Por Matthew Whitley | 05/08/2020
Chegamos a uma bizarra encruzilhada na história americana; hoje, ser um antifascista é ser declarado um terrorista. Autoridades à procura de um inimigo, qualquer inimigo, para justificar sua repressão sobre os atuais protestos por justiça racial, têm mirado em anarquistas e “antifa” – abreviação para antifascista ou ação antifascista. Como antifascista e militante anarquista, posso afirmar que nunca deveríamos ter sido o foco da rebelião deflagrada pelo assassinato de George Floyd. Mas agora que os políticos têm nos arrastado para os holofotes e nos demonizado, é importante que enfrentemos coletivamente essa retórica divisionista e nos solidarizemos uns com os outros.
Em meio a uma pandemia global e uma crise econômica, o assassinato de George Floyd pela polícia provocou uma rebelião que se espalhou por todos os Estados Unidos e pelo mundo. Uma revolta popular dos não-brancos contra o sistema carcerário, a violência policial, a extração de multas, o encarceramento em massa ou a legislação punitiva, que finalmente trouxe à tona uma mudança sistêmica. Propostas anteriormente consideradas utópicas agora são debatidas com seriedade: retirada de financiamento das forças policiais, descriminalização em massa, abolição da Imigração e Controle de Alfândega [Immigration and Customs Enforcement (ICE)] e autogestão comunitária da segurança pública.
Políticos do status quo, chefes de polícia e gestores de todas as perspectivas políticas estão vendo seus poderes escorregando em face dessa rebelião. Em vez de escutarem as demandas dos movimentos de libertação, eles têm embarcado numa campanha para dividir e desestabilizar o movimento, com advertências sobre supostos provocadores e elementos perigosos caracterizados como anarquistas e antifa. Uma estratégia cínica para jogar o movimento contra si mesmo e justificar as táticas brutais contra os manifestantes.
Alguém que tenha estado nas ruas nos últimos dois meses pode afirmar que esta é uma rebelião juvenil generalizada, especialmente de negros e mestiços, sem qualquer tendência política dominante. Mas sabemos que poucos políticos realmente se importam com a realidade, e é improvável que isso seja um escudo contra a repressão e a propaganda atualmente centradas na esquerda antiautoritária.
Legisladores têm “tuitado” sobre antifascistas como “terroristas” – um deles sugerindo “caçá-los” como “fazemos no Meio-Oeste”. Candidatos ao Congresso e empresas de direita agitam seus rifles em propagandas “anti-Antifa”. O Departamento de Segurança Interna [Department of Homeland Security (DHS)] está tratando os antifascistas “como a Al-Qaeda” para permitir vigilância doméstica intrusiva. O próprio Trump (ao lado de seu Procurador-Geral) fez eco à simbologia da Alemanha fascista quando chamou os antifascistas de “terroristas domésticos”. No exato momento em que muitas das ideias defendidas por anarquistas e antifascistas estão alcançando uma ampla audiência pela primeira vez – democracia direta; socialismo e justiça econômica; substituição da polícia por instituições comunitárias; e abolição prisional – estamos sendo demonizados como niilistas bárbaros.
Jornalistas sérios notam a ironia, pois mesmo o FBI reconhece que a extrema-direita racista é a “ameaça doméstica” mais assassina no país. “Antifa”, em sua luta contra essa ameaça, não provocou a perda de uma vida sequer, embora seja notavelmente efetiva. Um fato que poderia ser celebrado por progressistas que afirmam estar ao lado de comunidades marginalizadas. Entretanto, os antifascistas não só recebem uma crítica desproporcional dos agentes da lei e da direita, mas também de devotados “liberais”.
O jogo do suposto centro político, incluindo muitos democratas eleitos, é o que torna este momento especialmente perigoso. Suas próprias histórias sórdidas com a polícia – como o caso dos “superpredadores”[1] e o apoio à política das “janelas quebradas”[2] – também os têm deixado vulneráveis. Eles também estão desesperados por uma narrativa que os coloque no lado certo da questão. Recentemente, até Joe Biden achou necessário clamar por processos contra “anarquistas e incendiários”, como se a criminalização do movimento já não estivesse em marcha ou já não fosse o bastante. Por que ele faria isso? Porque nenhum político “progressista” pode admitir que eles apoiam o equivalente à lei marcial para reprimir negros e mestiços em nosso país; em vez disso, eles decidem reprimir o “antifa”. Este, dizem eles, é o inimigo sombrio semeando destruição; e é por este motivo que eles justificam o envio do exército para esmagar as manifestações.
Antifa, todavia, não é uma organização, “sombria” ou qualquer coisa do tipo, mas é simplesmente um ideal compartilhado, nascido da luta original contra o fascismo há quase um século, e com o qual qualquer grupo ou pessoa podem concordar. Existem, entretanto, grupos antifascistas que se dedicam a expor e enfrentar a extrema-direita organizada. A esquerda antiautoritária – anarquistas, socialistas libertários, social-democratas e outros – apoia esse trabalho há tempos, seja através da presença nas manifestações e contra-ações, seja por meio da pesquisa e compartilhamento de informações. Esses grupos são compostos por pessoas reais, que correm riscos reais de violência e encarceramento se nós permitirmos que sua demonização continue.
Assim como é usada como desculpa para reprimir a rebelião inspirada em George Floyd, antifa tem se tornado também um “apito de cachorro”[3] para alimentar a divisão racial e rachar o movimento, um código usado por aqueles que estão no poder para o “branco”: um fato amargo, uma vez que silencia não apenas muitos antifascistas de cor, mas também seu longo trabalho contra supremacistas de todos os credos. Em resumo, os antifascistas são pessoas de todos os tipos, raças e etnias, amplamente comprometidos com um futuro igualitário e com a necessidade de combater a supremacia branca e a opressão. A própria presidência de Trump tem apenas tornado o antifascismo mais diversificado, fazendo com que o “antifa” saia de algo associado a um grupo fechado para se transformar num maciço movimento de base.
Anarquistas e antifascistas – que têm sempre se colocado contra Trump, violência policial e sistema carcerário – estão nas ruas demonstrando solidariedade à rebelião inspirada em George Floyd? Certamente.
Eles são os cabeças dessa revolta? Absolutamente não.
Embora as autoridades promovam um espetáculo em busca de “anarquistas violentos”, elas sabem muito bem que nos organizamos abertamente, e que temos websites, reuniões, plataformas de mídia social e listas de e-mails. Somos apenas uma parcela de um movimento de massas cujo propósito central é ser aberto e apoiar nossas comunidades.
É esse movimento popular, e não os organizadores anarquistas e antifascistas, que realmente assusta os políticos do sistema – de Trump a [Andrew] Cuomo [governador do estado de Nova Iorque]. Semear divisões é uma estratégia antiga e eles esperam que ela funcione aqui. Como parte dessa estratégia, aqueles de nós que se organizam abertamente como anarquistas e antifascistas provavelmente estarão no topo da lista de vítimas da atual repressão. Pedimos que você estenda sua mão. Se você reservar um momento para conhecer os diversos movimentos por democracia indígena, luta antirracista e libertação das mulheres que são inspirados pelos princípios anarquistas e antifascistas, você vai provavelmente descobrir que nossas crenças ressoam. Empurrados a contragosto para os holofotes, temos de falar por nós mesmos e lembrar aos outros que não nos parecemos em nada com o retrato pintado pelos que estão no poder. Mas não queremos apelar por apoio agora. Não queremos ser a narrativa. Preferimos focar em nossos objetivos reais – construir um futuro justo de democracia popular, justiça racial e igualdade econômica. Para fazer isso, contudo, não podemos permitir que eles nos dividam e demonizem. Temos de nos manter juntos em solidariedade, na luta contra o inimigo comum: a supremacia branca.
Matthew Whitley é escritor, poeta, pesquisador e organizador anarquista do Metropolitan Anarchist Coordinating Council – MACC NYC. Atualmente, é estudante de doutorado em Antropologia Cultural no CUNY Graduate Center. Sua pesquisa aborda economias alternativas do Movimento de Libertação Curda. Ele também integra o comitê diretor do Emergency Committee for Rojava e coedita o impresso de artistas radicais Cicada Press.
Seu trabalho aparece em várias publicações e exibições, incluindo N+1, Syrian Democratic Times, The Brooklyn Rail, Translit (São Petersburgo) e “Vertical Reach: Political Violence & Militant Aesthetics”, que integra a pesquisa “Utopia after Utopia”, da Universidade de Yale. Seu livreto de poesia “Do You Like the Word Crisis?” foi publicado em 2019 pela Commune Editions.
Notas do tradutor:
[1] A polêmica dos “superpredadores” teve origem no artigo “The Coming of the Super-Predators”, escrito em 1995 pelo cientista político John Dilulio. Ele falava de garotos que não tinham “absolutamente nenhum respeito pela vida humana e nenhum sentido de futuro”, argumentando que esse problema seria maior em bairros de população negra. No ano seguinte, Hillary Clinton citaria os “superpredadores” num discurso sobre a política anticrime do marido e então presidente Bill Clinton, enfatizando a necessidade de combate às gangues juvenis. O artigo e o discurso foram criticados por seu “subtexto racial”. (Fonte: https://www.motherjones.com/kevin-drum/2016/03/very-brief-history-super-predators/)
[2] A teoria das janelas quebradas (“Broken windows theory”) foi proposta em 1982 por James Q. Wilson e George Kelling. Eles usaram a metáfora das “janelas quebradas” como referência à desordem nos bairros. Essa teoria “relaciona a desordem e a incivilidade dentro de uma comunidade a ocorrências subsequentes de crimes graves”. Teve impacto grande na política de policiamento e foi posta em prática em Nova Iorque nos anos 1990. A “Broken windows theory” motivou a política de “tolerância zero”. (Fonte: https://www.britannica.com/topic/broken-windows-theory)
[3] O termo “apito de cachorro” (“dog whistle”) é usado para indicar que um comentário político é direcionado subliminarmente a uma parte do público, que vai decodificar o significado da mensagem.
Tradução > Erico Liberatti
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num verso de porcelana,
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Eolo Yberê Libera
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!