[Indonésia] Primeira Parte | Apoie a luta da comunidade Tamansari!

Introdução

Uma vez que a cobertura da mídia em relação à Indonésia é, infelizmente, ainda muito unilateral e insuficiente, o artigo seguinte pretende dar um exemplo de suas condições reais e revelar algumas das maquinações do governo do país, com o qual o Brasil coopera estreitamente em assuntos econômicos, políticos e militares¹. O governo é atrapalhado em seus intentos, entre outros fatores, pelos cidadãos e apoiantes de Tamansari, que oferecem grande resistência.

Tamansari

O bairro (kelurahan) RW11 Tamansari está localizado no meio do centro de negócios de Bandung, a capital de Java Ocidental, que é considerada um centro de Cultura e Educação. Bandung também tem o título oficial de uma cidade “amiga dos direitos humanos” e está empenhada em defender e proteger os direitos humanos através da sua adesão à ONU e à Constituição de 1945².

Tamansari foi vendido em 2017 em leilão do governo para a PT. Sartonia Agung, uma empresa de construção muito questionável que foi oficialmente incluída na lista negra pela instituição governamental LKPP. O local trata-se, na verdade, de terrenos comuns para os quais o governo não tem nem um certificado de uso do solo nem uma licença ambiental e, portanto, não tem o direito de emitir uma licença de construção, pois a Lei Básica da Agricultura (UUPA) estabelece que qualquer pessoa que tenha vivido ou trabalhado em terras comunitárias por mais de 20 anos deve ser priorizada como proprietária da terra. Tendo em vista que os habitantes de Tamansari vivem lá oficialmente há muito mais de 20 anos, eles têm direito legal a um certificado de uso da terra, que, apesar de vários pedidos, nunca lhes foi entregue (pelo Ministério da Agricultura e do Planeamento Regional (BPN) responsável).

A empresa de construção PT. Sartonia Agung tenciona construir um bloco de apartamentos (“Rumah Deret”), que são supostamente destinados aos moradores que irão se mudar novamente após a construção.

Durante a construção, os moradores devem se mudar para Rancacili, uma cidade a 30 km de Tamansari, o que é completamente inapropriado devido à sua localização remota e condições precárias. Também é provável que os aluguéis dos novos apartamentos sejam proibitivamente caros para os residentes. Os habitantes de Tamansari nunca concordaram com este plano, que faz parte de um Programa Governamental supostamente sem fins lucrativos chamado KOTAKU. (Isto será explicado novamente abaixo)

Antes do primeiro despejo em Dezembro de 2017, 197 famílias viviam em 90 casas em Tamansari. Apesar da forte resistência, o procedimento brutal deixou apenas 33 famílias e 16 casas para trás. Muitos saíram devido à enorme pressão da empresa e do governo.

Outras tentativas de despejo ocorreram (março de 2018 – janeiro de 2019), o sistema de esgoto foi destruído e as tentativas de intimidação por parte da polícia e bandidos pagos continuaram. Houve também tentativas de despejos mediante documentos inválidos.

Uma e outra vez, os cidadãos de Tamansari tentaram mediar com as autoridades, mas ninguém se importou. Inúmeras manifestações e eventos foram organizados.

O despejo mais brutal ocorreu em 12 de dezembro de 2019, dois dias após a cidade de Bandung ter comemorado oficialmente seu título de Amiga dos Direitos Humanos, no Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Enquanto o caso ainda estava em julgamento e nenhuma decisão final tinha sido tomada, a polícia local, a polícia nacional, a polícia civil, as forças armadas nacionais, os paramilitares e os bandidos armados vieram sem anúncio oficial e destruíram todo o distrito. Derrubaram as casas com escavadoras enquanto os habitantes tentavam trazer os seus bens e as crianças para um lugar seguro. Para acelerar o processo, a polícia nacional foi aos pertences dos moradores sem permissão e levou alguns deles para Rancacili (o lugar a 30 km de distância para onde as pessoas são enviadas). Muitos pertences dos habitantes de Tamansari ,como resultado, foram perdidos. Eles também não tiveram tempo suficiente para tirar tudo de suas casas antes que fossem destruídas.

Crianças ficaram feridas, chorando e gritando, vendo suas famílias serem espancadas com bastões e a polícia jogando pedras nelas. Apesar disso, as pessoas deram tudo para defender as suas habitações, construindo barricadas e defendendo Tamansari com toda a sua coragem.

Também foram usadas bombas de gás lacrimogêneo potencialmente mortais contra a comunidade. Apesar do eventual despejo de todas as pessoas de toda a área, as unidades perseguiram o povo para continuar batendo e prendendo arbitrariamente. Foram 21 pessoas presas e pelo menos 37 feridas, incluindo crianças.

Eu mesmo vi várias dúzias de oficiais baterem em Enjo, um dos habitantes de Tamansari, com bastões. Durante o tratamento ambulatorial, ele foi espancado novamente. Devido a lesões graves na cabeça, teve de ser levado para a unidade de cuidados intensivos. Agora ele está numa cadeira de rodas, já não pode andar. Um bebê ainda tinha os olhos inflamados durante semanas como resultado de ataques com gás lacrimogêneo e pó.

O único edifício no distrito não destruído foi a mesquita. A maioria das pessoas deslocadas tem sido acomodada lá até hoje (cerca de 20 famílias e um número cada vez maior de apoiantes).

Mesmo ao lado da mesquita podem-se ver agora as “ruínas de Tamansaris”; pilhas de pedras e objetos, memórias de uma vida comunitária pacífica e, sobretudo de uma casa cheia de memórias coletivas, que o governo aparentemente percebe como uma mercadoria, mas que para as pessoas que lá viviam era muito mais do que isso. As avós de alguns dos residentes já viveram lá, vendo seus filhos e netos crescer. Histórias de vida inteiras aconteceram, muito esforço e amor estava em todos os cantos e bordas do Tamansari. Não só as memórias, mas também o espaço vital e a base da existência foram tirados ao povo. Além disso, as pessoas, especialmente as crianças, estão agora gravemente traumatizadas.

O prefeito em exercício, Oded M. Danial, é parcialmente responsável por esta tragédia. No dia seguinte ele pediu desculpas à imprensa pelos tumultos, mas não tirou nenhuma conclusão e pretende continuar o processo de desenvolvimento como de costume. Ridwan Kamil, o governador de West Java e ex-prefeito, também está envolvido nos crimes cometidos.

Instituto de Assistência Jurídica (LBH), uma ONG que, entre outras coisas, defende Tamansari, destacou em uma declaração em seu site as violações da lei que foram encontradas durante o despejo ilegal:

“As expulsões violam a Constituição de 1945, em particular o artigo 28 sobre direitos humanos, a Lei 39 de 1999 sobre direitos humanos e a Lei 1 de 2011 sobre áreas residenciais e de assentamento”.

Apesar dos repetidos pedidos, a Comissão Nacional de Direitos Humanos (Komnas HAM) não investigou as numerosas violações dos direitos humanos e a violência estatal infligida aos cidadãos de Tamansari durante qualquer uma das expulsões realizadas.

No caso de Tamansari, o governo de Bandung invoca reivindicações do período colonial holandês da Indonésia (acordo de compra de 1930), que foram oficialmente revogadas com a independência do país. Isto significa que o governo não tem realmente o direito de tomar posse da terra.

Por detrás do véu da Democracia e do Estado de Direito, existe um autoritarismo neoliberal que faz valer os seus interesses comerciais e empresariais com uma brutalidade sem limites e sem consideração pelos direitos do povo. A lenta erradicação e segregação da classe baixa faz lembrar as práticas coloniais.

Antecedentes

Por detrás do projeto “Rumah Deret” (bloco residencial) estão programas governamentais de grande escala.

O programa atualmente maior é chamado “National Slum Upgrading Project” (NSUP) e é apoiado pelo Banco Mundial e pelo AIIB (Asian Infrastructure Investment Bank).

Uma parte importante é o programa “Kota Tanpa Kumuh” (“Cidade sem Favelas”) [KOTAKU] do Ministério da Habitação, que se destina a servir como estratégia nacional de redução da pobreza e a apoiar o NSUP. Um dos objetivos da KOTAKU é a eliminação das favelas urbanas através do fornecimento de habitação. O exemplo de Tamansari dá uma impressão da forma como ele está sendo implementado.

KOTAKU é apresentado no site oficial como um projeto sem fins lucrativos⁵. No entanto, há obviamente interesses comerciais e econômicos norteando a execução do projeto.

Estas iniciativas de melhoria das favelas também estão ligadas ao programa 100-0-100  lançado pelo governo indonésio no âmbito de Joko Widodo (Jokowi), que significa 100% de acesso à água potável, 0 favelas e 100% de saneamento. Este era obviamente um plano utópico, cujo fim também estava previsto para 2019.

Um programa internacional do Banco Mundial chamado “Cidades sem Favelas” (“Cities without Slums”) está causando muitos danos em todo o mundo, sob o pretexto de combater a pobreza.

O site do Huffington Post afirma: “Mais de 3 milhões de pessoas foram deslocadas física ou economicamente entre 2004 e 2013 por quase 1.000 projetos financiados pelo Banco Mundial⁶”.

Não é a pobreza que é combatida aqui, mas os próprios pobres. Parece que eles devem sair da cidade por qualquer meio necessário.

Além disso, a localização de Tamansari é economicamente muito valiosa e interessante para os investidores, um terreno de primeira qualidade localizado no centro empresarial da cidade, ao lado da Ponte Pasupati (Jembatan Pasupati) e do Centro Comercial de Balubur⁷.

Infelizmente, há casos semelhantes em toda a Indonésia.

Só na cidade de Bandung, centenas de medidas semelhantes estão planejadas sob o pretexto de “melhorar as favelas”.

> Foto em destaque: Durante o despejo (12/12/2019. Fotógrafo: Arif Danun

Continuará…

N o t a s:

[1] As relações econômicas e políticas entre o Brasil e a Indonésia existiram mesmo durante o tempo da ditadura de Suharto e apesar da anexação de Timor-Leste e de Papua Ocidental.

[2] Acordo internacional sobre os direitos econômicos, sociais e culturais (Lei nº 05/2005)

[3] Oded: Membro do partido PKS, um partido islâmico nacionalista. Trabalhou durante 16 anos na “Indonesian Arospace”, uma empresa estatal para a produção de aviões civis e militares, depois fabricava vestuário e vendia gelados. Antes de se tornar prefeito, ele foi vice-prefeito de Ridwan Kamil.

[4] LBH https://www.lbhbandung.or.id/1724-2/

[5] http://kotaku.pu.go.id/view/7261/inovasi-program-kotaku-tuai-pujian-delegasi-luar-negeri

[6] http://projects.huffingtonpost.com/worldbank-evicted-abandoned

[7] Pasupati Bridge: uma ponte de 2,8 km de comprimento que foi concluída em 2005 e que tem tido um impacto significativo na qualidade de vida dos residentes locais. Balubur Town Square: um grande centro comercial que foi inaugurado em 2010. Os cidadãos não tinham nenhum direito a voto em ambos os megaprojetos.

agência de notícias anarquistas-ana

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Sandra Santos