A Relação Entre a Negação do Estado e a Antropologia Marxista

por Ana Botner

Sociedades “primitivas” são sociedades sem Estado, como bem disse Pierre Clastres, celebre antropólogo francês da década de 40 a 60, no começo do seu último capítulo do livro A Sociedade Contra o Estado. Ele argumenta que esse fato, apesar de correto, deixa a ideia de que estas sociedades estão sendo negadas de algo. Deixa no ar a ideia de falta, de desconhecimento, de atraso. Já que vivemos em uma sociedade em que, querendo ou não, é modernizada e capitalista, ainda somos muito levados por uma ideia determinista e evolucionista de como as sociedades se constituíram e como deve ser seu progresso. A civilização moderna em que vivemos acredita que este deveria ser o destino de todas as sociedades. Algo parecido com a filosofia marxista – muito criticada por esse autor – em que todos estamos destinados a uma sociedade superior final.

Clastres observa que todas as sociedades nativas sul-americanas que pesquisou eram classificadas, como já foi mencionado antes, pelo critério da falta: ele menciona, por exemplo, a falta de escrita, a falta de história e a mais importante, a falta de um Estado.

O “senso comum” e a teoria marxista tem algo de semelhante no modo de explicar o porquê da falta de Estado em sociedades como essas: a simples incapacidade delas de produzir excedente de produção, o que por consequência não o gera. Assim se torna impossível o surgimento de uma incapacidade técnica, mas sim de uma decisão política. Essas sociedades, ao contrário do que imaginam, possuem sim excedente de produção, que é usado em festas, comemorações e são consumidos por toda comunidade, num dispêndio de caráter ritual. Essas decisões são feitas em conjunto e de maneira consciente para evitar hierarquias e coerção por parte de grupos dentro dessas sociedades.

A consciência política é tamanha que quando a sociedade está em vias de constituir um Estado, por conta do contingente populacional, os grupos dentro dela se separam. Precisamente para evitar a emergência de um aparelho coercitivo.

Pode se perceber isso na descrição de Pierre sobre a relação entre o “chefe” da aldeia e os demais membros. De primeira, Clastres deixa claro que: o lugar de chefia numa tribo não é de poder. O chefe não tem nenhuma ferramenta de coerção contra outros membros e não tem o direito de comandar ninguém, exceto em casos excepcionais, como em uma guerra. E diz mais: a tribo nunca irá tolerar que seu chefe exerça qualquer poder coercitivo. Ele é imediatamente destituído do cargo caso tente realizar alguma ação que tenha a estruturada de comando-obediência. O “chefe” estaria então muito mais no papel de “funcionário” (usando as palavras de Clastres) da comunidade.

O que os nativos esperam de seu líder é apenas a habilidade da fala e representação, ele serve como um intermediário em conflitos, realiza discursos para o resto do grupo, e passa os desejos daquela sociedade paras outras aldeias. Ele possui prestigio, porém, mais do que todos da comunidade, deve servir a tribo ao qual pertence, e não ao contrário. Ele é o que doa mais e o que menos recebe, em termos de produção. Nas sociedades sem Estado, o chefe que tem a obrigação com a comunidade. A tribo não tem nenhuma obrigação de escutar seu chefe – escolhido de maneira verdadeiramente democrática – nem de seguir uma palavra do que ele diz como indivíduo. Tudo que o chefe pode falar e discursar são as próprias vontades coletivas.

As pessoas nativas latino-americanas, objeto de estudo de Pierre, eram, nas palavras dele, “irredutíveis,” o que significa que elas possuíam uma coerência e cooperação social e política para manter o poder dentro dessa sociedade residido no próprio corpo político dela. As sociedades são homogêneas no aspecto político: todas elas combatem conscientemente o Estado. E Pierre deixa claro que é essa homogeneidade política e consciência que fundamentam a não existência de Estados nas sociedades nativas.

A grande sacada de Clastres nesse livro é a inversão da teoria marxista no que diz respeito à precedência da alienação econômica, ou seja, a do trabalho, acima das outras alienações. Para o teórico, o econômico é antes de tudo político, a emergência do Estado determina o aparecimento de todas as classes.”  “Em outros termos, no que tange as sociedades nativas, a mudança de plano do que o marxismo chama de infraestrutura econômica não determina de modo algum o seu reflexo consequente, a sua superestrutura política”.

Com base nisso, o autor afirma contundentemente que o verdadeiro ato de mudança de uma forma de sociedade para outra parte de uma ruptura política – e não econômica. E vira de cabeça para baixo os conceitos marxistas de infraestrutura e superestrutura, sustentando que o primeiro deveria ser político e o segundo o econômico. A economia, para Clastres, ao contrário da doutrina marxista está longe de ser o centro das sociedades nativas, as relações de produção são constituídas depois de uma mudança nas de poder. O Estado que promove a divisão de classes, e não a divisão de classes que promove o Estado.

Em um artigo do autor de A Sociedade Contra o Estado, publicado em uma compilação de ensaios de artigos seus para revistas da época (meio do século XX), ele trata sobre o assunto da etnologia marxista, e de maneira bastante pejorativa. Ele resolve escrever esse artigo porque na França de sua época a escola de antropologia estava mudando do pensamento estruturalista, marcado por Levi Strauss, e migrando para uma corrente de pensamento majoritariamente marxista.

Pierre, nas palavras dele, expressa a incapacidade da doutrina marxista de explicar as sociedades primitivas sem Estado. Para marxistas, é desconfortável ser obrigado a pensar em todas as sociedades existentes, já que sua doutrina deve ser pressupostamente universal. Na obrigação de estudar as sociedades nativas, os marxistas, fazem esse estudo já com respostas prontas, com as propostas universais do pensamento marxista sobre a História e seu movimento. Os etnólogos marxistas tentam empurrar conceitos goela abaixo nos estudos sobre as sociedades sem Estado, já que a universalidade de sua doutrina não permite nenhuma dissonância de desenvolvimento das forças produtivas, e de que a sociedade se limita à sua economia. Essa análise só serve para as sociedades divididas em classes e com a presença de Estado, em que de fato o centro do problema é econômico, porque há uma relação clara entre exploradores e explorados determinada pela economia.

Além disso, etnólogos marxistas tratam a sociedade “primitiva” como apenas uma etapa. A enxergam como pré-capitalistas, como se estivesse esperando ela se transformar e se desenvolver conforme a lei histórica marxista. Esses autores franceses e muitos outros marxistas negam para as sociedades nativas o seu direito de existência autônoma, o direito de simplesmente viver e existir sem uma ideia de progresso histórico.

No entanto, é importante explicitar que Clastres reconhece a diferença entre o pensamento próprio de Marx e o de seus seguidores, que ele os considera fanáticos e dogmáticos em seus escritos. Diz ele isso referindo-se pelo menos aos marxistas que trabalham em seu campo, o da antropologia política e o do estudo das sociedades “primitivas” sem Estado.

A pesquisa de Clastres foi feita em tempos modernos, não é um trabalho historiográfico de sociedades que não existem mais. Podemos escolher pensar que eles são uma exceção à regra, ao mundo moderno, ao nosso mundo capitalista e globalizado. Ou podemos decidir pensar que essas realidades podem ser nossas. Olhar por outro ângulo, um ângulo incomum de fato. Não somos diferentes deles, no que diz respeito a capacidade de adaptação e mudança dos seres humanos. Da mesma forma que eles poderiam se adaptar a nossa realidade, mas escolhem não fazê-lo, a possibilidade de uma sociedade diferente está ao nosso alcance. É preciso lutar, o possível esta aqui e agora.

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