Um Olhar anárquico sobre os protestos e a renúncia do presidente indígena Evo Morales. O fim de um líder…

“Se ampliamos nossa visão para além dos partidos de esquerda e direita, e olhamos para a formosa e urgente destruição da dominação, podemos sentir as tensões irresolutas na Bolívia. A queima da Wiphala, como a queima dos ponchos no Sucre, em 2008, são atos que a cada certo tempo nos lembram a cara da dominação, do projeto civilizador, dos quais o Estado é parte vital e todos os que entram nele e no poder. Porque? Porque o Estado neste continente, foi o resultado de uma imposição colonial que foi mutando em guerras e “revoluções” entre elites crioulas. Porque o Estado é o braço legalizador da devastação da terra mediante duas políticas de desenvolvimento e progresso. Porque o Estado é poder e o poder usa a força repressiva para aniquilar qualquer liberdade. Em conseqüência, e ainda que pareça óbvio para um anarquista dizer isto, mas vale a pena pelas confusões tão vigentes, não é através do Estado nem de partidos (sejam ou não de esquerda) que se aniquila a dominação. A dominação é destruída aniquilando o Estado, o capital e seus falsos críticos.

Esse é o horizonte que inspira a luta anárquica, a hostilidade contra o poder, seja de quem seja. Um horizonte que nos alarga o olhar à liberdade radical sem diminuir expectativas e sem negociações que desviem o rumo para a via democrática cidadã e estatista. Porque quando os anarquistas dizemos que queremos a destruição do Estado, falamos muito sério.

Esse horizonte longo e largo, também o apreendemos dos povos dos quais herdamos nossas raízes nativas as quais há séculos não precisam do Estado. Deles escutamos novamente, nas ruas, o grito – Agora sim Guerra Civil!!   Grito antigo que já escutamos na Guerra do Gás e na Guerra da Água, e que nos lembra que a guerra, nestas terras, nunca se deu entre povos originários e colonizadores, mas apenas entre elites crioulas. Grito que hoje está presente, de novo, numa coletividade que, pareceria estar localizada em El Alto, mas que é muito maior, é a coletividade racializada como indígena, desde a qual lembramos que a tensão entre coletividade e o Estado não está resolvida já que cotidianamente se expressa nas exclusões mais diversas, e isso, vemos mais uma vez, é algo que nenhum governo pode solucionar.

Sobre as Constituintes e a Constituição.

A falsa resolução das tensões mediante a Constituinte impulsionada pelo MAS entre 2006 e 2008 , foi uma solução em papel legalizado (lógica ocidental e estatista) que não atinge as tensões que nascem das visões de mundo diferentes e antagônicas ao Estado Capital. Uma constituinte, e sua constituição resultante, são os instrumentos do pacto social entre a sociedade e o Estado. São as assinaturas e carimbos que selam a submissão das coletividades ao Estado, e assim, são a derrota de qualquer luta autônoma. Não é por acaso que as Constituições aparecem precisamente como “soluções” para salvar o Estado em momentos de instabilidade de desencanto com ele. Assim apareceram as constituintes após as ditaduras no Brasil, em 1946, durante a Era Vargas, que veio junto da anistia de 1945; e a constituinte de 1987-1988, que também chegou da mão da anistia (1979), ambas funcionaram como pacificadoras  e reestabelecedoras perfeitas dos laços do Estado com a sociedade. De forma similar, a Nova Constituição Plurinacional da Bolívia, significou um curral institucional que desvinculou as pessoas da sua forma autônoma de fazer a luta: nas ruas, com protestos e a margem do Estado. A constituinte reduziu lutas milenares num partido, o MAS, e permitiu com isso que o racismo e o colonialismo fiquem disfarçados de “oposição política”. Para os dominadores de sempre, resultou ainda melhor insultar alguém o chamando de “masista”, e não usar o clássico “índio de merda” que já era politicamente incorreto.

A nova Constituição e a cara indígena de Evo confundiram tanto com essa inclusão que confundiram até aqueles que eram antagônicos ao Estado, que de repente eram tanto parte de uma coletividade originária quanto parte de um ministério, ou eram parte dos grupos de comerciantes informais quanto das autoridades municipais. Fortes e combativas coletividades se transformaram em governo; a inclusão as confundiu e se conformaram com a via parlamentar, institucional, não conseguindo enxergar que as hierarquias, não apenas de classe, mas de cultura e cor da pele, ficaram apenas escondidas. Muitos “ácratas” e libertários também ficaram severamente confundidos (tal como aconteceu na Venezuela com os anarco-chavistas, no México com os anarco zapatistas, e no Brasil com os pró-Lula), provavelmente porque apenas acompanhavam aos movimentos sociais e não faziam da anarquia uma procura individual que não se perdesse na primeira tormenta. Essa confusão, à qual se somou o rechaço (com uma forte repressão no meio) a uma prática anárquica radical, terminaram por quase silenciar o anarquismo na Bolívia .

É por isso que hoje é importante dizer algo, desde a anarquia, quando um presidente renuncia, para que esses confundidos não cheguem aos extremos de sentir lástima por um presidente, ou acreditar que lutar contra a direita é o mesmo que dissolver a vontade pela anarquia mediante alianças com partidos de esquerda. Que o presidente, ou líder de um partido, seja mais ou menos simpático para as visões do mundo inclusivo é um debate profundo, no qual, no entanto, não podemos esquecer que um presidente ainda que indígena, negro, mulher, ou libertário, é o guardião do Estado, do Capital e da devastação da terra pelo simples fato de que toma a decisão de mandar sobre a vida das pessoas e dispor dos “recursos”.

Somos anárquicos, e falar em golpe apenas legitima a lógica estatal, encurralando o pensamento para os partidos e o parlamento. O debate sobre si na Bolívia é ou não é golpe reforça a intangibilidade do Estado, de suas leis e de seus funcionários. A lógica estatista tem lavado tanto o pensamento que muitos não conseguem enxergar mais a real possibilidade de sermos nós mesmos os encarregados de tomar conta das nossas vidas, resolver nossos problemas e abrir nossos próprios caminhos, sem necessidade de nenhum salvador. A redução da luta em partidos, assim como o pensamento dual entre esquerda e direita, impossibilitam a autonomia e a liberdade. E de novo, o horizonte anárquico se apresenta na destruição absoluta do Estado e da dominação. (…)

Neste cenário, a melhor resposta vem de parte de El Alto, desde onde insistem: “Escutem. Não é o masista aquele que bloqueia, não é o masista aquele que se enfurece pela queima do seu símbolo, pela ofensa racista, pela indiferença, pela hipocrisia, pelo paternalismo, não, não e mil vezes não. Entendam, não é o masista aquele que está nas ruas, é toda uma sociedade, é toda uma cidade de imigrantes dentro do seu próprio território aimará a que se mobiliza. É a cidade aimará. São os veteranos do 2003, os órfãos que tem perdido seus pais pelos tiros do governo que agora proclama a democracia. Não é o masista senhores, é o altenho que está lutando. É o aimará”  , e protestam forte e violentamente ao grito de -A Wiphala se respeita carajo! Grito que carrega o rechaço, desde o primeiro dia, a essa direita que entra para governar.”

De: Um Olhar anárquico sobre os protestos e a renúncia do presidente indígena Evo Morales. O fim de um líder…

Pela Revolta contra os que dominam a afinidade entre os que a combatem.

Edições: Crônica Subversiva
Porto Alegre, 2019

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Anibal Beça