Na Mídia da Nova Idade Média

Diz-se que o advento das ciências da Idade Moderna teria desempenhado um papel de promoção da superação de preconceitos e costumes arcaicos arraigados nas estruturas das sociedades ocidentais, tais como, p.ex., as velhas divisões sociais em grupos humanos considerados superiores e inferiores a partir da sua própria condição biológica (tal como o caso das divisões entre brancos e negros, em sociedades escravagistas do período colonialista do capitalismo).

Em que pese o caráter controverso desta afirmação, posto que a ciência dominante frequentemente esteve a serviço dos interesses dos grupos detentores do poder em todas as sociedades hierárquicas, tal como foi o caso das primeiras teorizações antropológicas que classificaram como sociedades “primitivas” as formas de organizações sociais indígenas dos continentes africano, asiático e das Américas, colocando-as assim (junto com os originários grupos humanos que as constituem) em uma pretensa posição de inferioridade em relação às sociedades europeias ditas “modernas” (e aos originários grupos humanos que as constituem), admite-se em geral que a evolução das ciências biológicas, p.ex. (após capítulos da sua história como o das teses de Lombroso, que associou características similares às de raças negroides a supostas tendências naturais para a violência) permitiram estabelecer uma base substancial de dados que apontam para uma constituição comum dos seres humanos, enquanto espécie, apesar da sua diversidade de manifestações “fenotípicas”. Neste sentido, também a Antropologia evoluiu, substituindo a classificação de sociedades “primitivas” pela de sociedades tradicionais, retirando assim a pecha de “atrasadas” daquelas formas de organizações sociais que, de fato, são apenas diferentes (fundadas sobre tradições ancestrais) das chamadas sociedades modernas, e não “inferiores” a estas. Todas estas evoluções de concepções estando, “coincidentemente”, em consonância temporal com o processo de expansão da forma industrial do capitalismo que, ao invés de trabalhadores escravizados (para o que as justificativas “científicas” da suposta “inferioridade” dos grupos humanos colonizados “caía como uma luva”) começava a demandar a constituição de um exército de trabalhadores supostamente “livres” (menos onerosos que os antigos escravos, posto que os proprietários agora não precisavam arcar com todos os custos de manutenção da propriedade dos próprios corpos dos trabalhadores, mas apenas pagar-lhes um salário mínimo que lhes possibilite adquirir um mínimo de ração para recuperar as energias para retomar o trabalho no dia seguinte).

Porém, agora, vivemos um momento histórico em que o uso das ciências por parte dos grupos dominantes (uso este que, obviamente, não desapareceu das práticas das sociedades hierarquizadas), ao invés de colaborar com esse papel de promoção da superação de preconceitos, está atuando no sentido da geração, difusão e consolidação de um preconceito de novo tipo, relacionado a um dado biossocial, qual seja, o da escolha individual pelo uso ou não de um fármaco experimental, as vacinas: nomeadamente, trata-se aqui do estabelecimento das distinções entre pessoas vacinadas e não vacinadas, que estão se estabelecendo como classes sociais distintas as quais, dependendo do pertencimento a uma ou outra destas classes, cada vez mais, faculta-se ou interdita-se o acesso a bens e serviços, chegando-se até mesmo a regular o acesso à própria sobrevivência material (o acesso ao trabalho), de acordo com o pertencimento a uma ou outra destas novas classificações sócio biológicas que estão começando a se configurar no admirável mundo do “novo normal”.

E a coisa não para por aí: tanto pela grande mídia corporativa como pelas redes sociais já se vê sinais de emergência de uma cultura do que se poderia classificar inequivocamente como sendo de um “discurso de ódio” contra as pessoas não vacinadas, como evidencia, p.ex., o termo “pandemia de não vacinadas”, propalado a torto e a direito pela grande mídia para se referir às novas ondas de contágio e mortes que assolam os países mais vacinados do mundo agora.

Por isto que, em uma visada retrospectiva da trajetória descrita pelo papel das ciências nas sociedades modernas, podemos apontar aqui um momento de clara regressão da sua aparente evolução num sentido de promoção de uma progressiva “humanização” das sociedades, para um sentido de reinvenção biotecnológica de arcaicas distinções sociais entre grupos humanos pretensamente “superiores” e grupos supostamente “inferiores”. A esse respeito, é bastante elucidativo destacar que nas redes sociais já circulam memes caracterizando as pessoas não vacinadas como sendo “doentes”, “loucas”, assim como o fato de que já se verifica no cotidiano cada vez mais relatos de casos de pessoas não vacinadas que estão sendo excluídas de momentos de encontros sociais com grupos de seus próprios familiares.

Visto que, como foi dito acima, a “virada humanizatoria” da ciência no sentido de descartar velhas teses racistas para assumir concepções antipreconceituosas se deu em conformidade com o processo de ascensão de um novo tipo de capitalismo (à época), qual seja, o capitalismo industrial, que demandava uma estrutura sócio-político-econômica pretensamente “livre”, pode-se questionar: seria possível que essa aparente regressão da evolução “humanizatoria” da ciência que se verifica neste momento esteja se dando em consonância com as necessidades de algum novo tipo de capitalismo em emergência agora? Talvez, quem sabe: um capitalismo de biogovernança (ou seja, um capitalismo de dominação e exploração sobre a própria biologia das populações humanas).

Ainda no Séc. XIX, momento histórico de grande impulso e de grande otimismo no que concerne ao advento das ciências e técnicas modernas, um grande revolucionário e pensador social russo declarou: “um governo da ciência seria mais temível que um governo de sacerdotes, porque estes ao menos temem uma força superior a eles.”

E a história tem demonstrado que este pensador parece ter sido realmente muito clarividente em todas as suas teses.

Vantiê Clínio Carvalho de Oliveira

agência de notícias anarquistas-ana

Abriu-se a papoula
E ao vento do mesmo dia
Ela veio ao chão.

Shiki