estatal ou europeu. Este é obviamente o papel chave que incomoda o homem racista envolto em folhas de jornal, devido a que a ocupação de moradias para refugiados demonstra na prática que é possível brindar atenção e dignidade às pessoas sem arames farpados nem hierarquias, interatuando com eles por igual e sem fazer caridade, tratá-los não como desnecessários nem perigosos.
Por isso veio Pia Klemp. Para compartilhar suas experiências e escutar histórias de amor. Dar e receber coragem. Viaja a Exarchia, que nunca está vazia e nunca dorme, com a exceção do famoso agro reflorestamento na praça de Thanos Plevris – visitou locais de autogestão e resistência, falou em duas salas cheias de interesse e esperança, na ocupação Notara 26. Falou sobre a solidariedade e a utopia que são inseparáveis e não permitem que a realidade evolua em um enorme e venenoso Leviatã.
Pergunta: A mídia a reconheceu como capitã em uma operação de resgate no Mediterrâneo. No entanto, passou muitos anos em barcos fazendo campanha pela liberação de animais. Comecemos com isto…
Resposta: Sim, durante os últimos sete anos estive em barcos. Durante muito tempo estivemos fazendo negócios contra a exploração de animais na Antártida, no Pacífico e especialmente no Golfo do México, onde existe um grande problema com a pesca ilegal, a caça de baleias, os cativeiros de golfinhos. O circuito detrás destas práticas opera em termos de máfia. Fomos atacados no mar, ameaçados com a queima de nosso bote, estamos em perigo habitualmente. Ademais, nos metemos em indústrias processadoras de carne, filmamos para mostrar a incrível violência utilizada. Nosso objetivo é fazer com que as pessoas entendam que comer carne e derivados animais preserva o sistema de maltrato animal.
P: Em Atenas há mobilizações contra o Parque Zoológico Attica, que alberga um delfinário, e alguns dos delfins que se encontram ocasionalmente em seus tanques provêm de populações selvagens capturadas pelo processo descrito no Mar Negro ou o Mar Negro.
R: Li sobre isso. Pessoalmente vejo os zoológicos como um espetáculo de miséria. São lugares de abuso extremo de animais que nutrem nas crianças a percepção distorcida de que os animais são criaturas inferiores.
P: Quando começou a tratar com operações de resgate marítimo?
R: Em 2016 fui a Iuventa, fiz algumas missões e logo tomei nosso bote em Lampedusa. Logo fui ao Sea Watch 3. Em junho passado, nos informaram que o Iuventa e outras nove pessoas estavam sendo investigadas por acusações de “facilitar a imigração ilegal”. Nossos advogados recomendaram que parássemos a atividade temporariamente, como se fez. Agora estamos tratando de reunir a evidência e o dinheiro necessários para este processo. Mas posso dizer-te algo? Somos uma pequena parte do problema. Os refugiados são criminalizados. A União Europeia através de suas práticas na realidade diz que é ilegal buscar uma vida melhor e mais segura. Muitos refugiados e imigrantes foram acusados, mas tudo isto está no ar. Em geral, os barcos são conduzidos por um refugiado, seja para desta forma obter um boleto mais barato ou porque os traficantes os obrigam a fazê-lo. Uma vez que o barco chega a um porto europeu, a primeira tarefa das autoridades é investigar quem dirigiu o barco e prendê-lo. Se é uma mulher capitã branca, é uma “heroína”, mas se é um refugiado que é processado, é tratado como um criminoso.
P: Como decidiu abandonar seu lar para unir-se às operações de resgate?
R: Vivo de forma nômade de todos os modos. Não tive uma casa própria em dez anos. Vivo em diferentes partes do mundo. Fui a missões de resgate porque tinha experiência no mar e conhecimento de navegação. Conheço meus privilégios como europeia com passaporte alemão. Para mim, a exploração dos animais, como a dos humanos, é o resultado de um sistema comum de opressão e violência que decide que as vidas dos animais contam menos, que as vidas de algumas pessoas contam menos. Me parece inconcebível e pouco ético que haja algumas formas de vida que se consideram consumíveis.
P: O que é o que mais recordas das operações marítimas no Mediterrâneo?
R: Tenho muitas recordações, algumas bonitas e outras feias. 15 botes no mar e éramos o único bote salva-vidas. Nesse momento tivemos que escolher a que barco ajudar primeiro. Nos aproximamos de um bote que havia começado a navegar com mulheres da África subsahariana. Estávamos a ponto de dar-lhes coletes salva-vidas. Outro barco foi completamente destruído e caíram pessoas na água. Explicamos às mulheres que devíamos ir apoiar aos que já estavam na água e não tinham nada. Então suas mãos se uniram e começaram a cantar. Foi impactante ver que encontraram força apesar do que haviam passado. Não foram só vítimas, foram portadoras da história. Eram os mesmos ativistas, mais que eu. Reclamaram sua liberdade e não se detiveram em nenhum lado. O sistema não conseguiu quebrar seu desejo. Mas também tenho recordações horríveis. Gente gritando que naufragou e não pudemos chegar tão rápido, imagens de mulheres olhando seus bebês se afogarem e sem poder fazer nada. Em uma ocasião, um guarda-costas líbio chegou primeiro a um bote, o afundou e muita gente estava na água. Tentavam subi-los a bordo e muitos saltavam ao mar porque diziam que preferiam afogar-se em lugar de regressar a Líbia. Conseguimos resgatar 60 pessoas, 40 pessoas sequestradas pela guarda costeira líbia e outras 30-40 se afogaram. A bordo tínhamos um moço que fazia um movimento repetitivo de um lado a outro com seu corpo dizendo: “Minha irmã, minha irmã”. Perdeu-a e não sabia se havia se afogado ou levada de regresso a Líbia. Os salvas, sabem que estão feridos, e logo o porto italiano vem para recolhê-los, alguns são amáveis mas muitos são fascistas e recebem um trato desumano.
P: Fala do que experimentaram na Líbia?
R: Só tens que olhá-los e entendê-los. A maioria vêm de bermudas. Não têm nada. Levam marcas de disparos e gritos. Os torturam e os filmam para enviá-los a suas famílias e ganhar mais dinheiro. Conhecemos um homem a quem cortaram a orelha em um centro de detenção na Líbia. Escutamos muitas histórias sobre mulheres violadas. Vão a centros de detenção e todos os dias ou a cada dois dias lhes dão uma garrafa de água. Tem isto para beber e para usar no banho. Condições indescritíveis que não posso imaginar. À Europa não lhe importam as mortes nos países de origem, no deserto, nos centros de detenção, no mar. Só lhe importa se um resgatador branco mantêm uma criança em suas mãos. Uma vez tivemos um menino morto de 2.5 anos a bordo com um guarda-costas líbio. Os marinheiros italianos e franceses estavam próximo mas não fizeram nada. Nossos médicos a bordo tentaram recuperá-lo, mas não foi possível. Tivemos que colocá-lo na geladeira porque não tínhamos mais espaço com sua mãe a bordo. Durante três dias, a Europa não nos deixou chegar ao porto. Fizemos constantes chamadas dizendo que tínhamos 60 refugiados fugidos. Quando a muitos de nós se permitiu chegar a Itália, haviam preparado uma festa no porto para o menino morto. Os trabalhadores portuários o levaram com reverência e gritaram a um sacerdote para que realizasse a cerimônia. Tampouco lhe perguntaram sobre sua religião. Acabavam de chamar a um sacerdote católico. Me pareceu completamente hipócrita, porque não fizeram nada enquanto o menino esteve vivo.
P: Não é a União Europeia responsável do surgimento da escravidão moderna na Líbia e dos crimes da guarda costeira líbia?
R: Claro. As autoridades líbias ganham dinheiro com o tráfico de refugiados, a União Europeia os subsidia para manter os refugiados em acampamentos desesperados, chantagear a suas famílias por mais dinheiro, colocá-los em botes precários e logo desmantelá-los e devolvê-los. Um ciclo de desastres repetido com fundos europeus.
P: Esteve em Lesbos [ilha grega] no passado. É Moria [campo de refugiados] um lugar que também esmaga a dignidade humana?
R: Estive em Lesbos porque tenho amigos que trabalham ali. Neste contexto, também visitei Moria. É realmente miserável. É inútil que as pessoas tenham viajado tão longe, tão longe, tão difícil encontrar algo de segurança e terminar ali. É como se não reconhecessem nenhum direito para os refugiados, privando-os da oportunidade de sonhar com um futuro.
P: Creio que você e Carola se converteram em símbolos da luta contra a criminalização da solidariedade. Ser uma capitã é raro, mas também para projetos solidários. Por outro lado, obviamente há um conjunto de ferramentas da mídia… Como o experimentas?
R: Para nossa luta, é tão importante como todas as demais. Há pessoas maravilhosas nos resgates, em cada publicação, fazendo coisas fantásticas na água. Sei que há sexismo inclusive nos cinemas, há papéis de gênero e estereótipos. Temos que questioná-los e eliminá-los. Mas o que estivemos dizendo antes é certo. Se ativa uma sensibilidade seletiva pela presença feminina no timão, já que milhares de refugiados lutam por suas vidas e o discurso público os ignora.
P: A lei de Salvini é uma faceta do fascismo em evolução na Itália e as perspectivas da União Europeia. É otimista de que haverá resistência?
R: Salvini é só a vanguarda. Todos os líderes europeus estão satisfeitos com esta situação e a declaram com seu silêncio e negativa em dar as boas vindas às populações de refugiados. O surgimento da extrema direita não está no futuro. Já o vivemos. A Europa bárbara, a militarização dos refugiados, a criminalização da solidariedade são sintomas desta tendência. Espero profundamente que haja resistência e desobediência.
P: Nestes dias, pudeste passar um tempo em espaços auto-organizados e projetos em Exarchia, como ocupas de moradias para refugiados. O novo governo na Grécia ameaça evacuar os ocupantes ilegais e exacerbar a repressão na vizinhança. É importante desenvolver um movimento para defender estas estruturas?
R: Vim para expressar meu apoio por esta mesma razão. Me parece muito agradável que as pessoas vivam e lutem juntas. Há uma comunidade de solidariedade, amor e luta internacional. Me encanta conhecê-la e conectar-me com ela. Temos que defender os ocupantes ilegais na Grécia, especialmente os refugiados, porque são lugares de liberdade com um forte simbolismo. É uma prova viva de que podemos brindar atenção genuína às pessoas longe da violência e do controle policial. Além disso, não se pode viver com ignorância sobre o tema dos refugiados. É muito diferente escutar sobre eles nos noticiários do que viver com eles.
P: Está ansiosa pelo progresso legal de seu caso?
R: Não tenho ansiedade porque aconteceu o pior que poderia acontecer. O direito a vida foi criminalizado tão depressa como se fecharam as fronteiras e se assinou o acordo da União Europeia com a Turquia. Isto equivale a pena de morte para muitas pessoas. A partir de então, obviamente estou interessada no que acontecerá com a corte. Aconteça o que acontecer, no entanto, eles nunca vão tirar minha fé e minha alegria na luta pela liberação social.
Fonte: https://omniatv.com/853449937
Tradução > Sol de Abril
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